Desregulamentação

Modelo de contrato de transporte público em São Paulo facilita lavagem de dinheiro por facções criminosas

Um novo tipo de contratação das empresas foi publicado em 2015, mas ainda não foi implementado pelo governo municipal

Brasil de Fato | São Paulo (SP) |
O PCC utilizou as empresas de transporte para lavar dinheiro proveniente do crime organizado - Rovena Rosa/ABr

A Operação Fim da Linha revelou o envolvimento de uma facção criminosa na administração das empresas Transwolff e UPBus, que operam linhas de ônibus no município de São Paulo.

O Ministério Público, a Polícia Militar de São Paulo, a Receita Federal e o Conselho Administrativo de Defesa Econômica (Cade), vinculado ao Ministério da Justiça e Segurança Pública, descobriram que os criminosos utilizavam as empresas para fazer lavagem de dinheiro proveniente do crime organizado.

O esquema funcionava a partir de laranjas para esconder os reais donos das empresas e de contadores responsáveis por escamotear as transações financeiras com crimes como a sonegação de impostos.

Especialistas em transporte público ouvidos pelo Brasil de Fato explicam que o modelo de contrato com as empresas que prestam esse tipo de serviço contribui para crimes como esses sejam realizados no setor.

Annie Oviedo, especialista em mobilidade urbana, explica que atualmente a remuneração das empresas é formada pelo dinheiro proveniente das tarifas pagas pelos usuários e pelo subsídio enviado pela Prefeitura. E, entre os fatores que determinam tanto a tarifa quanto o subsídio, está o custo das empresas com a operacionalização do serviço.

“O problema é que não é transparente quanto empresas gastam com a operação. Não há uma comprovação além do que as empresas dizem. Como a gente não sabe quanto custa, é muito fácil para a empresa dizer que teve mais custos e fazer essas manobras contábeis. É bastante plausível que esse tipo de situação aconteça”, afirma Oviedo.

“O nosso modelo de arrecadação favorece isso, porque não tem controle sobre custos. A Prefeitura não sabe quanto as empresas gastam nem quanto ganham. Esse é o ponto pelo qual é muito fácil ter esses processos de lavagem de dinheiro, porque não está claro quanto dinheiro circula ali”, reforça a especialista.

Transporte público: um setor desregulamentado 

Annie Oviedo explica que o transporte público, desde a sua estruturação nas primeiras décadas do século passado, sempre partiu do setor privado. “Não há qualquer tipo de controle social externo sobre esse modelo de arrecadação e remuneração das empresas. Há esse tipo de contrato, mas o cenário é de desregulamentação. Nunca foi uma coisa que o Estado proveu e depois se privatizou. Sempre foi privado”, afirma.

Rafael Calabria, coordenador do Programa de Mobilidade Urbana do Instituto de Defesa do Consumidor (Idec), afirma que a formação do setor foi permeada pela desregulamentação da atividade.

Ao longo das décadas, o Estado ensaiou um monopólio sobre o transporte público e implementou algum tipo de regulamentação. No entanto, “quando começa a se ter algum tipo de regulamentação, já tem uma cultura estabelecida” de setor desregulamentado e orientado pelos interesses privados, explica Calabria.

“Vem se tentando regular um sistema que já estava estabelecido, que já estava com diversos costumes e desvios e que gora foi agravado com esse cenário da facção criminosa. É um histórico do setor de total ausência do Estado e desregulamentação. O que precisa ser modificado é esse cenário de desregulamentação paralelamente às investigações, agora, e de repressão”, afirma o coordenador do Idec.

“A participação do Estado é necessária para ter um outro padrão de qualidade no transporte. É necessário não só para reverter esse cenário de desregulamentação, mas para ter um sistema com frequência, com pontualidade e que gere confiança e atratividade para o usuário.”

Novo tipo de contrato está há pelo menos cinco anos em transição 

De volta à Annie Oviedo, a especialista afirma que há um novo modelo de contratação de transporte público sobre pneus da cidade de São Paulo, que estabelece a remuneração às empresas por meio de uma tabela de custos, elaborada pelo poder público. O pagamento leva em consideração diversos fatores, como taxa de manutenção, combustível, salário dos funcionários, entre outros pontos.

“Aumenta a transparência porque, de acordo com o novo contrato, a Prefeitura estabelece uma tabela de custos, a partir de diversos fatores, e determina quanto vale cada quilômetro rodado, além do controle de qualidade. Para a empresa, então, fica mais difícil inflar valores”, afirma.

Nesse novo modelo, o pagamento também é feito por quilômetro rodado e não por passageiro. “A ideia de pagar por qualidade ou por viagem é pagar uma quantidade fixa por quilômetro rodado, independentemente do número de passageiros. Isso é bom porque cria um incentivo para a empresa rodar mais. Então muda o incentivo primário no funcionamento do sistema”.

De acordo com a Prefeitura de São Paulo, o novo contrato irá considerar uma fórmula composta pelo custo do serviço, ponderado pela demanda e pela qualidade. No total, 50% da remuneração será definida por usuário atendido, 25% pelo cumprimento das viagens e 10% pela disponibilização da frota.

“A empresa que não cumprir a programação das linhas ordenada pela SPTrans terá desconto no seu pagamento. Os 15% restantes se referem ao custo fixo do investimento do operador com veículos e equipamentos”, informou a Prefeitura, em outubro de 2015, quando foi disponibilizada a licitação de concessão do novo modelo de transporte público sobre pneus da cidade de São Paulo, quando Fernando Haddad (PT) ainda era prefeito.

Junto com a licitação, também foi determinado um tempo de transição para que o novo modelo pudesse ser implementado. Quase 10 anos após a publicação da licitação, a implementação ainda está em transição. “No governo Haddad foi feito um novo contrato, em 2015, que não está em vigor ainda, mas existe. O governo de João Doria [PSDB] prorrogou a implementação. O Bruno Covas [PSDB] estava no período de transição. E agora o Ricardo Nunes [MDB] prorrogou mais uma vez”, afirma Calabria.

O Brasil de Fato questionou a Prefeitura de São Paulo sobre qual é o prazo para o fim da transição e quais foram as justificativas para prorrogá-lo. A reportagem será atualizada assim que houver uma resposta.

Edição: Matheus Alves de Almeida