Julgamento

Defesa de militares que mataram músico com 82 tiros no RJ afirma que outra atitude era 'impossível'

Advogados chegam a justificar quantidade de disparos; laudos confirmam que foram descarregados 257 tiros contra o carro

Brasil de Fato | Brasília (DF) |

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Acusação contesta alegação de que réus estavam abalados por um conflito anterior e destaca que uso da força no momento do assassinato foi desproporcional
Acusação contesta alegação de que réus estavam abalados por um conflito anterior e destaca que uso da força no momento do assassinato foi desproporcional - Fábio Teixeira/AP

Em recurso encaminhado ao Superior Tribunal Militar (STM), ao qual o Brasil de Fato teve acesso, a defesa dos militares do Exército condenados por matar um músico com 82 tiros no Rio de Janeiro (RJ) em 2019 pediu a absolvição e afirmou que seria "impossível" outra atitude no contexto de conflito com traficantes que teria acontecido no dia do assassinato. O julgamento está previsto para o dia 29 de fevereiro. 

"Seria impossível a qualquer pessoa tomar atitude diversa da que tomaram os militares naquele momento de máxima tensão. Já não se tratava da salvaguarda do patrimônio alheio, mas da própria autopreservação", afirma o recurso. Os militares são representados pelo advogado Rodrigo Roca, que já defendeu o senador Flávio Bolsonaro (PL-RJ) no caso das rachadinhas da Assembleia Legislativa do Rio de Janeiro (Alerj) e chegou a ser nomeado Secretário Nacional do Consumidor no governo de Jair Bolsonaro (PL). 

Ao todo, 12 militares foram denunciados pela morte do músico Evaldo Santos Rosa e do catador de materiais recicláveis Luciano Macedo, alvejados em abril de 2019. Quatro acabaram absolvidos por não terem feito disparos no dia da abordagem. O tenente que comandava a operação foi condenado a 31 anos e seis meses de prisão. Os demais denunciados foram sentenciados a 28 anos de encarceramento. 

O advogado pede agora a absolvição de todos os envolvidos, com o argumento de que viviam um clima de tensão devido a conflitos com traficantes no dia. Também afirmam que os militares confundiram o veículo em que estava o músico com o automóvel utilizado por assaltantes no mesmo dia na região de Guadalupe, zona norte do Rio de Janeiro. 

"O erro plenamente escusável dos apelantes está consubstanciado no intenso confronto vivenciado por eles ao longo do dia – tanto na parte da manhã, quanto no momento do assalto –, na periculosidade do local onde os fatos ocorreram, no concreto risco de morte que sofreram durante o dia pelas ameaças proferidas pelo chefe do tráfico, somados à circunstância em que o veículo idêntico ao do assalto se encontrava", segue a defesa dos militares. 

O advogado tenta, inclusive, justificar o número de disparos. "Esta não deve impressionar, tendo em vista que se tratou de uma situação envolvendo uma viatura com 12 militares, que acreditavam estar sofrendo um novo ataque por elementos que imaginavam estar armados, ante o confronto armado ocorrido com os assaltantes minutos antes".  

No dia em que foi alvejado, Evaldo estava com sua família em um Ford Ka Branco a caminho de um chá de bebê. Ao avistarem o veículo, os militares fizeram 257 disparos, segundo constatou a perícia realizada durante a investigação. O catador de material reciclável Luciano Macedo tentou socorrer Evaldo, foi alvejado e também morreu. 

Ministério Público Militar rebate 

A tese da defesa dos militares é contestada pelo Ministério Público Militar (MPM). As justificativas de discordância do recurso, chamadas de contrarrazões, foram apresentadas ao STM e pedem que seja mantida a condenação. Para os procuradores, os argumentos da defesa estão "impregnados de falácias".

"Fica nítido que o objetivo da defesa é o de jogar fumaça na montanha de provas e evidências contidas nos autos que demonstraram, de forma inequívoca, o cometimento de fato típico, ilícito e culpável por parte de oito dos réus", diz a manifestação do MPM.

Para o órgão, a tese aventada pela defesa, de que os militares estariam com sua percepção alterada devido a uma situação de combate intenso, não se sustenta. O procurador de Justiça Militar Luciano Gorrilhas e a promotora de Justiça Militar Najla Nassif Palma apontam que naquele dia houve uma troca de tiros entre militares e supostos traficantes pela manhã, mas que a maioria dos denunciados, quando questionados ao longo da investigação, admitiram que não realizaram nenhum disparo neste conflito.  

"Esses dados demonstram que, apesar da troca de tiros ocorrida, não houve confronto intenso entre a tropa militar e supostos agentes do tráfico de drogas. Reforça esse argumento o fato dos próprios militares terem dito que não atiraram", diz o MPM.

"Pelas avarias ocasionadas nas viaturas militares é possível concluir que o confronto havido entre os militares e supostos traficantes na comunidade do Muquiço não teve a intensidade idealizada pela defesa que atribuiu, sem provas, dimensão demasiada ao aludido confronto para, sem dúvida  alguma, desviar o foco do fato principal (82 tiros deflagrados pelos acusados contra o carro de Evaldo e contra Luciano). A partir daí, desenvolveu a infundada tese de que o dito confronto abalou a psique dos acusados, os quais teriam sido ameaçados de morte por um traficante de alcunha 'Coronel', fato não comprovado nos autos", segue a manifestação.

Além disso, o MPM aponta que, mesmo que tenha ocorrido o assalto antes, os militares deveriam ter seguido regras de uso da força de forma proporcional.  

"Os acusados não poderiam ter disparado seus fuzis sem estarem sofrendo agressão ou ameaça. E ainda que sofressem uma ameaça de um agente com uma pistola naquele contexto, não poderiam violar o padrão legal do uso da força, em especial o emprego da força progressiva e proporcional e a tomada de todas as precauções razoáveis para não ferir terceiros, ainda mais em área urbana densamente povoada", segue. 

Ao final, o MPM pede que sejam mantidas as condenações dos autores de disparos. "Todos que deflagraram disparos de arma de fogo concorreram para a morte de Evaldo e de Luciano e para os ferimentos de Sérgio e, com base na prova segura dos autos, inexistindo causa apta a juridicamente justificar suas condutas, devem ser condenados pelos crimes de homicídio." 

Edição: Matheus Alves de Almeida