Paraíba

OBSERVATÓRIO PARAÍBA

Eleições municipais e a (re)construção da governança democrática nas cidades

"A (re)construção da democracia passa necessariamente pela (re)construção da governança democrática"

Brasil de Fato | João Pessoa - PB |
Reprodução - Foto: Fernando Frazão/Agência Brasil.

*Por Lizandra Serafim 
 
Vivemos hoje um momento chave para a (re)construção da democracia. Diferentes projetos políticos disputam os sentidos dessa (re)construção e orientam as propostas e práticas que darão corpo à governança democrática nos próximos anos. O período eleitoral que se aproxima é uma oportunidade política ímpar para se avançar na (re)construção da governança nas cidades e da própria democracia, em um país polarizado. Mas, afinal, o que se entende por governança democrática, e que desafios e oportunidades se colocam no atual contexto para sua (re)construção?

A governança democrática se constrói a partir dos territórios, do fazer cotidiano e das interações entre atores e instituições

O termo governança democrática é um conceito em disputa que ganha contornos bastante diversos no que se refere às práticas correspondentes. De maneira geral, pode-se dizer que o termo ‘governança’ lança luz à existência de arranjos complexos, redes de relações e interações entre diversos atores envolvidos nos processos de decisão e implementação das políticas públicas. Já o termo ‘democrática’ qualifica a forma como se dá a ação pública desde o processo decisório, pressupondo inclusão e partilha de poder.

Assim, a governança democrática refere-se ao exercício de poder compartilhado entre os diversos atores envolvidos no processo de gestão das políticas públicas e das cidades e territórios. De forma concreta, o termo tem sido associado a arranjos que incluem instituições, instrumentos e processos que envolvem a participação social, como conselhos e conferências de políticas públicas, orçamentos participativos, planos diretores, iniciativas de transparência, prestação de contas, consultas públicas, entre outras.
 
A participação social passou por um longo e profundo processo de desmonte em nível nacional nos últimos anos, que envolveu tanto a extinção de órgãos colegiados, a exemplo do “revogaço” de Bolsonaro, como mudanças substantivas nas suas funções, seu poder de incidência nas políticas públicas, sua composição e representatividade.

Resultou desse processo o desmantelamento das instâncias de participação social e o esvaziamento da agenda participativa, não apenas em nível nacional, mas também nos níveis subnacionais. Isso porque o governo federal exerceu, nas décadas anteriores, um papel importante como indutor da participação em diversas políticas públicas, resultando na disseminação de instituições participativas nos municípios.

A vinculação da distribuição de recursos federais aos estados e municípios à existência de planos setoriais e/ou ao funcionamento de conselhos gestores com participação da sociedade, e os processos de realização de conferências de políticas públicas, envolvendo etapas municipais e estaduais, são exemplos de instrumentos indutores.
 
Com a eleição de Lula para a presidência em 2022, a agenda participativa voltou à cena junto com a proposta de reestruturação das políticas públicas e das instituições, e da retomada dos instrumentos de planejamento, monitoramento e avaliação da ação pública.

O processo de PPA Participativo realizado em 2023, as diversas consultas que vêm sendo realizadas através do Portal Brasil Participativo e o processo de realização de conferências nacionais com suas etapas municipais e estaduais, em curso em diversos setores de políticas públicas, podem contribuir para que a participação social seja pauta nas eleições municipais de 2024, e para que se possa dar um passo firme e importante na direção da (re)construção da governança democrática.
 
Nos estados e municípios, a efetividade da participação social e sua centralidade na agenda pública variaram imensamente ao longo da história nos diversos contextos, resultando em diferentes graus de partilha de poder e condições para a efetividade e a resiliência das instituições participativas. São conhecidas as estratégias empreendidas pelos opositores ao projeto democrático-participativo, de Norte a Sul do país, com o objetivo de esvaziar, subverter e enfraquecer as instâncias e práticas participativas, mesmo quando estas são mandatórias no processo decisório[1].

Não basta haver condições favoráveis na agenda nacional, ação indutora por parte do governo federal, ou a própria institucionalidade constituída formalmente nos contextos subnacionais. A governança democrática se constrói a partir dos territórios, do fazer cotidiano e das interações entre atores e instituições, em um processo dinâmico e interativo de disputa.
 
Em meio a um processo eleitoral em que o debate público é mediado cada vez mais pelas tecnologias da informação e comunicação, é grande o risco de que as questões mais importantes para o futuro das cidades sejam ofuscadas pelo ilusionismo estratégico e táticas de desinformação. Nesse contexto, é válido recolocar perguntas simples sobre temas concretos, e cujas respostas poderão qualificar o debate e orientar boas escolhas para o aprofundamento da democracia. Como ponto de partida, podemos questionar que modelo de governança – democrática ou nem tanto –, as candidaturas buscarão construir.
 
Considerando que o conceito de governança implica em lançar luz aos atores e relações que efetivamente importam no exercício do poder, responder a essa pergunta requer a identificação clara de que indivíduos, grupos e instituições terão espaço e peso político para incidir no processo decisório, uma vez eleitos.

Que a participação se torne uma prática cotidiana disseminada na sociedade, e a democracia seja uma obra cada vez mais palpável, ainda que inacabada

Com quem tem dialogado as diversas candidaturas e que interesses tem defendido em sua prática concreta? Como tem tratado os instrumentos de gestão democrática? Qual será o peso dado à participação social no processo decisório – e que tipo participação, efetivamente: mais ou menos inclusiva, representativa, efetiva? As candidaturas apresentam programas de governo e propostas expressas e claras? Em que medida essas propostas voltam-se à garantia de direitos e do bem viver, sobretudo para os grupos que têm seus direitos básicos ameaçados e negligenciados historicamente?

As propostas contemplam ações concretas voltadas à efetivação do direito à cidade para negros, indígenas, mulheres, crianças e adolescentes, idosos, pessoas em situação de rua, pessoas com deficiência, LGBTQIA+, populações mais pobres e sujeitas aos efeitos de eventos climáticos extremos? Que modelos de cidade, de sociedade e democracia orientam as candidaturas?  Enfim, as propostas, e principalmente, as práticas concretas dos/das candidatos/as contribuem para a construção da governança democrática que queremos?
 
A (re)construção da democracia consiste em um desafio complexo que se atualiza no tempo. Seguir um receituário pronto seria insuficiente para nos reposicionar na direção do aprofundamento da democracia, em um contexto tão distinto daquele em que se constituíram as práticas participativas mais institucionalizadas. São inúmeras as insuficiências e limites acumulados ao longo de décadas de experiências de participação, e novos desafios se impõem a cada dia.

É preciso questionar e disputar o sentido da participação para fortalecer as instituições participativas no processo decisório, e (re)criar formas de participação que respondam aos anseios de nosso tempo. Os mecanismos de participação institucionalizada devem assegurar a inclusão de grupos sub-representados pelos mecanismos de representação tradicional. É necessário o exercício de reinvenção das práticas participativas e da própria democracia, e que participem ativamente dessa reinvenção os grupos vulnerabilizados e historicamente excluídos do exercício do poder. Assim se poderá construir a governança efetivamente democrática nas cidades e territórios.

Resultou desse processo o desmantelamento das instâncias de participação social e o esvaziamento da agenda participativa, não apenas em nível nacional, mas também nos níveis subnacionais

Em meio a tantas questões, uma certeza: a (re)construção da democracia passa necessariamente pela (re)construção da governança democrática nas cidades e nos territórios, com partilha efetiva de poder. Condição fundamental para essa reconstrução é a transformação de uma cultura política marcadamente autoritária em uma cultura democrática, na qual a participação social seja valorizada como pilar do exercício do poder.

Que a participação se torne uma prática cotidiana disseminada na sociedade, e a democracia seja uma obra cada vez mais palpável, ainda que inacabada. Que saibamos aproveitar a oportunidade das eleições para fazer boas perguntas, reinventar nossas práticas e avançar na tarefa histórica de (re)construção.
 
*Opinião | Autora convidada: Lizandra Serafim é doutora em Ciências Sociais e professora do Departamento de Gestão Pública da Universidade Federal da Paraíba (DGP-UFPB). Coordena o Núcleo de Estudos em relações Estado-Sociedade e Políticas Públicas (NESPP-UFPB). É pesquisadora do Núcleo Democracia e Ação Coletiva (NDAC-CEBRAP) e integra a Rede Democracia e Participação.

[1] Um exemplo recente foi narrado aqui: https://www.brasildefatopb.com.br/2024/03/05/quem-sao-os-inimigos-e-os-falsos-amigos-da-democracia-em-joao-pessoa


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Edição: Cida Alves