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Réu por transfobia, Nikolas acusa promotores que o denunciaram de expor a adolescente trans

Após falar da jovem para seus 230 mil seguidores no YouTube, deputado diz temer proporção midiática do processo judicial

Brasil de Fato | Brasília (DF) |
Nikolas Ferreira tampouco pediu segredo de justiça para o processo, no qual a vítima é uma adolescente de 14 anos - Pablo Valadares/Câmara dos Deputados

Réu na Justiça de Minas Gerais, acusado de expor de maneira transfóbica uma jovem menor de idade e transexual por usar o banheiro de um colégio particular em Belo Horizonte, o presidente da Comissão de Educação da Câmara dos Deputados, Nikolas Ferreira (PL-MG), acionou a Corregedoria do Ministério Público de Minas Gerais (MPMG) contra os promotores que o denunciaram. 

Na representação, encaminhada em 20 de dezembro de 2023 à Corregedoria, Nikolas pede que seja reconhecida a suspeição dos promotores e que eles sejam afastados do caso. Entre os motivos apontados está o fato de terem apresentado a denúncia contra ele sem sigilo de justiça, o que, nas palavras do parlamentar, pode levar a uma exposição indevida da menor de idade e a uma "possível violação aos direitos da criança e do adolescente, em especial, àqueles previstos no Estatuto da Criança e do Adolescente".

O Brasil de Fato teve acesso ao procedimento para investigar a atuação dos promotores do MPMG, aberto em decorrência da representação do parlamentar, que tramita sob sigilo na Corregedoria do órgão.

No pedido, o deputado responsável por expor a menor de idade em 2022 no seu canal do Youtube — que tinha na época 230 mil seguidores — afirma estar preocupado com o fato de, nos autos da ação penal, constarem dados pessoais, como endereço e telefone de contato, além do nome da jovem.  

"Não bastasse isso, a situação se demonstra ainda mais gravosa, vez que 92 (noventa e duas) pessoas que sequer possuem relação com a causa, tampouco com os fatos aqui narrados acessam, diariamente, o processo. Indago-lhe, Excelência, qual a proporção midiática poderá tomar um processo público envolvendo a menor e o Deputado Federal mais votado da história? Com sorte, apenas nacional", segue o parlamentar. 

Mais à frente, o deputado indica demonstrar preocupação com eventuais riscos à jovem. "Imagine agora, se as 92 (noventa e duas) pessoas que acessaram o processo decidissem ligar para a menor? Não teriam um trabalho sequer, tendo em vista que os Promotores colacionaram suas informações de maneira detalhada, colocando-a em suposto risco seja como vítima ou testemunha".

Apesar das alegações de Nikolas, até o momento não há registro nos autos da ação penal de que a jovem tenha sido procurada por pessoas que acessaram os autos.

Diferente do vídeo divulgado no Youtube do parlamentar, disponível para o público até hoje na internet, o processo judicial está disponível na íntegra apenas no sistema eletrônico do TJMG, que é acessado somente por usuários cadastrados (operadores do direito como advogados e servidores da Justiça e do Ministério Público) e identificados a cada acesso.

Diante da manifestação, a Corregedoria do Ministério Público de Minas pediu uma manifestação de cada um dos três promotores que atuaram na investigação envolvendo Nikolas Ferreira e abriu uma Reclamação Disciplinar, um procedimento preliminar para apurar suspeitas de irregularidade na atuação dos promotores. No âmbito desse procedimento, a Corregedoria também solicitou à Justiça de Minas acesso a ação penal envolvendo Nikolas. A juíza responsável pelo caso, Kenea Márcia Damato de Moura Gomes, da 5ª Vara Criminal de Belo Horizonte, autorizou o compartilhamento dos autos da ação com a Corregedoria na última segunda-feira, 11 de março. 

Em resposta às colocações de Nikolas, os investigadores afirmaram que, via de regra, o sigilo das ações penais é uma exceção e pontuaram que em nenhum momento a defesa do deputado, que já teve acesso à ação penal, solicitou que fossem colocados em sigilo os dados da jovem transexual.

Além disso, os integrantes do MPMG lembraram que o próprio juiz do caso pode, a qualquer momento, decretar sigilo das informações da ação penal caso considere necessário. Todas as manifestações, tanto de Nikolas quanto dos promotores, estão sob análise da Corregedoria do MPMG, que vai avaliar se houve ou não algum tipo de falta funcional.

Eventos, bandeira LGBTQIA+ e artigo acadêmico 

Na representação, o deputado ainda elenca uma série de episódios para acusar os três promotores do caso de serem parciais na condução das investigações e afirma que, dos três que assinam a denúncia, dois integrantes do Ministério Público sequer participaram de fato das investigações e tampouco teriam sido designados para atuar no caso.

Para argumentar a suposta parcialidade, ele lista desde o fato de um dos promotores do caso destacar em seu perfil no Linkedin que é um "defensor de minorias", até a participação dos promotores em diferentes eventos e audiências públicas. 

Em resposta à Corregedoria, os investigadores alegaram que as participações em eventos como audiências públicas e debates, além do contato com entidades que atuam com temas da mesma área de atuação deles fazem parte da própria rotina de atividades dos promotores do Ministério Público.

Por exemplo, um dos investigadores, que é lotado na Promotoria de Defesa de Direitos Humanos, participou de uma audiência pública na Assembleia Legislativa de Minas Gerais para debater a violência política e de uma outra na mesma Casa para discutir os impactos da decisão do Supremo Tribunal Federal de agosto do ano passado que equiparou as ofensas à população LGBTQIA+ aos crimes de injúria racial. O mesmo investigador participou de um encontro em um bairro de Belo Horizonte para receber denúncias de agressões de policiais do Bope a prostitutas da região.

Até a participação do promotor em uma audiência no Tribunal de Justiça do Estado de Minas Gerais por videochamada é usada por Nikolas para questionar sua imparcialidade , uma vez que aparece ao fundo do vídeo uma bandeira com as cores do arco-íris e a expressão "human rights". 

Outro fato levantado por Nikolas para questionar a parcialidade dos promotores foi uma nota pública assinada por uma das investigadoras, junto com centenas de entidades do mundo jurídico, condenando uma fala do então presidente Jair Bolsonaro, em 2019, que afirmava: "Quem quiser vir aqui (no Brasil) fazer sexo com uma mulher, fique à vontade. Agora, não pode ficar conhecido como paraíso do mundo gay aqui dentro". 

O deputado lista ainda a participação de uma investigadora em uma audiência pública do próprio MPMG sobre a população trans e o sistema socioeducativo, e até a participação de uma das promotoras em uma live com a então vereadora transexual de Belo Horizonte, Duda Salabert (PDT) sobre a inclusão da população LGBTQIA+, realizada em 2021. Assim como Nikolas, Duda foi eleita deputada federal por Minas Gerais em 2022.

Até mesmo um artigo publicado por uma das promotoras do caso em uma revista interna do MPMG é citado por Nikolas para alegar a imparcialidade dela no caso.

Apesar dos questionamentos do parlamentar para tentar afastar do caso os promotores que o denunciaram, os ministérios públicos estaduais e o Ministério Público Federal em todo o país tem dentre suas atribuições a atuação na defesa de direitos humanos, o que inclui a defesa de minorias como a população LGBTQIA+. Além disso, é comum que promotores e procuradores que atuam nestes temas participem de eventos e audiências públicas sobre suas áreas de atuação, e mesmo produzam artigos e trabalhos acadêmicos a respeito do assunto. 

Nikolas ainda chega a alegar ainda que nem ele nem sua irmã foram intimados para depor na investigação do episódio no qual ele é acusado de transfobia e, além disso, questiona o fato de uma das promotoras que assina a denúncia ser da área de Saúde e outra da área de Defesa da Infância e do Adolescente. Ainda segundo o parlamentar, as duas não teriam sido designadas pelo chefe do MPMG para atuar neste caso específico.  


MPMG procurou Nikolas ao longo da investigação / Reprodução

Em relação à intimação, os próprios autos do processo no qual Nikolas é réu mostram que o MPMG procurou o deputado ao longo da investigação e perguntou se ele gostaria de se manifestar a respeito, em julho de 2022. Na ocasião, os advogados dele encaminharam uma defesa por escrito no mês seguinte alegando, dentre outros pontos, a imunidade parlamentar de Nikolas e que ele teria somente expressado sua opinião, sem expor o rosto da jovem trans que aparece no vídeo. 

"A simples intenção em informar um ocorrido a outras pessoas, ou a discordância do assunto e a exposição da opinião contrária ao defendido pela comunidade LGBTQIA+, não configura o delito racismo, pois, sabidamente, para que haja o referido crime, é necessário o dolo específico de ofender a coletividade, e, a simples exposição de sua opinião, prerrogativa esta conferida pela Constituição Federal como direito fundamental, não configura preconceito ou discriminação, de intolerância ou aversão à classe dos homossexuais, ou transexuais", afirmou a defesa do deputado ao MPMG em defesa encaminhada em setembro de 2022. 

Em relação à designação das promotoras, os investigadores explicaram tratar-se de um esforço conjunto das áreas devido a complexidade do caso, e que foi solicitada à chefia do MPMG e autorizada a atuação em conjunto no caso. 

Réu por transfobia 

O Brasil de Fato também teve acesso aos autos da ação penal, na qual o MPMG pede que Nikolas seja condenado à prisão, à perda de mandato e ao pagamento de multa pelo crime de transfobia. Com isso, em caso de condenação, o MPMG pede que ele seja submetido ainda a penas que variam de 2 a 5 anos de prisão mais multa.

Em 2022, Nikolas divulgou um vídeo gravado por sua irmã que mostra uma jovem trans no banheiro do colégio em que ela estudava. Ao expor a situação, o então vereador chegou a pedir para que os pais retirassem seus filhos do colégio. Para o MPMG, o episódio configurou discurso de intolerância contra a população transexual. 

"O acusado, ao se referir a todo momento à pessoa de XXXX*, menina transexual de 14 anos de idade, como menino, vociferando que ela seria um 'estuprador em potencial', chamando de 'ousadia' o fato dela frequentar o banheiro do gênero com o qual se identifica, e que sua presença constrangeria as demais alunas, revela, em verdade, seu preconceito contra todas as pessoas transexuais, evidenciando, portanto, flagrante discriminação atentatória de direitos e liberdades fundamentais de grupo de vulneráveis, praticado em razão, única e exclusivamente, da identidade de gênero da vítima", diz a denúncia que foi recebida em setembro do ano passado. 

A defesa de Nikolas apresentou à Justiça seus argumentos, semelhantes aos que haviam sido apresentados em 2022: apontam que ele teria imunidade parlamentar devido ao seu cargo de vereador na época e também que ele teria apenas manifestado sua opinião sobre o uso de banheiros por transexuais, tendo preservado o rosto da jovem trans exposta. Sua defesa pede ainda a anulação da denúncia e da investigação e que seja reconhecido que o conteúdo de seu vídeo não configuraria crime. 

A reportagem tentou contato com a assessoria de Nikolas Ferreira por telefone e por mensagens, mas ninguém atendeu nem retornou as mensagens. O espaço está aberto para a manifestação do parlamentar.  Por meio de nota, o Ministério Público de Minas Gerais informou que o procedimento da Corregedoria tem prazo de 120 dias para ser concluído, podendo ser prorrogado por mais 120.

* A reportagem preservou o nome e as iniciais da menor de idade

Edição: Matheus Alves de Almeida