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Acampamento Terra Livre 20 anos: ainda é preciso coragem

Os vinte anos de história do ATL o transformaram em símbolo da luta indígena, mas não só

Brasil de Fato | Brasília (DF) |
'A grandiosidade das mobilizações indígenas não se refletiu no mesmo ritmo de transformação do Estado brasileiro para atender as demandas desses povos' - Foto: Bruna Sirayp/Coiab

Há 20 anos, a Esplanada tornava-se palco, pela primeira vez, do que viria a ser o Acampamento Terra Livre (ATL). Com lonas e bambus, indígenas de Norte a Sul do país reivindicavam o direito pleno a seus territórios, a partir da exigência da homologação da Terra Indígena Raposa Serra do Sol (RR). Nascia ali o que viria a se tornar a maior assembleia indígena do Brasil. Era abril de 2004. Vivíamos o primeiro governo Lula.

Entre 2004 e 2024, o ATL se transformou. Ao longo dos anos, as cerca de 200 lideranças que inauguraram o acampamento se transformaram em mais de seis mil. Os 31 povos então presentes, tornaram-se 200. À estrutura de bambus e lona preta agora se somam a palcos, cozinhas coletivas, banheiros para os/as participantes, tudo mobilizado pela Articulação dos Povos Indígenas do Brasil (APIB) e seus aliados.

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A APIB, aliás, é fruto daquele primeiro acampamento - e hoje figura como ator político de importância inconteste no País. O Acampamento Terra Livre, atualmente, é parte da agenda política do Brasil: abril é mês de pintar a capital federal de Urucum e Jenipapo.

Ao longo desses 20 anos, o ATL se tornou mais do que um evento. Hoje, é ferramenta de organização das comunidades, se desdobrando também em assembleias, encontros e reuniões nos mais diversos territórios indígenas do Brasil. Se algo avançou nos direitos territoriais indígenas nessas últimas duas décadas, sem dúvida, se deve a força dessas mobilizações.

A grandiosidade das mobilizações indígenas, no entanto, não se refletiu no mesmo ritmo de transformação do Estado brasileiro para atender as demandas desses povos.

Em 2004, no nascimento do ATL, as lideranças presentes denunciavam a existência de uma Frente Anti-indígena no Congresso, que trabalhava para fragilizar os direitos territoriais garantidos constitucionalmente. De lá para cá, essa Frente se organizou, se consolidou e garantiu suas conquistas, a despeito do claro desrespeito aos preceitos constitucionais de seu projeto. O PL 2309, atualmente lei 14.701, conhecido como a Lei do Marco Temporal, representa a pior de suas contribuições até agora. E os ataques seguem avançando, como vemos com as propostas de PEC que pretendem passar a atribuição da demarcação para o Congresso Nacional.

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No âmbito do Executivo, depois de enfrentar os quatro nefastos anos da gestão Bolsonaro, quando a política anti-indígena virou diretriz de governo, os povos indígenas contam agora com algum respiro. Em 2004, as lideranças acampadas clamavam pela presença do então presidente Lula: “Lula, vem nos visitar, ouve nosso grito e clamor pela homologação. Não se faça de surdo, não se esconda dos povos indígenas”, bradava Tereza Macuxi.

À época, era difícil imaginar que Lula atenderia o pedido de Tereza, por duas vezes, anos mais tarde, uma como candidato e outra como Presidente da República. Ainda mais difícil seria prever que Lula anunciaria, de forma inédita, a criação do Ministério dos Povos Indígenas (MPI), que foi ocupada pela liderança da APIB, Sônia Guajajara. Adicionalmente, não imaginávamos que a homologação de seis terras indígenas também seria anunciada no evento. Tampouco passaria pelas nossas cabeças que uma indígena seria presidente da Funai.

O respiro após anos de políticas anti-indígenas, no entanto, ainda é insuficiente, lento. O clamor pela homologação, por exemplo, segue ecoando. Até abril de 2024, após 473 dias do terceiro governo Lula, dez terras foram homologadas. No relatório de Transição, para os primeiros 100 dias, a meta era homologar 14. O ritmo não condiz com os discursos do próprio presidente Lula, que já afirmou diversas vezes a urgência em garantir os direitos territoriais indígenas diante da emergência climática em curso.

Os vinte anos de história do ATL o transformaram em símbolo da luta indígena, mas não só. O compromisso do Estado brasileiro com os direitos indígenas, da mesma forma, não pode ser simbólico.

Coragem para se contrapor às influências dessas forças dentro da frente amplíssima que compõem o atual governo.

Coragem para ampliar o orçamento dos órgãos indigenistas e para dar conta do passivo fundiário do nosso País que, ao contrário do que bradam os ruralistas, significa muito para a vida dos povos indígenas e do planeta, mas pouco em termos de área total do Brasil.

Coragem, portanto, para honrar não apenas os 20 anos de ATL, mas os 524 anos de luta indígena que constituem o Brasil.

*Leila Saraiva é assessora política do Inesc (Instituto de Estudos Socioeconômicos)

**Este é um artigo de opinião. A visão da autora não necessariamente expressa a linha editorial do Brasil de Fato

Edição: Flávia Quirino