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Marcha nacional da educação desafia as políticas de Milei na Argentina nesta terça

Com mobilizações em todo o país, o governo teme que a rebelião educacional possa afetar seu governo

Brasil de Fato | Havana (Cuba) |
o protesto desta terça é considerado um dos maiores desde 2001 - Twitter

Nesta terça-feira (23), as universidades públicas de toda a Argentina realizam uma Marcha Nacional em todas as províncias do país. Na capital, o protesto, em defesa do sistema universitário e científico público da Argentina, será realizado na emblemática Plaza de Mayo - frente à Casa Rosada, sede do governo nacional.

Juntamente com a comunidade educacional e científica, todas as Centrais Sindicais de Trabalhadores (CGT, CTA), movimentos sociais, organizações de direitos humanos e partidos de quase todo o espectro político estão mobilizados. 

O protesto é considerado "sem precedentes", nas últimas décadas. O ato desta terça vem sendo comparado à resistência às tentativas de privatização das universidades públicas argentinas durante a crise de 2001: uma das mais graves crises sociais, políticas e econômicas que o país já enfrentou. 

A determinação do governo de ultradireita em sua tentativa de destruir a universidade pública e o sistema de educação científica da Argentina conseguiu despertar um repúdio social "sem precedentes" que reuniu os mais diversos setores do arco político e social do país.

O tamanho da convocação tem incomodado o governo federal. Analistas apontam que a administração Milei teme que a luta social cresça e afete o Executivo. Ao anunciar que acompanharia a marcha, a Central General de Trabalhadores (CGT) anunciou que participaria da marcha como parte de um “plano de luta” que será seguido por uma manifestação em 1º de maio - para o Dia Internacional dos Trabalhadores - e uma greve geral em 9 de maio.

 

 

Na Argentina, há um amplo consenso - mesmo entre parte dos eleitores de Milei - sobre a importância da educação. Para tentar evitar um racha interno, o governo convocou uma reunião de emergência do gabinete nas últimas horas.

Enquanto isso, a ministra da segurança, Patricia Bullrich, ameaçou que o protocolo contra manifestações seria aplicado. 

Em entrevista ao Brasil de Fato, Catalina Kaplan, conselheira estudantil da Universidade de Buenos Aires e militante da Frente Patria Grande, explica que as lutas das universidades públicas sempre foram pilares de resistência contra qualquer ataque à democracia no país.

"Na Argentina, falar de universidades é falar de progresso e avanço social. Qualquer pessoa, quer tenha nascido aqui ou escolhido viver aqui para estudar, associa a ideia de estudar nas universidades, especialmente nas nacionais, que são públicas e gratuitas, com a ideia de progresso: social, econômico, cultural e político. Por isso, na Argentina, universidade é uma boa palavra, é uma boa palavra porque é a possibilidade de construir um projeto individual e coletivo para o futuro."

O ataque à educação pública pelo governo de Milei é um ataque "à amplitude ideológica das universidades públicas, à diversidade de correntes de pensamento, de correntes ideológicas com as quais nos formamos nas universidades, mas também contra a soberania nacional que o sistema educacional e científico gera", afirma Kaplan.  

De acordo com a última pesquisa estatística, realizada em 2022, há mais de 2,7 milhões de estudantes universitários na Argentina. Estima-se que 80% desses alunos estudem nas 65 universidades públicas do país. Vinte por cento dos alunos estão matriculados no sistema educacional privado. 

O prestígio das universidades públicas argentinas, assim como seu acesso livre e gratuito, faz parte das conquistas sociais da Argentina.  A história das lutas educativas remonta à Reforma Universitária de 1918, um processo histórico que influenciou toda a América Latina e o Caribe e que conseguiu a conquista da liberdade acadêmica, da autonomia universitária e do autogoverno, bem como uma extensa rede de vínculos entre a universidade e o resto da sociedade. Ao longo da história, a Argentina passou por vários momentos em que houve tentativas de retroceder esses direitos conquistados, que sempre foram respondidas com lutas das comunidades educacionais.  

Melina Chamorro Sack, estudante da Universidade da Província de Santa Fé e membro do Centro de Estudantes de Serviço Social, em entrevista ao Brasil de Fato, enfatiza que "a demanda da marcha é clara e inegociável: a defesa da universidade pública, gratuita e de qualidade".

"Nesse contexto, o acompanhamento intersetorial na mobilização é de fundamental importância. Nós, estudantes, juntamente com os professores e pesquisadores, temos muita clareza de que somos os protagonistas da luta universitária, mas também sabemos que nenhuma conquista social pode ser vencida sozinha. Por isso, o consenso e a pluralidade de vozes se tornam fundamentais", reflete. 

Ela destaca que as centrais sindicais estão apoiando estas reivindicações, bem como "todas aquelas necessárias para garantir a continuidade de nossas universidades", pois se trata da "educação do povo humilde, dos filhos e filhas dos trabalhadores".

"O espaço de nossa universidade é o território. Ele gera fios e pontes dentro da comunidade, a partir de programas de extensão e da aproximação institucional com diferentes setores da região. Nosso espaço institucional não foi apenas o trânsito de grandes profissionais formados por grandes professores, mas também contribui para o nível social e comunitário, portanto democrático", enfatiza. 

A situação do sistema público de universidades e ciências da Argentina é extremamente grave. Ao assumir o cargo, o ultradireitista Javier Milei decidiu congelar as alocações orçamentárias para o funcionamento da educação e da ciência. Em um país com uma taxa de inflação anual de 300%, isso se traduz em um ajuste brutal que a comunidade educacional denuncia como uma tentativa de "esvaziar" o setor por meio de "asfixia orçamentária".

Em termos reais, o orçamento alocado para a educação é o mais baixo dos últimos 30 anos. As autoridades universitárias denunciam que, se o orçamento não for atualizado, elas não terão dinheiro para funcionar depois de maio.

Quase 88% do orçamento das universidades é destinado ao pagamento dos salários dos professores e de outros funcionários que possibilitam o funcionamento das universidades.

Cecilia Rossi, professora universitária de sociologia e pesquisadora, explicou ao Brasil de Fato que "nesses quatro meses de governo de Milei, vimos uma queda no poder de compra de nossos salários de aproximadamente 40%, o mesmo que perdemos durante todo o governo Macri". 

Isso significa que a maioria desses salários - como os de assistentes de ensino e jovens professores - está abaixo da linha da pobreza, ou seja, não cobrem a cesta básica de produtos. Sem mencionar que um grande número de professores - sem os quais as universidades não funcionariam - exerce suas atividades sem receber salários.

Na última semana, imagens da Universidade de Buenos Aires (UBA) funcionando no escuro viralizaram. A universidade teve que cortar a eletricidade, devido à impossibilidade de pagar por ela, para poder continuar funcionando. 

Entretanto, em 10 de abril, seis cursos da mesma universidade foram selecionados entre os melhores do mundo de acordo com o tradicional QS Global Ranking. Outros 98 cursos de 16 universidades argentinas foram reconhecidos entre os melhores do mundo, 11 deles públicas. 

A professora afirma que a tentativa de Milei é “consumar o projeto da última ditadura civil-militar” que governou a Argentina entre 1976-1983. Que, em sua opinião, consiste na “destruição do tecido social onde também vivem a resistência e a solidariedade”.

Por essa razão, Rossi afirma que a mobilização tem “a possibilidade histórica e o dever de unificar outras lutas e dar forma a um slogan muito mais geral: a defesa da universidade pública como a defesa do universal, do público”.

“Temos que defender o que existe e resistir. Mas também temos que lutar pelo que está faltando, o que é muito. Temos que defender o que conquistamos para continuar conquistando novos direitos. Porque nós temos o direito de viver melhor, o direito de ser feliz neste mundo”.

 

Edição: Rodrigo Durão Coelho