TEMPOS DE MILEI

'Foi uma frustração muito grande, parecia um pesadelo', conta estudante brasileiro barrado em Buenos Aires

Depois de seis meses de preparação para ingressar na faculdade de medicina, Jailson Alves teve que retornar ao Brasil

Brasil de Fato | São Paulo (SP) |
O estudante de medicina Jailson Alves foi barrado em Buenos Aires no início de fevereiro - Acervo Pessoal

O estudante de medicina Jailson de Oliveira Alves se preparou durante seis meses para se mudar para a Argentina após ser aceito no curso de Medicina da  Universidade de Mar de Plata (UNMDP). Soteropolitano, ele embarcou num voo em Salvador (BA) na madrugada do dia 1º de fevereiro, com escala em São Paulo e destino a Buenos Aires, véspera do início do ano letivo.

Para evitar contratempos, o estudante levou impressa a inscrição da faculdade, mas não foi o suficiente. Quando chegou ao aeroporto Jorge Newbery, o serviço de migrações o abordou com uma série de perguntas.

As autoridades queriam saber o que ia fazer no país, se tinha cartão de crédito e quanto dinheiro havia levado. Um funcionário o chamou para uma pequena sala e pediu que sentasse e entregou uma ficha impressa que ele deveria assinar após a leitura.

“Na última linha, dizia que a minha entrada havia sido rechaçada. Eu ia fotografar o documento, mas eles não permitiram”, conta o estudante ao Brasil de Fato. Alves embarcou no voo em Salvador às 5h40 e essa situação no aeroporto se desenrolou por volta das 16h30. Exausto, nem tentou argumentar. Após a assinatura da ficha, os funcionários do aeroporto embarcaram o estudante brasileiro num voo de volta para São Paulo, sem garantir nem mesmo a conexão para Salvador (BA). 

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“Foi  uma frustração muito grande, parecia um pesadelo. Nunca soube de um brasileiro que não tinha conseguido entrar na Argentina. Fiquei pensando o que eu tinha feito de errado, mas eu estava de acordo com a lei. Não tinha nada de errado comigo, eles só não quiseram me deixar entrar."

Quando as aulas da universidade começaram, no dia 2 de fevereiro, Jailson passou o dia tentando ser atendido no Consulado argentino em São Paulo (SP). “Não conseguiu ser atendido, só marcaram horário para o dia seguinte mas como estava pagando hotel, não compensava ficar, deixei pra resolver na Bahia”. 

O consulado argentino em Salvador enviou por e-mail a Jailson, uma relação de documentos que ele teria que apresentar para garantir um visto de estudante, e dessa forma, ingressar na Argentina. Para o visto de estudante, o consulado exige passaporte com vigência mínima de seis meses, garantia de meios econômicos para manutenção e alojamento na Argentina e certificado de antecedentes penais do estudante. 

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O consulado também exige a inscrição no Renure (Registro Nacional Único de Requerentes Estrangeiros) da instituição de ensino, assim como o cadastro eletrônico do estudante feito pela instituição. “A instituição de estudos deverá registrar a inscrição do aluno eletronicamente perante a Direção Nacional de Migrações da Argentina (Solicitud de Autorización Ingreso al País - Précarga de Dados Electrónicos, em tradução livre)”, diz o documento do Consulado.

“Nem mesmo a universidade estava habituada com esses documentos, porque isso nunca foi necessário. O estudante dava entrada como turista e tinha o prazo de 90 dias para regularização. Seria muito mais fácil resolver isso lá do que voltar para o Brasil para resolver sendo que é algo que nunca foi exigido”, conta Alves.

Quando conversou com a reportagem na quarta-feira (21), Alves tinha acabado de enviar toda a documentação e aguarda o visto de estudante para entrar na Argentina. Durante o mês de fevereiro, ele conseguiu fazer online as aulas da faculdade.

Medo e ansiedade

O relato de Jailson Alves tem sido recorrente entre os estudantes estrangeiros, não apenas do Brasil, que tentaram entrar na Argentina no início deste ano, após a posse do governo ultraliberal de Javier Milei. Na quarta-feira (21), a embaixada do Brasil na Argentina divulgou comunicado endereçado aos brasileiros que vão estudar no país vizinho:

“Os cidadãos brasileiros interessados em estudar na Argentina devem solicitar visto de estudante junto à embaixada argentina ou rede consular argentina, previamente à viagem à Argentina. A demanda do governo argentino se aplica a estudantes de todas as nacionalidades”, diz o texto publicado pela embaixada.

“A gente tá escutando muitos relatos de brasileiros, chilenos e equatorianos”, conta Julia Vilas Boas Viana, coordenadora do setor de migrantes do grêmio estudantil Remediar,da Universidade de La Plata, onde cursa o 3º ano de Medicina. Assim como no relato de Jailson, ela aponta que a universidade ainda não tem um protocolo sobre como lidar com a nova documentação exigida.

O setor de migrações do Remediar foi criado em 2019, quando as universidades argentinas passaram a exigir o certificado de espanhol e muitos estudantes tiveram dificuldade para obter a documentação e garantir seu ingresso. Por ser a primeira iniciativa do tipo no país, se tornou uma referência e tem recebido muitas denúncias de outras universidades.

A oficialização da exigência do visto de estudante para o ingresso no país tem gerado medo e ansiedade nos estudantes brasileiros.

“O  que está saindo agora na embaixada, de pedir o visto de estudante, gera bastante insegurança nas pessoas. Muitos estudantes estão com muitas dúvidas, com essa informação da deportação o pessoal ficou com bastante medo, ansioso”, conta Viana. “A gente está longe da nossa família, da nossa cultura, dos nossos costumes e isso com certeza afeta bastante. Ser questionado por uma autoridade policial, ser levado para uma salinha e ter que ficar respondendo uma série de perguntas.”


Mensagens em grupo de estudantes da Universidade de La Plata / Reprodução

Procurado pela reportagem, o Itamaraty afirmou, por meio de nota, que tomou conhecimento de relatos de inadmissão de estudantes brasileiros na Argentina por meio da Embaixada e do Consulado-Geral em Buenos Aires e realizou gestões sobre o tema junto às autoridades locais. 

"Nos contatos estabelecidos, foi reiterada à parte argentina a importância de aplicação do Acordo sobre Residência para Nacionais dos Estados Partes do Mercosul, que prevê medidas de facilitação do livre trânsito de pessoas. Em resposta, as autoridades locais indicaram a necessidade de que os estudantes brasileiros ingressem na Argentina usando o visto apropriado. O governo brasileiro recomenda que interessados busquem informações junto às autoridades consulares argentinas quanto aos documentos e requisitos necessários para entrada e permanência no país conforme os objetivos da viagem", diz a nota.

Edição: Rodrigo Durão Coelho