Rio Grande do Sul

DEFESA DO TERRITÓRIO

Povos tradicionais marcham contra a ameaça a território com a ampliação da BR-386

Comunidade Kilombola Morada da Paz - Território de Mãe Preta (CoMPaz) realizou o ato 'Parada da Légua' em Triunfo

Brasil de Fato | Porto Alegre |
“Não se render, ousar lutar, ousar vencer”, grito pronunciado durante Parada da Légua 2024 - Foto: Fabiana Reinholz

“Aqui nós estamos mais um dia lutando pelo nosso direito de ser e existir. Ouçam o nosso grito. O nosso grito, ele não é só hoje, ele é todo dia. E quero dizer que a gente é pessoas, como vocês. A gente luta pelo que a gente ama, a gente vive o cotidiano. Mas nós estamos sendo atacados. Isso sim é uma denúncia. Quando a gente é atacado naquilo que a gente ama no nosso íntimo, a gente sente e a gente sofre também. Mas a gente escolheu lutar com alegria, cantar e chorar ao mesmo tempo. Porque é assim que é a vida no Kilombo de Mãe Preta. Eu queria que vocês ouvissem, realmente: que o aqui e o agora é que a gente preserva o amanhã”. Fala de Nishtha, Ekedi Khan da Nação Muzunguê, da Comunidade Kilombola Morada da Paz, durante a Parada da Légua 2024

Maracás, tambores e múltiplas vozes irromperam o asfalto num ato que trazia uma mensagem de coletividade e de vida no sábado, dia 20 de janeiro. Povos do campo, das águas, das florestas, das ocupações urbanas, das periferias, dos assentamentos da reforma agrária, das retomadas indígenas, de quilombos para além do Rio Grande do Sul, refugiados, imigrantes e movimentos sociais faziam coro. No mesmo ritmo de um batimento cardíaco, anunciavam: avançaremos.  

:: Comunidade Kilombola Morada da Paz articula ato por Solidariedade Real e Radical neste sábado (20) ::

Em defesa da autodeterminação dos povos e de seu direito radical de ser e existir, a Comunidade Kilombola Morada da Paz - Território de Mãe Preta (CoMPaz) realizou o ato “Parada da Légua”, denunciando a ampliação da BR-386, na cidade de Triunfo, a menos de 500 metros da comunidade. Um projeto que ameaça o território, intimidando gentes, bichos, árvores anciãs, o tempo e a terra que ali coabitam.

A comunidade articulou a manifestação pacífica, alertando a vizinhança e autoridades sobre os impactos do empreendimento no local. Assim como comunicando a sua luta para barrar a légua, uma rodovia também conhecida como o concreto dum processo extrativo que impacta a sociobiodiversidade. Durante a marcha poética-cultural, política-espiritual, o diálogo se deu com quem estava parado no trânsito e moradores das beiras da BR, e contou também com a distribuição de materiais informativos.  

De acordo com a Comunidade, a ampliação no trecho 405-415km afeta diretamente o território, envolvendo, entre outros danos, a supressão de 300m2 da vegetação local e a aproximação perigosa de uma rodovia com alto fluxo de veículos pesados perto de suas porteiras, colocando em risco todas as vidas que compõem o território. 

Conforme relato de Yashodhan Abya Yala, Yalasé da Nação Muzunguê, Sangoma da Casa da Sétima Ordem, zeladora e protetora da Comunidade Kilombola Morada da Paz – Território de Mãe Preta CoMPaz, a ampliação da BR é mais uma ameaça dos mega empreendimentos. “Até hoje nunca vimos o projeto, não fomos consultados”, relatou. Ponto que fere a Convenção 169 da Organização Internacional do Trabalho (OIT), que prevê a Consulta Prévia, Livre, Informada e de Boa Fé às comunidades que são impactadas por projetos ou empreendimentos. 

Para além da denúncia, o ato trouxe a vivacidade da memória e do tempo. Entre falas, espadas de São Jorge ao alto, gritos e batucadas, no caminho se narrava a história do Kilombo Morada da Paz, que existe em Triunfo há 21 anos. Uma comunidade de remanescentes, aqueles que lembram e mantêm viva a memória do seu povo. Uma história que também é de luta, e que se conecta à realidade de tantos outros territórios que resistem. 

Viemos de nossa terra fazer barulho na terra alheia

“Não se render, ousar lutar, ousar vencer. Essa luta é nossa, essa luta é do povo. É só lutando que se faz um mundo novo. É para aquilombar. É retomando que se faz um mundo novo. Essa luta é nossa, essa luta é do povo, é aquilombando que se faz um mundo novo” - Canto “Essa Luta é Nossa”, que reverberou durante a Parada da Légua.

Entre pontos para Ogum, Iansã, Esù e Xangô, ecoavam do começo ao fim da Parada da Légua frases como: “Essa luta é nossa, essa luta é do povo, é aquilombando que se faz um Brasil novo” e “Pelo direito de ser e existir: solidariedade real e radical”. Os cantos contavam sobre o amor das existências diversas, multiétnicas. Sobre aqueles que tombaram, mas fazem presença a cada passo dado. Sobre a confluência do encontro de Norte a Sul do Brasil, de retomada a retomada indígena, de quilombo em quilombo, das ocupações de luta por moradia e por reforma agrária.  

:: Justiça suspende ampliação de trecho da BR 386 no RS para consultar comunidade kilombola ::

“A nossa luta é a luta deles também. Em busca de moradia, em busca de espaço, para a continuação de sua resistência. É importante para nossos parentes quilombolas. Eles estão colocando lixão aqui, as empresas querendo tirar eles para colocar lixão, que tem químicas que prejudicam a vida. É muito importante fazer a nossa parte apoiando. Tão querendo ampliar a BR também, tomando o espaço dos moradores daqui. Principalmente dos parentes quilombolas, que também defendem a terra, assim como nós, indígenas, originários da terra”, manifestou seu apoio a cacica Iracema Gãh Té Nascimento, da Retomada Multiétnica Gãh Ré, localizada no Morro Santana, em Porto Alegre (RS).

Gãh Teh mencionou ainda a importância de valorizar as mulheres na luta, e que sua aliança com a Morada da Paz já percorreu Brumadinho (MG) e Brasília (DF), numa solidariedade que vem de outros trilhares.  

Para Claudia Dutra, do Movimento Negro Unificado, participar da Parada da Légua foi gratificante. “Nos sentimos agradecidos com o convite e em apoiar a luta aqui da comunidade frente a ampliação da BR, também frente a pauta territorial. O nosso envolvimento enquanto militantes e ativistas versa profundamente sobre a questão de raça e território, então os encaminhamentos às autoridades competentes para as pautas demandadas aqui serão devidamente feitas”, comentou. 

Claudia mencionou que estão construindo junto às comunidades quilombolas do RS a articulação jurídica e também de apoio, inclusive pautando a 734785, que é a ação civil pública, e o fundo de reparações da comunidade negra do Rio Grande do Sul e nacional. “Estamos no apoio nos direitos reparatórios, da memória, da verdade e da justiça dos nossos povos negros, comunidades quilombolas e comunidades tradicionais de matriz africana”, explicou. 

O cacique Maurício Ven Tainh Salvador, da retomada Kaingang na Floresta Nacional de Canela (Flona), relatou a importância da união dos povos, de suas culturas e sabedorias. “A Parada da Légua é uma retomada, num aspecto de dizer, para quem quer ouvir e quem quer saber, que a gente existe. Que a gente tá aqui e que a gente resiste para existir. É muito importante esse movimento que a gente tá fazendo hoje. A nossa vida é isso, é viver na retomada, lutando por espaços. Viemos nos apoiar e unir para buscar o reconhecimento de nossos territórios e de nossas histórias”,  evidenciou. 

O cacique também mencionou que um legado está sendo deixado para as próximas gerações. E que mesmo com vitórias, também existem as mágoas e as dores de quem vivencia na pele a violência da exploração e da opressão. Mas relembra como uma guiança: “Quando a gente vê a comunidade sorrindo, a comunidade tendo um espaço, os momentos de tristeza e dor vão embora e o que prevalece é a felicidade e a prosperidade de nossas famílias e de nosso povo”. 

Remontando a fala das lideranças kaingang e mbya-guarani, moradores do assentamento da reforma agrária Sepé Tiaraju, de Viamão (RS), ressaltaram: “Não é a luta da Morada da Paz, é a luta de um povo todo”. Antes da Parada da Légua, quem estava em marcha foi adentrado pela Morada da Paz, Território de Mãe Preta, e neste encontro, no Kilombo, se preparou para a caminhada. 

Maurício afirmou a importância da comunidade. Citou que a confluência de povos e os diálogos são fortalecimento para todas as lutas. “A gente vem através desses encontros perceber que tem bastante comunidades em luta, assim como nós. Que precisam de fortalecimento espiritual, mental, de experiências. Eu venho aqui aprender com pessoas que já vêm há bastante tempo na luta, mas também para contribuir. É muito importante esse encontro para que a gente possa se unir, ajudar, contar das nossas experiências de luta e fortalecer a questão da coragem, de saber que a gente não tá sozinho. Essas vitórias que a gente vêm buscando virão”, contou. 

Cultura viva 

“A nossa cultura é o nosso jeito de ser e viver. Se há violação, ela fere com o nosso jeito de ser e viver. Que é um jeito de ser e viver amparado na Nação Muzunguê, que é uma espiritualidade que se manifesta com um sopé das matrizes africanas de origem yorubanta, das matrizes indígenas, em especial a guarani e também ela é búdica, sagrada. Ela reinventa, revive e chama para si o exercício do sagrado ao seu cotidiano”, expôs Yashodhan.  

Da retomada Mbyá Guarani Tekoá Ka'agüy Porã (Mata Verdadeira), de Maquiné (RS), o cacique André Benites salientou: “Eu me orgulho e tenho de escudo a minha cultura e a minha expressão”.

Ao ser questionada sobre o que esperava da Parada da Légua, Yashodhan expressou que o que esperava da mobilização já estava acontecendo, naquele instante. “Hoje, aqui, temos mais de 100 pessoas reunidas, de ocupações, retomadas, quilombolas, indígenas, pessoas que são aliadas dessa luta. Eu também tenho o desejo de dar visibilidade para essa luta e dizer: nós existimos, nós sempre existimos. E enquanto essa vida pulsa a gente vai lutar”. 

 
Performance O pulso ainda pulsa 

“Os nossos passos vêm de longe. E tem muita gente que tombou na luta para que a gente pudesse estar aqui hoje.” 

A Parada da Légua 2024 contou com diversos momentos marcantes, que remontam a realidade de cada território em luta que em solidariedade compunha o ato em defesa do Kilombo. Entre eles, ocorreu a performance “O Pulso Ainda Pulsa”, da Kasa Okupa Contracultural Jibóia, de Porto Alegre (RS) - um espaço de moradia e cultura focado na população LGBTQIAP+ e em mulheres cis, que tem como intuito o acolhimento, geração de qualidade de vida, troca de experiências e o crescimento de novas redes de apoio comunitário, que fortalecem também a conexão com a terra e o território. 

:: Ocupação que abriga mulheres e pessoas LGBTQIAP+ é alvo de ação do Batalhão de Choque da Brigada Militar ::

Omar Flores, morador da Okupa Jibóia, participou da Parada da Légua pela primeira vez, assim como sua ida à comunidade kilombola. Ele relatou que a experiência foi transformadora. “Estar no território, fazer a trilha, me encontrar e poder sentir essa proximidade com entidades e com toda a energia dali foi muito transformador como indivíduo, espiritualmente”, comentou.

O morador da ocupação relembrou momentos de tensão vividos pela Jibóia no último ano, quando em ação arbitrária e ilegal, comandada pela Polícia Militar e tropa de choque, derrubaram parte da ocupação. 


Marcha contou com a participação de cerca de 100 pessoas / Foto: Fabiana Reinholz

Naquela data, que marcava 19 de outubro, após violência desproporcional da polícia e do Estado contra a Okupa Jibóia, esta recebeu a visita da Morada da Paz, em ato de solidariedade. No momento, Yashodhan se referiu a uma árvore da okupa como parte do povo de pé.

“O pessoal do Kilombo Morada da Paz esteve aqui no dia 19, e escutar esse termo do povo de pé, e daí ouvir nas falas das pessoas no Kilombo, de muitos outros povos, dos povos encantados, do povo do fundo, que as árvores são os povos de pé, é marcante. No momento em que se falou do povo de pé eu olhei para essa árvore (paineira presente na Jibóia) de um jeito diferente. E voltando do Kilombo eu também sinto essa árvore de uma forma diferente. Então meio que me sinto mais conectado ainda com esse território, entendendo que ele está conectado com todos esses outros. Que a nossa luta está conectada com todas essas outras lutas”, contou. 

Entre outras performances apresentadas pela Okupa Jibóia, em conjunto com outros coletivos, como a Okupa Kaliça, “O Pulso ainda Pulsa” trouxe como central o deslocamento fluído por entre todos os blocos do ato, que também representa a forma como foi construída a Parada da Légua e a unidade das lutas ali presentes. 


De acordo com a Comunidade, a ampliação no trecho 405-415km afeta diretamente o território, envolvendo, entre outros danos, a supressão de 300m2 da vegetação local / Foto: Fabiana Reinholz

“Fizemos a performance caminhando entre as pessoas, olhando elas nos olhos e segurando o próprio pulso enquanto falávamos: o pulso ainda pulsa”. Quando a gente se desloca entre pessoas que estão em movimento, a gente precisa conectar uma percepção espacial e corporal diferente, porque o corpo todo da coletividade é o corpo que dança quando tu te desloca. Se tu não tem essa consciência, tu se choca com o outro. E fazendo esse deslocamento, esse movimento coletivo, tocando o próprio pulso, sentindo o próprio pulsar e rememorando e trazendo de volta o que é vivo na gente das pessoas que já se foram, é muito forte, é muito intenso”, mencionou Omar. 

Ele contou que integrantes da Okupa perderam pessoas muito próximas no último ano, e que antes da performance, houve um momento em que todes debateram como seria a apresentação. Neste, muitos relatos de luto e perda estavam presentes, e foram sentidos coletivamente.

O intuito da performance foi evocar os nomes de todos que tombaram na luta, rememorando que ainda sentimos os seus batimentos. Como disseram no ato: “está presente, pois a gente até sente o pulsar de seu coração”.

Entre as menções estavam Mãe Bernadete, Zumbi dos Palmares, Nego Bispo, Marielle Franco, irmã Dorothy, Sepé Tiaraju, Isabel Cristina, Chico Mendes, Julieta Hernandéz. “É como se a gente tivesse colocando esse amor no som, colocando esse amor no ar ali. Enchendo o ato, também, disso. Foi muito curativo, é muito curativo pra nós”, expôs. 

A ampliação de uma rodovia e a violação de direitos de uma comunidade 

Nascida das entranhas das mulheres pretas, que retomam a luta de seus ancestrais quando foram expulsos de seus territórios, a Comunidade Kilombola Morada da Paz vem há uma década lutando contra a ampliação da rodovia federal. 

As obras de ampliação da BR-386 foram iniciadas em 2010 pelo Departamento Nacional de Infraestrutura e Transportes (DNIT). O empreendimento faz parte do programa de Concessão Federal no Rio Grande do Sul e é regulado pela Agência Nacional de Transportes Terrestres (ANTT)

No final de 2021 a comunidade ajuizou a Ação Civil Pública (N. 5063160-33.2022.4.047100/RS) em que pedia a suspensão do andamento da obra no trecho até que fosse realizada a Consulta Prévia, Livre, Informada e de Boa Fé à comunidade, respeitando a Convenção 169 da Organização Internacional do Trabalho (OIT).   

Mesmo após inúmeros recursos dos réus do processo - as empresas concessionárias e o Estado brasileiro, a partir dos órgãos Instituto Nacional de Colonização e Reforma Agrária (Incra), o Instituto Brasileiro do Meio Ambiente e dos Recursos Naturais Renováveis (Ibama) - a Comunidade ganhou a causa sustentando a decisão liminar. 

Contudo, esta foi derrubada ao final de 2023, quando a juíza designada para avaliar o mérito do processo decidiu extinguir a ação. O argumento utilizado foi o de que, ainda que tenha legitimidade em reivindicar esse direito, a comunidade estaria se adiantando em seu pedido, já que o cronograma da concessionária teria previsto para 2034 a execução das obras no trecho 358-444 KM, entre os municípios de Tabaí e Canoas, o que tiraria seu caráter de urgência.

Como relata Yashodhan, a duplicação da rodovia federal ameaça a comunidade quando ela fere o protocolo de consulta prévia, livre, informada e de boa fé.

“É importante que se diga que a consulta é uma obrigatoriedade do Estado brasileiro que é signatário da convenção 169 da Organização Internacional do Trabalho (OIT). A consulta prévia pressupõe um processo que respeite os povos que serão impactados. Aqui no território nós não somos ou isso ou aquilo. É e, e é nós e o nosso povo em pé, as nossas Yanjis, nossas árvores. Somos nós e o ar que respiramos, onde reina a Iansã, Ofurucu. É e. Nós e toda vida de seres sencientes que habitam conosco esse espaço. Então esse espaço todo está sendo ameaçado.” 

“Uma juíza sentenciou de modo que ela tenta derrubar a nossa ação civil pública. Então essa marcha ela também serve para avisar essa juíza de que a sua sentença é uma escrita de cicatrizes de violação e exclusão. E nós não fizemos da borda, da periferia ou da margem, um espaço de exclusão. Pelo contrário, nós fizemos da periferia, da margem, da borda que tentam nos colocar um espaço de libertação. Queremos mais do que sobreviver, queremos dignidade. Que essa juíza entenda o recado que sua sentença não vai borrar a nossa coragem”, afirmou Yashodhan. 
 
 Conheça a história de luta da Compaz

* Jornalista da Amigas da Terra Brasil no RS


Edição: Katia Marko