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Fome, consumo e desperdício: como desatar esse nó?

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"Hoje, 783 milhões de pessoas são afetadas pela fome por ano no mundo." - Foto: Divulgação/Instituto Cidade Amiga. Fonte: Agência Senado.
Cerca de 1 bilhão de refeições são jogadas fora todos os dias, em todo o planeta

Por Nádia Aun*

O quanto o mundo desperdiça em alimentos? Para tentar responder a essa pergunta, o Programa das Nações Unidas para o Meio Ambiente (PNUMA) lançou, em março de 2024, um relatório sobre o índice de desperdício de alimentos no mundo. O primeiro relatório a tratar desse tema foi publicado pela mesma instituição em 2021. 

Importante começar falando de dois termos utilizados pelo programa e que tratam de coisas semelhantes, mas que são analisados em contextos diferentes. O primeiro é ‘perda de alimento’ (food loss), que está relacionado à perda tanto no campo (de produção) como na distribuição, até a chegada ao atacado. Comumente utilizado para as cadeias produtivas de commodities, refere-se aos alimentos não reaproveitados em momento algum, seja para consumo humano, seja animal. 

Para as Nações Unidas, desperdício é tudo o que foi removido e descartado da cadeia de produção, distribuição, venda e consumo de comida

Já ‘desperdício de alimento ou de comida’ (food waste) está diretamente relacionado ao desperdício do alimento processado ou natural, seja no varejo, seja no consumo doméstico. Para as Nações Unidas, desperdício é tudo o que foi removido e descartado da cadeia de produção, distribuição, venda e consumo de comida. 

O objetivo do relatório publicado é trazer dados importantes em relação ao desperdício de alimentos no mundo e atentar para o fato de que ainda precisamos caminhar um longo percurso até atingirmos a meta desenhada para 2030. De acordo com os Objetivos do Desenvolvimento Sustentável (ODS) e a Agenda 2030, pretende-se diminuir pela metade o desperdício de alimentos no mundo. Contudo, os números que tratam desse assunto ainda são estimados e pouco conhecidos. 

Os dados referentes a esse tema tratam do item 12.3.1(b) da Agenda 2030 dos ODS e correspondem ao tema 12 – Consumo e Produção sustentáveis.
Sendo assim, com esse segundo relatório, o PNUMA apresenta a evolução dos dados já apresentados em 2021 e o aumento no número de países que passaram a contribuir para a construção do ‘mapa do desperdício de alimentos’. Além dos informes dos países que já participam da coleta de dados, o relatório traz uma descrição bem detalhada da metodologia sugerida e dos parâmetros que devem ser observados na elaboração de programas nacionais para o controle do desperdício de alimentos.

De acordo com dados coletados, apenas no âmbito doméstico em países como Austrália, Nova Zelândia, Inglaterra, Estados Unidos, Japão e África do Sul, atualmente, cerca de 1 bilhão de refeições são jogadas fora todos os dias, em todo o planeta. Lembrando que o número apresentado é estimado, já que os dados utilizados foram extrapolados para tornar possível uma noção superficial de quanto esse tema representa em termos de refeições no mundo. 

Medir o tamanho do desperdício de alimentos não é uma tarefa simples, e o próprio PNUMA está ciente do tamanho do desafio para alcançar os objetivos propostos até 2030. Isso não apenas pelo fato de existirem muitos obstáculos a serem transpostos, mas também porque, hoje, 783 milhões de pessoas são afetadas pela fome por ano no mundo. E, o desperdício de alimentos no nível do consumo doméstico chega a representar de 8 a 10% das emissões de gases de efeito estufa no mundo (FAO 2013).

A metodologia desenvolvida pelo programa das Nações Unidas para o Meio Ambiente para coleta de dados leva em consideração casas e apartamentos particulares, serviços de alimentação (restaurantes, bares, cantinas, entre outros tipos de estabelecimentos comerciais) e toda rede de varejo (dos hipermercados à padaria do bairro). E o que deve ser medido é tudo que poderia ser comido, mas foi jogado fora por algum motivo, seja por não estar mais em condições de comer, seja por ser uma parte do alimento normalmente não consumida em dada região (como a casca da laranja, por exemplo).

No documento ainda é possível encontrar a descrição detalhada das etapas necessárias para o desenvolvimento de um programa consistente e que traduza em termos quantitativos o tamanho do desperdício em âmbito nacional. São basicamente cinco etapas, sendo que a primeira é um estudo preliminar dentro do país para entender o interesse de atores, instituições e da própria administração pública em compreender de fato a atual situação do desperdício de alimentos em cada região.

Uma vez diagnosticados o cenário local e o tamanho do desafio, os próximos passos estão relacionados ao desenvolvimento do projeto, que inclui: definição de metas e ambições; busca por financiamento; estabelecimento de um plano de ação; monitoramento e avaliação. Parece simples, não fosse a quantidade de detalhes envolvidos nesse tipo de coleta de dados.

No Brasil, já demos o primeiro passo. Com financiamento do próprio PNUMA e parcerias com universidades, iniciamos alguns estudos exploratórios que estimam um desperdício anual entre 23 milhões e 82 milhões de toneladas. É esperado um estudo final ainda em 2024 e, com esses dados em mãos, inicia-se a segunda etapa do programa que consiste no desenho do projeto dentro do escopo proposto pelo programa das Nações Unidas para que seja possível contribuir dentro do formato que se construiu globalmente.

Por fim, o documento apresenta – como essencial para o desenvolvimento de um programa nacional com a complexidade retratada nos parágrafos anteriores – as parcerias entre instituições públicas e privadas, as PPP. E, como consequência, o estabelecimento de um comitê intersetorial capaz de exercer uma governança isenta de interesses, com a habilidade de promover interação e gerir riscos. Segundo a própria agência internacional mostra, construir um programa nacional com capacidade de medir localmente o desperdício de alimentos requer muita colaboração. E isso só será possível quando muitos atores e instituições forem capazes de interagir. 

O resultado dessa interação será um novo conhecimento coletivo sendo construído, e isso é muito mais do que a soma de todas as partes envolvidas. De acordo com o sociólogo Norbert Elias, essa interação nada mais é do que o processo de constituição de uma sociedade, o processo civilizador. Refletir sobre o desperdício de alimentos não é pensar apenas em soluções para a fome ou para o fim de emissões de gases de efeito estufa. Refletir sobre o desperdício de alimentos é repensar o consumo e entender um pouco mais sobre o impacto que nossas ações individuais têm sobre o conjunto da sociedade. 

*Nádia Aun é doutora em Ciência, Tecnologia e Inovação Agropecuária pela UFRRJ e realiza pós-doutorado em Gestão Pública e Cooperação Internacional na UFPB. Membra do Grupo de Pesquisa sobre Fome e Relações Internacionais (fomeri.org).

**Este é um artigo de opinião e não necessariamente expressa a linha editorial do jornal Brasil de Fato PB.

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Edição: Carolina Ferreira