Legislativo chinês

Principal evento político da China aposta na modernização econômica e autossuficiência tecnológica do país

As 'Duas Sessões' confirmam tendência de busca por autossuficiência tecnológica e prosperidade comum no país

Pequim|China |
Liang Libin, deputada da Assembleia Popular Nacional da China pela Região Autônoma de Guangxi, no Grande Salão do Povo - 11 de março de 2024 - Mauro Ramos

Evento que marca as diretrizes políticas anuais na China, as Duas Sessões chegou ao fim na  semana passada reforçando algumas das mudanças que o país vem promovendo nos últimos anos, entre elas a incorporação da alta tecnologia em diversas áreas da economia com metas como a autossuficiência tecnológica e a sustentabilidade.

As Duas Sessões são reuniões anuais da Conferência Consultiva Política do Povo Chinês e da Assembleia Popular Nacional (APN). Os mandatos dos legisladores duram 5 anos e, neste caso, vão de 2023 a 2028.

A inovação científica e tecnológica já havia sido considerada central para o desenvolvimento chinês de forma explícita em 2017, durante o 19º Congresso Nacional do Partido Comunista da China (PCCh).

Por isso, a autossuficiência no setor se tornou um dos pilares no 14º Plano Quinquenal da China (2021-2025), onde pela primeira vez houve um capítulo dedicado à tecnologia.

Por que tecnologia?

A razão mais óbvia são as crescentes restrições dos EUA e aliados impostas à China no setor tecnológico, explica Zhou Linwen, editor-chefe de ciência e tecnologia da The China Academy

Após a entrada em vigor em novembro do ano passado de uma nova série de restrições da administração Biden à indústria de semicondutores chinesa, o chamado Comitê Seleto sobre o PCCh da Câmara dos EUA pediu “medidas urgentes” para conter a dependência dos EUA dos chips menos avançados produzidos na China, sugerindo inclusive tarifas de importação.

Para Linwen há ainda três motivos, um deles sendo o econômico: “Com o vasto mercado de 1,4 bilhão de pessoas em melhores condições, os investimentos em pesquisa e desenvolvimento fazem muito sentido, uma vez que podem ser recuperados mesmo no pior cenário, onde a tecnologia acaba sendo adotada apenas na China. Depois de desenvolver a tecnologia local, todo o mercado interno será o seu ‘playground’”.

Outro motivo é que com a grande capacidade industrial chinesa, o custo pode ser reduzido e portanto o acesso às tecnologias, ampliado. “O que está acontecendo com os veículos elétricos é um exemplo disso: os fabricantes chineses dominam todas as tecnologias críticas, especialmente as baterias. O resultado é que eles estão atualmente tentando superar uns aos outros, oferecendo novos modelos de carros com preços mais baixos e melhor desempenho”, diz Linwen. 

O especialista também afirma que “monopolizar uma tecnologia e extrair lucros ridículos dela nunca foi a ideia, pois é insustentável e vai contra a tradição coletivista e os ideais socialistas da China”. Assim, o terceiro motivo para a procura pela autossuficiência tecnológica seria poder transferir tecnologia para países parceiros. 

Já há exemplos dessa prática, como a ferrovia de alta velocidade Jacarta-Bandung, um projeto emblemático da Nova Rota da Seda, em que a China transferiu tecnologia e conhecimento em transporte ferroviário de alta velocidade para a Indonésia. 


Trem de Alta Velocidade em Bandung, Indonésia - 21 de junho de 2023 / Xu Qin | Xinhua

Novas forças produtivas de qualidade

“Isso é algo que a China vem adotando há um tempo já, mas agora foi colocado em uma abordagem sistemática”, diz Yang Debin, deputado da APN pela Região Administrativa Especial de Hong Kong, em relação à ideia de novas forças produtivas de qualidade, destacadas nas Duas Sessões como a principal tarefa a desenvolver este ano.

“Particularmente, estas novas forças devem envolver transformações digitais para transformar as indústrias tradicionais em formas ainda mais inovadoras de fazer as coisas”, explica Debin que também é presidente da Associação Internacional de Tecnologia da Informação da Grande Área da Baía, que abrange Hong Kong , Macau e nove cidades da província de Guangdong.

A ideia foi proposta pelo presidente chinês, Xi Jinping, em setembro do ano passado, em uma visita à província de Heilongjiang.

Na primeira sessão de estudos do escritório Político do PCCh deste ano (que o órgão realiza regularmente desde 2002), a nova proposta esteve em pauta. Ali, o mandatário chinês afirmou que as novas forças produtivas de qualidade referem-se a uma produtividade liderada pela inovação e “livre do modo tradicional de crescimento econômico”.

“Os esforços neste sentido nunca devem ser confusos e as bolhas [financeiras] devem ser evitadas. Também deveríamos nos abster de seguir um modelo único”, disse o mandatário chinês em uma reunião da delegação da província de Jiangsu durante as Duas Sessões.

Marco Fernandes, pesquisador do Instituto Tricontinental considera que o conceito já havia sido lançado nas Duas Sessões do ano anterior, sob o termo “desenvolvimento de alta qualidade”.

“Eu queria chamar atenção para as duas palavras: “desenvolvimento” é um termo liberal, ‘forças produtivas’ é um conceito clássico do marxismo, acho que também essa mudança reflete um debate ideológico e mudanças ideológicas que estão acontecendo no interior do Partido Comunista”, avalia o pesquisador.

“Isso reflete as mudanças na sociedade chinesa, um embate entre um pensamento liberal, que ainda é muito forte na China, e cada vez mais um retorno da influência marxista nos rumos da economia e nos rumos da política do país”, conclui.

Fernandes também associa a menção do mandatário às “bolhas” ao setor imobiliário. “No final de 2017, o presidente Xi Jinping diz ‘casas são para morar não para especular’, o recado estava dado, a partir daí os empréstimos vão despencando até chegar 2020, quando a China institui a política das três linhas vermelhas”. Essa política foi desenvolvida para reduzir o nível de endividamento das empresas no setor.

O pesquisador menciona dados do Banco Popular da China (o banco central do país) que mostram que, ao mesmo tempo em que os empréstimos ao setor imobiliário foram despencando, o setor Industrial tem uma disparada de investimentos “até chegar agora num crescimento de 30% em 2023 em comparação com menos de 5% do setor imobiliário”.

“Isso dá um pouco a tônica da política econômica chinesa nos últimos anos e que vai continuar assim: cada vez mais investimentos na indústria e menos no setor altamente especulativo e perigoso para a economia que é o imobiliário”.

Prosperidade Comum e Educação

Entre as expectativas dos 2.900 legisladores e legisladoras está a de fortalecer o desenvolvimento de todas as regiões, seja com o turismo, agricultura ou indústrias, com o objetivo declarado de perseguir a prosperidade comum.

Em 2022, a realização gradual dessa prosperidade comum foi incorporada como meta na Constituição do Partido Comunista da China (PCCh).

A deputada pela Região Autônoma de Guanxi, Liang Libin, disse ao Brasil de Fato que este ano espera que haja esforços ainda maiores em termos de transferências financeiras e de apoio para acelerar o desenvolvimento de sua província. 

Libin é da etnia Zhuang, que representa um terço da população de Guanxi, que por sua vez é a região com a maior quantidade de população de grupos étnicos, 20 milhões. “O secretário-geral [do PCCh] Xi Jinping disse que nenhum grupo étnico pode ser deixado para trás no caminho para a prosperidade comum, sendo uma região com predominância de umas das 56 etnias, Guangxi tem recebido nos últimos anos apoio do país em termos de reconfiguração industrial, para a educação básica e a unidade da etnia”.  

A região de Guangxi é historicamente uma das mais empobrecidas da China. A taxa de pobreza rural caiu de 70% em 1978 para 5,7% no final de 2017. Ela foi um dos focos da campanha de erradicação da extrema pobreza finalizada em 2020. Segundo dados do governo, em 2019 cerca de 1.268 povoados foram retirados da lista da pobreza, somando cerca de 1,25 milhão de pessoas.

De acordo com o relatório do governo entregue e já aprovado pelo Congresso, a despesa geral do orçamento público aumentou 4%, e chegará este ano a cerca de 28,55 trilhões de yuans (quase R$ 20 trilhões). 

O investimento em educação, entendida como fonte de inovação tecnológica, e fundamental para a mais recente prioridade de novas forças produtivas de qualidade, deverá ser de 4,3 trilhões  de yuans (quase R$ 3 tri).  

Em coletiva realizada em 6 de março, Lan Fo'an, Ministro das Finanças afirmou que de 2019 a 2023, os gastos nacionais com educação aumentaram 18,5%.  

Algumas das reuniões das delegações das sessões da Assembleia Nacional Popular são abertas à imprensa. O Brasil de Fato teve acesso à da província de Hainan. Durante a parte da coletiva, ao ser questionado sobre as ações do governo para garantir as condições de vida, o deputado Liu Xiaoming mencionou dados sobre acesso à moradia, geração de empregos, saúde e educação.

“Nos últimos anos, implementamos projetos como ‘uma cidade, duas escolas e um parque’, introduzindo mais de 60 escolas primárias e secundárias e jardins de infância, fornecendo mais de 160.000 vagas de alta qualidade”. O deputado por Hainan informou que até 2025, a província deve disponibilizar pelo menos 120 mil vagas públicas de educação básica.

Mudança na estrutura estatal

Na segunda-feira (11), dia de encerramento da sessão da ANP, os legisladores aprovaram a nova Lei Orgânica do Conselho de Estado, que não era alterada desde 1982. 

O Conselho de Estado se mantém como órgão administrativo mais alto (sendo a APN o órgão máximo de poder). A mudança também incorporou o presidente do Banco Popular da China como membro do Conselho de Estado.

Li Hongzhong, vice-presidente do Comitê Permanente da APN, disse que a mudança foi um passo necessário para que o Conselho de Estado defenda a liderança geral do partido que o Conselho possa “aderir ao seu princípio centrado no povo e seu propósito fundamental de servir o povo”. 

Edição: Rodrigo Durão Coelho