ARGENTINA

O cinema argentino enfrenta a motosserra de Javier Milei

Ajuste promovido pelo presidente avança contra o organismo nacional dedicado ao fomento e promoção do cinema e das artes

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O cinema é um dos setores com maior crescimento em relação à geração de emprego nos últimos anos no país - LUIS ROBAYO / AFP

O avanço do desmantelamento do Estado argentino por parte do Governo de Javier Milei continua e esta semana trouxe uma série de medidas que atacam diretamente o Instituto Nacional de Cinema e Artes Audiovisuais (Incaa). 

“A atividade está completamente parada, há três meses. Então, o que se vive é uma desolação, não sabemos o que pensar sobre o que vai acontecer, na atividade não se pode ter nenhuma previsibilidade hoje em dia. Por isso não está havendo filmagem”, conta Mayra Bottero, roteirista, produtora e diretora de cinema, em relação à situação atual de uma das indústrias cinematográficas mais desenvolvidas da América Latina. 

Ela também relata que os processos de pós-produção estão sem atividade, portanto técnicos, profissionais, autores que desenvolviam suas atividades em torno do cinema, encontram-se hoje sem trabalho. “Não há mais apenas uma ameaça próxima de ficar sem trabalho. Isso já é um fato”, relata Bottero. 

A paralisia prejudica a economia argentina, contribuindo com 967.241 milhões de pesos por ano e representa 5,2% da receita. 

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O setor gera direta e indiretamente 3,1% do emprego nacional, o que se traduz em um total de 634.465 postos de trabalho. Além disso, o cinema é um dos setores que mais gerou emprego nos últimos anos. 

Entre 2007 e 2022, os postos de trabalho diretos relacionados cresceram 45% e, se levarmos em conta o aumento anual entre os anos 2021 e 2022, o número foi de mais de 17%, o que torna a indústria audiovisual um dos setores da economia argentina com maior dinamismo. 

Motosserra ao Incaa 

Grande parte do desenvolvimento audiovisual na Argentina se deve às políticas públicas que promovem a produção audiovisual. Desde 1968, existe uma Lei que promove e fomenta a atividade cinematográfica nacional (Lei 24.377, ex Lei 17.741).

O incentivo, financiamento e promoção desta atividade econômica e cultural estão a cargo do Instituto Nacional de Cinema e Artes Audiovisuais, entidade pública não estatal que funciona no âmbito do ex-Ministério da Cultura da Nação (hoje reduzido a secretaria), que tem escritórios e funcionários, administra fundos que provêm, em sua maioria, do setor privado por meio de alocações específicas e é uma entidade autônoma, ou seja, o Governo nacional não define nem interfere em suas ações. 

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No entanto, a administração Milei decidiu iniciar o desmantelamento do Incaa. Na madrugada da última terça-feira (12), o Executivo ordenou por meio da Resolução 16/2024 suspender todas as despesas e todo apoio econômico; a não renovação dos contratos com vencimento em 31 de março; a suspensão do pagamento de horas extras; a suspensão das viagens pessoais, e o financiamento de festivais. 

A delegada da Associação de Trabalhadores do Estado correspondente ao Incaa, Ingrid Urrutia, indica que “o plano que eles têm é reduzir o Incaa à sua mínima expressão e isso implica um ataque direto ao cinema nacional”. 

Segundo análises do sindicato, a não renovação dos contratos resultará na perda do emprego de 170 pessoas, ao mesmo tempo que referem que as autoridades expressaram sua vontade de avançar com a revisão dos 645 funcionários que são empregados permanentes do instituto, com aposentadorias voluntárias ou antecipadas. 

“Perder cada um desses empregos significa perder uma das tarefas essenciais deste instituto que os seus trabalhadores amam, que os seus trabalhadores defendem, e que não vão deixar avançar assim uma gestão como esta que decidiu vir para tudo, simplesmente”, declarou Urrutia. 

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A justificativa oficial 

A decisão do Executivo nacional não é surpresa, dado que em sua campanha presidencial havia assegurado que iria fechar o Incaa, assim como os meios públicos e a agência Télam, que foi desativada no início de março e todo o pessoal foi dispensado. 

Em seu discurso, Milei afirmava que esses organismos do Estado não são rentáveis. “Se gera déficit, é porque você não gera um produto atraente para o mercado. Em condições normais não deveria existir, deveria falir. E se não faliu, é porque justamente está financiada por um subsídio, por isso de alguma maneira alguém tem que pagar”, afirmou em agosto de 2023 o então candidato presidencial a uma rádio local. 

A mesma linha teve o comunicado emitido pelo Ministério do Desenvolvimento Humano que acompanhou a resolução administrativa, onde justifica o início de “um processo de reorganização do Incaa” visando "reduzir drasticamente os gastos do instituto”. 

Segundo expressa a comunicação oficial, a instituição registra “um déficit de US$ 4 milhões (quase R$ 20 milhões), uma parte financiada pelo Tesouro Nacional e a outra adiada e a ser paga pela atual administração. É falso que o Incaa se autofinancia”. E finaliza com “nosso compromisso com o déficit de 0 por cento é inegociável. Acabaram os anos em que se financiavam festivais de cinema com a fome de milhares de crianças”. 

Organismo autofinanciado 

Para a delegada sindical do Incaa, “esse Ministério que de humano tem pouco, e de desumano tem tudo” baseia sua decisão em duas falsidades: “A primeira é que o Incaa tem um déficit de US$ 4 milhões de dólares, na verdade, esses recursos são partes do Tesouro Nacional solicitadas durante o ano passado e não são dívidas, foram solicitadas para fundos específicos e a Economia os designou”. 

De fato, o instituto de cinema se financia principalmente através do Fundo de Fomento Cinematográfico (FFC), estabelecido pela Lei 24.377 de 1994. Ele é composto por um imposto de 10% sobre o preço dos ingressos de cinema, 10 % do preço da venda de “vídeos gravados” (como DVDs) e 25 % da arrecadação do Ente Nacional de Comunicações (Enacom), a partir do imposto sobre o faturamento dos canais de TV e serviços de cabo, e outros itens menores. 

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Os defensores da instituição indicam que o organismo se autofinancia. Segundo o Orçamento 2021, o FFC representou 77 % das despesas do Incaa e, no Orçamento 2022, o fundo cobriu 80 por cento do dinheiro utilizado. 

Em segundo lugar, “em relação à fome e à pobreza que existem em nosso país, não é responsabilidade do cinema”, enfatiza Urrutia, que destaca que o cinema tem veiculado as denúncias das responsabilidades políticas dos diferentes governos que permitiram as desigualdades e “que as classes populares sempre acabam pagando pelas decisões econômicas de continuar endividando nosso país com o FMI”. 

“O cinema nacional não é responsável [pela fome], não se tira a comida da boca de nenhuma criança por fomentar o cinema nacional, mas ao contrário, hoje temos centenas de refeitórios em nosso país que não estão recebendo alimentos e isso não é culpa do cinema, porque o cinema está parado e não se está dando um centavo ao cinema”, finalizou. 

Todos unidos pelo cinema nacional 

Como resposta, vários setores da cultura manifestaram sua solidariedade ao Incaa, seus trabalhadores e o setor em geral. De vários espaços, são convocadas diariamente múltiplas atividades visando conscientizar a comunidade em geral sobre a importância do instituto e denunciar o ajuste irracional promovido pelo Executivo.

Urrutia, da sede do Cine Goumont, cinema recuperado e gerido pelo Incaa para divulgar o cinema nacional, conta que “começamos a nos organizar e estamos convocando não só os trabalhadores, mas o setor para que se mobilize, que façamos isso em unidade, que temos muito a defender. Que não é apenas mais um organismo do Estado, é um orgulho nacional”. 

Por sua vez, Bottero diz que “eu, em particular, estou tentando participar o máximo que posso, a partir da plataforma Unidxs pela cultura, nos organizar, entrar em ação, poder dizer à comunidade, à nossa população, mas também à população internacional que o que está acontecendo não tem precedentes nas últimas décadas. Não se pode permitir.”