ENTREVISTA

Espaços de poder ainda são extremamente masculinizados e machistas, diz vereadora de Porto Alegre

Abigail Pereira: ‘Grande parte do poder masculino não está preocupado com a garantia dos nossos direitos'

Brasil de Fato | Porto Alegre (RS) |
'É um absurdo lembrar que nós não podíamos votar, nem sermos votadas', afirma a vereadora Abigail Pereira - Foto: Juliana Marques

“Ainda estamos muito longe da garantia de igualdade. Os espaços de poder ainda são extremamente masculinizados, e também são extremamente machistas, a violência política de gênero é uma realidade e nos afeta cotidianamente”, afirma a vereadora de Porto Alegre, Abigail Pereira, mais conhecida como Biga.

Forjada no movimento sindical, a parlamentar do Partido Comunista do Brasil (PCdoB) foi uma das fundadoras da União de Mulheres de Caxias do Sul. Confirme afirma em entrevista ao Brasil de Fato RS, foi nesse momento que se deparou com a necessidade de uma maior participação política de mulheres nos espaços de poder decisórios da sociedade.

No mês em que se celebra o Dia Internacional da Mulher, Biga destaca o trabalho desenvolvido na Câmara de Vereadores de Porto Alegre, assim como conquistas e desafios na busca por direitos das mulheres

“Nós, mulheres, decidimos ser sujeitas e sempre foi muito difícil: nós tivemos que lutar para ter direito à educação, à escola (...) A luta pelo voto feminino está dentro destas dezenas de lutas que precisamos construir ao longo da história e sua conquista foi, sem dúvidas, uma grande vitória das mulheres e de todo o povo. É um absurdo lembrar que nós não podíamos votar, nem sermos votadas”, afirma.

Confira

Brasil de Fato RS -  Em 2022, mulheres dedicaram 9,6 horas por semana a mais do que os homens aos afazeres domésticos ou ao cuidado de pessoas. No ano passado o tema da redação do Enem foi sobre 'invisibilidade do trabalho de cuidado realizado pela mulher'. Também no ano passado a Câmara aprovou por unanimidade a Frente Parlamentar da Economia de Cuidados proposta por ti. Primeiramente queria te perguntar sobre como tu avalia essa situação das mulheres quando falamos no trabalho de cuidado? 

Abigail Pereira - Em primeiro lugar, a nossa luta é para dar visibilidade a um trabalho que é desvalorizado e invisibilizado pela sociedade. Uma sociedade que tem tido uma longevidade maior, e, por tanto, exige políticas públicas. 

Além disso, nós queremos viver em uma sociedade desenvolvida e, para isso, as mulheres precisam estar inseridas no mercado de trabalho. Mas para que o ingresso feminino no mercado de trabalho seja possível, é preciso ter equipamentos públicos para o acolhimento de pessoas que precisam de cuidados, como as crianças. 

O Estado hoje não investe seus recursos na formulação destas políticas e equipamentos públicos e as famílias é que estão cumprindo esse papel. 

Nos interessa debater com a sociedade, com os movimentos sociais organizados, com as pesquisadoras, com as universidades e com o poder público, aquilo que hoje denominamos “economia de cuidados”. E além de promover debates e reflexões, incidir também sobre a formulação de políticas públicas concretas, que cumprem o papel de alterar radicalmente a realidade das mulheres, passando o trabalho de cuidados do âmbito familista para o âmbito público. 

Nós queremos viver em uma sociedade desenvolvida e, para isso, as mulheres precisam estar inseridas no mercado de trabalho

BdFRS - Como tem sido o trabalho da Frente? 

Abigail Pereira - Hoje temos feito uma ação incisiva, junto a instituições como a Defensoria Pública, as universidades e a própria prefeitura para cobrar a efetivação da disponibilização das vagas nas creches em nossa cidade. 

Lançamos também a Rede de Empresariamento Popular de Mulheres, no intuito de fortalecer a autonomia econômica das mulheres de Porto Alegre.

Além disso, aprovamos recentemente uma lei que garante atendimento psicológico para as mães que perderam seus filhos vítimas de violência. 

Tudo isso diz respeito aos trabalhos de cuidado, mas ainda há muito a ser feito. Esse ano trabalharemos sobre outros temas, já estamos elaborando novos projetos. 


"Eu dei início a minha vida política no movimento sindical, na época, foi o espaço que encontrei para lutar por mais vagas nas creches" / Foto: Elson Sempé Pedroso/CMPA

BdFRS - Como foi o seu encontro com a política? 

Abigail Pereira - Eu dei início a minha vida política no movimento sindical, na época, foi o espaço que encontrei para lutar por mais vagas nas creches. 

Me aproximei do Partido Comunista do Brasil, onde milito até os dias de hoje. Conheci o movimento de mulheres. Em 1982, fui uma das fundadoras da União de Mulheres de Caxias do Sul. Foi nesse momento que me deparei com a necessidade de uma maior participação política de mulheres nos espaços de poder decisórios da sociedade. Grande parte do poder masculino não está preocupado com a garantia dos nossos direitos e com as nossas demandas, nunca esteve. 

Se nós já somos invisibilizadas por sermos mulheres, isso é potencializado quando falamos das meninas e mulheres negras

BdFRS -  No dia 24 de fevereiro celebramos os 92 anos da conquista do voto feminino. Como tu avalia esse quase um século da participação das mulheres na política, avanços e o que precisa ser feito para avançarmos ainda mais. 

Abigail Pereira - Nós, mulheres, decidimos ser sujeitas e sempre foi muito difícil: nós tivemos que lutar para ter direito à educação, à escola, porque a única coisa que nós tínhamos direito de estudar era corte e costura. Nós tivemos que lutar para ter direito ao divorcio. A luta pelo voto feminino está dentro destas dezenas de lutas que precisamos construir ao longo da história. Sua conquista foi, sem dúvidas, uma grande vitória das mulheres e de todo o povo. É um absurdo lembrar que nós não podíamos votar, nem sermos votadas! 

Hoje, podemos ver o papel decisivo que as mulheres têm para a garantia da democracia no Brasil. Quando Bolsonaro venceu as eleições, em 2018, fomos nós as primeiras a ocuparmos as ruas com a campanha Ele Não. Além disso, 58% do eleitorado do Lula é feminino. 

Mas claro que ainda estamos muito longe da garantia de igualdade. Os espaços de poder ainda são extremamente masculinizados, e também são extremamente machistas, a violência política de gênero é uma realidade e nos afeta cotidianamente. 

Se por um lado nós avançamos na visibilidade e nas denúncias da violência e do assédio que acontecem historicamente, ainda não avançamos na concretização de um novo modo de estabelecer as relações sociais, a relação entre homens e mulheres. É nosso papel estimular as mulheres a participação política e garantir que esse espaço seja seguro para nós. 

BdFRS - O RS está entre os estados mais violentos em relação à questão de gênero, em especial aos feminicídios. Costumamos indagar o que leva a isso, o que explica essa situação. Na tua opinião, o que pode ser feito para a mudar essa situação? 

Abigail Pereira - É preciso pensar em políticas públicas eficientes e garantir orçamento para isso. Desde o governo Sartori o nosso estado não conta mais com a Secretaria de Mulheres, e nós sabemos que se as políticas não são pensadas por nós, elas também não são executadas a partir das nossas necessidades. Ou seja, é preciso urgentemente retomar a secretaria, mas mais do que isso, fortalecer a Rede Lilás, garantir casas de abrigo e fortalecer as Delegacias Especializadas de Atendimento à Mulher (DEAMs). 

Em Porto Alegre, por exemplo, nós contamos com uma única delegacia da mulher, como a mulher chega até a delegacia? Como ela tem a garantia que chegará viva até aquele local? 

A “receita” para a resolução do problema existe: orçamento e política eficiente. É possível mudar essa realidade, e para isso, é preciso estar nas prioridades do governo. 


"É nosso papel estimular as mulheres a participação política e garantir que esse espaço seja seguro para nós" / Foto: Juliana Marques

BdFRS - Estamos em um ano eleitoral, e no mês de luta das mulheres. Tendo em vista isso, queria te perguntar se já passaste por alguma situação de violência política de gênero. 

Abigail Pereira - Infelizmente, sim. Acho que é inevitável tu ocupar a política - seja qual espaço for - e não sofrer violência. Hoje na Câmara, por exemplo, dos 36 vereadores, somos 9 mulheres e há uma ação diária por parte dos vereadores da base do governo de desqualificar as mulheres de oposição. Já tive falas interrompidas, já precisei ouvir piadas que nunca pedi para escutar e já precisei me impor, por diversas vezes, para reforçar o espaço que ocupo na política. 

Para além disso, sou uma mulher que está na política e que é mãe e avó e, infelizmente, a estrutura masculina que impera na política não abre espaço para que possamos ser incluídas. É preciso mudar a lógica e ocupar o espaço com mais mulheres, tenho muito nítido qual é a minha tarefa: abrir espaço para que outras ocupem e mais do que isso, fazer que quando elas cheguem aqui esteja melhor do que quando cheguei. 

Meu maior desejo é que Porto Alegre volte a ser uma cidade amiga das mulheres

BdFRS - A  Câmara Municipal de Porto Alegre começou a discutir projeto de lei que institui o Programa Municipal de Valorização de Meninas e Mulheres Negras. O que te levou a propor o programa e qual a importância do mesmo? 

Abigail Pereira -  Se nós já somos invisibilizadas por sermos mulheres, isso é potencializado quando falamos das meninas e mulheres negras. O trabalho das mulheres negras não é reconhecido, elas estão na ciência, na política, na educação, na esporte, em todos os espaços. Essa política vem no sentido do reconhecimento e da valorização de tudo que é produzido por elas. 

BdFRS - Qual o teu desejo para as mulheres neste 8 de Março? 

Abigail Pereira -  Meu maior desejo é que Porto Alegre volte a ser uma cidade amiga das mulheres, que possamos viver uma vida digna, com direitos, emprego, renda, vagas nas creches para todas as crianças e mais mulheres na política!

Fonte: BdF Rio Grande do Sul

Edição: Marcelo Ferreira