Rio Grande do Sul

Coluna

Marielle, corpo e território

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"Não permitir que o racismo institucional determinasse o silenciamento sobre o assassinato de Marielle sempre foi questão de honra, sobretudo aos movimentos negros e feministas" - Nunah Alle/Mídia Ninja/Flickr
Mais do que nunca, memória, verdade e justiça

“Quando a mulher negra se movimenta, toda a estrutura da sociedade se movimenta com ela." Após a histórica frase proferida por Angela Davis em Salvador, no ano de 2017, não imaginávamos enterrar Marielle Franco oito meses depois, três meses após ser eleita vereadora no Rio de Janeiro. Talvez porque a alegria fosse tanta, na aposta da via democrática como aquela que pudesse ser capaz de operar a reversão de séculos de colonialidade. 2202 dias depois de seu assassinato, ocorrido uma semana depois das multitudinárias manifestações do 8 de março, sabemos: quem matou Marielle Franco foi o Estado.

Quando uma mulher como Marielle é assassinada - e conjugo o verbo no presente, pois estamos cientes do risco que correm todas as mulheres negras, e também indígenas, que ocupam cargos políticos no país - como uma grandeza diretamente proporcional, passamos a reconhecer quais os entraves estruturais da sociedade constituída pela força de trabalho dessas mulheres e seus antepassados.

É preciso recordar a campanha difamatória que se sucedeu após sua execução: no embalo das máquinas de fake news que impulsionaram a eleição do genocida Bolsonaro, mensagens associavam o crime ao mentiroso envolvimento de Marielle com supostos traficantes, procurando induzir a opinião pública às mesmas justificativas que as polícias civis de todo o país utilizam para não investigar as mortes de mulheres negras. Não permitir que o racismo institucional determinasse o silenciamento sobre seu assassinato sempre foi questão de honra, sobretudo aos movimentos negros e feministas.

Mais do que nunca, memória, verdade e justiça.

E porque todos os signos contemporâneos estão para serem devidamente preenchidos de significado, sob o risco de serem distorcidos, soubemos os nomes dos mandantes do assassinato de Marielle Franco - o deputado federal Chiquinho Brazão, seu irmão Domingos Brazão, conselheiro do Tribunal de Contas do Estado, e Rivaldo Barbosa, ex-diretor da Polícia Civil do Rio de Janeiro - em 24 de março de 2024, dia internacional do Direito à Verdade sobre as violações de Direitos Humanos. No país ao lado, milhões nas ruas em um feriado histórico de reafirmação de todas as pessoas mortas, torturadas e desaparecidas durante a ditadura cívico-militar e eclesiástica argentina junto às mulheres que reclamam seus filhos, filhas e netos há cinco décadas... Na figura de Marielle, atualizamos a data e nos irmanamos.

Agora sabemos que a motivação da encomenda de sua morte está vinculada a uma das questões mais dramáticas enfrentadas na atualidade: o direito à terra e aos territórios por parte das comunidades, sejam elas originárias ou periféricas, em Gaza ou aqui. É preciso situar o contexto brasileiro: após quatro séculos de exploração colonial, entre os anos 1960 e 1980, o Brasil sofreu um dos maiores êxodos rurais da história da humanidade como reflexo da política instituída pela ditadura militar no período. A formação das grandes metrópoles brasileiras nos moldes que vemos hoje está intimamente relacionada com a perseguição, tortura e violência vivenciadas nos campos, a extinção de cidades com o encerramento de linhas férreas e a grilagem de terras por parte das oligarquias, que hoje ocupam bancadas no Parlamento.

Reorganizada a lógica das capitanias hereditárias pela institucionalização da propriedade do latifúndio, parte da disputa pelo direito à terra se amalgama em zona urbana, constituindo, ao longo das décadas, a luta pela reforma urbana, as políticas de moradia e o direito à cidade. Marielle é fruto desses deslocamentos, dessas geografias, sociologias e ontologias políticas do território. Por isso, ouso dizer, sua força tectônica - nesses seis anos, quantas vezes nos perguntamos quantos séculos foram necessários para a existência de Marielle?

É preciso não dissociar o discurso, tratando a questão das milícias desvinculada da responsabilidade do Estado. Seria até mesmo um contra senso, uma vez que as milícias surgem, se fortalecem e se sustentam justamente por contar com todo o aparato do Estado. A militarização do espaço é uma tendência que vem se constituindo como um modo hegemônico de ocupar e gerir os territórios no atual estágio do capitalismo, capilarizada em tal dimensão que pode ir desde o estado de apartheid ao condomínio privado.

O Rio de Janeiro é a materialização desta realidade hegemônica construída historicamente. E um ponto importante a ser ressaltado: a especulação imobiliária de alto luxo - essa da qual os Bolsonaro, os Brazão e tantos outros clãs se beneficiam - é a maneira mais eficaz de tanto grilar terras quanto lavar o dinheiro do tráfico que opera através das milícias, afinal, família, tradição e propriedade são instituições que estão para o Estado tanto quanto o capitalismo tem estado para o patriarcado, e vice versa.

Outra lição a ser aprendida com o desvendar do assassinato de Marielle e suas motivações é a de que não há morte de militantes pela reforma urbana sem real intenção de execução. A luta da classe trabalhadora do campo e da cidade, nos centros e nas periferias, no deserto árabe e na floresta amazônica atinge diretamente a ordem que se encastela na extrema direita do mundo desde todos os nossos territórios.

Não há enganos, como nos tem sido dito sobre a morte de Sara Domingues, em Porto Alegre. Assim como a morte de Margarida Alves - e de Bertha Cáceres, irmãs Mirabal, Nega Pataxó e tantas outras - nunca foi um mistério: o assassinato dessas mulheres expressa e escancara as disputas cruciais de concepção de vida, sociedade e Estado.

Quantas mortes podem ainda ser evitadas através da reforma agrária, da reforma urbana, da demarcação das terras indígenas, da titulação dos territórios quilombolas, do cessar fogo em Gaza? Qual é esse fio que nos liga de maneira tão semelhante, em territórios tão distintos?

Por isso, hoje e sempre, Marielle presente.

* Benke Yelene, ativista por direitos humanos.

** Este é um artigo de opinião. A visão da autora não necessariamente expressa a linha editorial do jornal Brasil de Fato.

Edição: Katia Marko