Direitos humanos

Mesmo sob Milei, Argentina segue punindo repressores da ditadura

Especialistas, no entanto, apontam dificuldades como idade avançada dos acusados e lentidão nos tribunais do país

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Organizações como as Avós da Praça de Maio lutam há anos por reparação e justiça - Abuelas de Plaza de Mayo

Cinquenta anos atrás, dois anos antes do golpe de Estado de 1976 na Argentina, a Brigada de Investigações de Banfield se transformava no "Poço" e começava a operar como um centro clandestino de detenção. Para a semana seguinte a este Dia da Memória, Verdade e Justiça celebrado neste domingo (24), espera-se que o julgamento pelos crimes contra a humanidade cometidos naquele lugar recebam uma sentença.

O debate, conhecido como “Das Brigadas”, tem 11 acusados por delitos cometidos contra 605 vítimas em três centros e tramita na Justiça Federal de La Plata há três anos. O dado é relevante porque apesar do aumento do discurso negacionista e reivindicatório da ditadura no país, os processos penais continuam e somam 1.207 condenações a genocidas e mais de 300 sentenças.

Atualmente, há 14 julgamentos orais abertos que se realizam em sete províncias argentinas. Desde o retorno da democracia, em 1983, concluíram-se 342 julgamentos com sentença que condenaram mais de mil repressores, dos quais 517 pertenciam às Forças Armadas, 492 às Forças de Segurança e 198 civis. Esses números estão organizados no site Julgamentos de Lesa Humanidade, uma base de dados da Secretaria de Direitos Humanos da Argentina para comunicar e impulsionar o desenvolvimento do processo de Memória, Verdade, Justiça e Reparação, que foi colocado online e vem sendo atualizado desde 2021.

Em média, nas quase três décadas que passaram do julgamento para as reuniões até a atualidade, foram condenados 31 repressores por ano. O número ganha relevância considerando o período de impunidade que abriram as leis de "obediência devida" (1986) e "ponto final" (1987), que só terminou em 2006 com a reabertura dos julgamentos.

O último relatório anual da Procuradoria de Crimes contra a Humanidade do Ministério Público sobre o estado dos julgamentos informa que os processos penais por crimes contra a humanidade gozam de um estado relativamente bom, com mais de 20 sentenças por ano, com exceção de 2018, que registrou duas a menos e a queda para apenas 11 durante a pandemia de 2020. Ainda assim, esse mesmo relatório indica que o ano passado terminou com 77% dos condenados por delitos de lesa humanidade em prisão domiciliar. Ou seja, os genocidas estão presos, mas em suas casas.

“A situação dos julgamentos orais não mudou muito nos últimos dez anos. Temos julgamentos todos os dias em todo o país, mas cada um desses julgamentos é lento, muito lento”, diz o advogado Pablo Llonto, que atua em julgamentos de crimes contra a humanidade. Ele adverte que esse ritmo gera longos processos penais nos quais os acusados morrem ou são declarados incapazes ao longo do caminho.

“A responsabilidade é da Corte que pode emitir resoluções que estabeleçam a prioridade desses julgamentos [pela idade das vítimas, testemunhas e acusados] mas não o faz. A Corte tem que convocar a Comissão de Interpoderes que foi criada em 2009 para acelerar os julgamentos e faz três anos que não é convocada”, acrescenta.

O problema do processo de justiça em relação à impunidade biológica fica evidente na base de dados da plataforma Julgamentos de Lesa Humanidade: dos 15 debates em curso, em 10 há acusados que faleceram e 9 foram declarados incapazes.  

A filha de desaparecidos e advogada Verónica Bogliano concorda que o principal obstáculo dos julgamentos é a lentidão. “Temos audiências uma vez por semana ou a cada 15 dias. O tempo que o processo penal demora faz com que muitas das vítimas e dos acusados morram ou que até mesmo haja acusados que não cheguem ao julgamento. Embora nos últimos tempos os julgamentos sejam realizados com causas acumuladas, são muito longos”, detalha a requerente da Subsecretaria de Direitos Humanos da Província de Buenos Aires.

Os julgamentos na era Milei  

“O governo de Javier Milei veio disposto a criar um clima com o Executivo para que uma parte da sociedade se coloque do lado do golpe, da ditadura, dos assassinatos, das torturas, dos centros clandestinos, dos desaparecimentos, dos voos da morte”, diz Llonto. "A luta que temos que ter é educativa e com os jovens."  

Para Bogliano, esse clima é visto no dia a dia dos julgamentos, sendo o lugar onde falam os repressores, um dos setores que mais comemorou em novembro após a vitória de Milei. “Os acusados estão mais valentes e reavivam discursos de ódio, negacionistas, ou, como ocorreu em ampliações indagatórias, passam o tempo criticando e até provocando os requerentes”, conta a advogada.  

“No julgamento de Bahía Blanca [Megacausa Zona V] os acusados repetem a teoria dos dois demônios, reivindicam a ação da ditadura e se colocam como vítimas, e embora isso já ocorresse esporadicamente, agora é constante. No julgamento das Brigadas, em muitos casos os defensores fazem uma defesa política, antes que jurídica. Isso é uma mudança que se nota em relação aos acusados e defensores”, completa. “A partir do momento em que começarmos a ter sentenças, vamos ver qual será o tom que os juízes vão tomar”, concluiu.  

Passados 48 anos do golpe de estado genocida de 1976 e 40 anos de democracia, o avanço do processo de Memória, Verdade e Justiça é tangível. E o estado dos julgamentos por crimes contra a humanidade parece estável.

“Dezoito anos se passaram desde a reabertura dos julgamentos, agora há uma compreensão maior do que aconteceu durante a ditadura graças à quantidade de testemunhos e investigações”, detalha Bogliano. No mesmo caminho, Llonto aponta: “Em geral, a maioria dos governos e estados do mundo apoia o curso e desenvolvimento dos julgamentos de crimes contra a humanidade na Argentina e o veem como exemplo mundial; 320 sentenças, 1.200 condenados e 137 netos recuperados são a resposta destes anos."