Era o aniversário de Elza, um 16 de junho, e possivelmente a filharada se movimentava para celebrar também a presença do pai de volta a Recife que, antevendo a possível perseguição, ficara escondido até meados de maio na casa de um amigo em Brasília, logo após o golpe que jogou o país na pior das ditaduras que já sofremos. A comemoração não poderia ser mais tensa. Dois soldados levam Paulo Freire de sua própria residência na frente da família justificando a necessidade de um depoimento, realizaram uma “prisão para averiguação” e por 24 horas nem seu paradeiro se sabia.
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Providencialmente um jovem soldado, que reconheceu Paulo Freire, se prontificou a avisar, clandestinamente, sua esposa de onde se encontrava preso. A falta de notificação era o modus operandi, para gerar insegurança e temor, sob a justificativa de um “regime de exceção”. Sem mandato, fora fichado e preso sumariamente.
Prisão política
A solitária tinha apenas 0,60 X 1,70. Imunda, fria, escura, sem janela, sem banheiro, mas com grades e paredes ásperas a fim de evitar que o prisioneiro, seminu, encostasse as costas para um apoio diante da agonia do confinamento, como se bicho fosse. Chamada de “X-2”, era uma das celas destinadas a punir soldados insubordinados, e que passara a receber desde a quartelada de abril de 1964, centenas de perseguidos pelos militares e forças policiais sob o Golpe que se abateu e foi particularmente cruel em Pernambuco, berço das Ligas Camponesas.
Prontuário Individual – Paulo Reglus Neves Freire / Foto: Arquivo Público Estadual Jordão Emerenciano/ Comissão Estadual da Memória e Verdade Dom Helder Câmara (PE)
Ali mesmo, na cela onde Paulo Freire amargou os primeiros dias de sua prisão, na 2ª Companhia de Guardas do Recife, haviam passado o calejado lutador Gregório Bezerra, célebre liderança comunista que foi torturado e arrastado por um jipe pelas ruas do bairro de Casa Forte; Clodomir Morais, advogado e um dos líderes das Ligas Camponesas; o prefeito de Recife, Pelópidas Silveira; pastores; estudantes; trabalhadoras urbanas e centenas de camponeses suspeitos de “subversão comunista”.
Dali do famoso “X-2” (Xadrez n.2) da Companhia de Guardas e da Cela n.1 do 7º Regimento de Obuses, na entrada do andar térreo, se ouvia as vozes altas dos algozes, os espancamentos, choques elétricos, choros e gemidos, que diariamente martirizavam aqueles que lutavam por justiça social, por direito ao pão e por dignidade.
Concentração fundiária, exploração e luta camponesa
Pernambuco foi o epicentro no Nordeste brasileiro, desde meados da década de 1940 até os anos 1960, de um intenso processo organizativo dos trabalhadores rurais. As Ligas Camponesas, com um forte trabalho de base, sob a liderança do Partido Comunista, alcançou um patamar de organização que só seria superado décadas mais tarde, com as experiências do MST, que em 2024 completa 40 anos de lutas e resistências.
Por essa razão, calcula-se, somente no estado de Pernambuco, que cerca de 5 mil camponeses foram presos e perseguidos. Centenas deles torturados e mortos pelo aparato repressivo do Estado brasileiro e pelos jagunços a mando dos latifundiários da região, temerários das “Reformas de Base”, preconizadas pelo governo reformista de João Goulart.
Temiam os militares que o “método de alfabetização” preconizado por Paulo Freire alavancasse o processo organizativo, tanto no campo como na cidade, e se alastrasse a “doutrinação comunista”. Com a aprovação do projeto de Reforma Eleitoral, adultos alfabetizados em “quarenta horas” se transformariam em sujeitos aptos a votarem, alterando a correlação de forças políticas, e colocando em risco os redutos dos coronéis donos de engenhos e grandes empresários. Para se ter uma ideia, em Pernambuco, estima-se que de 800 mil votantes, em pouco tempo haveria 1,3 milhão de pessoas aptas a votarem.
Inquéritos Policiais Militares: retrato do arbítrio e da mediocridade
Paulo Freire ficou preso por 72 dias, entre junho e setembro de 1964, em três locais: na 2ª Companhia de Guardas do Recife, no 14º Regimento de Infantaria de Recife e na Cadeia de Olinda.
Com quinze humilhantes dias “de molho”, para “amaciar o elemento subversivo”, é levado ao primeiro interrogatório em 1º de julho de 1964. Freire seria solto dois dias depois, mas preso novamente no dia seguinte em um período mais longo, em torno de 50 dias e, como fora na maior parte do tempo na prisão, já em locais como enfermarias, transformadas em prisão, na qual conviveu com outros presos que tinham curso superior.
Um segundo interrogatório aconteceu em 16 de setembro. Em ambas as situações Freire foi interrogado pelo famigerado Hélio Ibiapina Lima, tenente-coronel do Exército, “linha dura”, chefe da 2ª Seção do Comando Militar do Nordeste (4º Exército) e responsável direto por comandar o aparato de vigilância e repressão na região. De acordo com o Relatório Nacional da Comissão da Verdade (2014), Lima foi identificado como um dos 377 agentes do Estado apontados pela violação dos Direitos Humanos a cometer diversos crimes durante a ditadura militar, inclusive torturas.
Os interrogatórios a que Freire foi submetido são um exemplo do despreparo e boçalidade de seu algoz, tentando desmoralizar a autenticidade do “método de alfabetização”, comparar e insinuar a ineficácia do “método” utilizado no Exército, identificar relações pessoais com lideranças políticas e sindicais, avaliar o impacto da “revolução de 1º de abril” e identificar o “aliciamento das massas para o movimento comunista no Brasil” no trabalho que fazia.
Perseguição: “Um homem nitidamente ligado à política esquerdista”
“O sr. Paulo Freire é um homem nitidamente ligado à política esquerdista. Com o beneplácito da Reitoria da Universidade do Recife e apoio do então governo, vindo comunizando o nordeste (sic), através de seu método de alfabetização de estilo revolucionário.” Paulo Freire. Histórico. s/d (1964). Secretário de Segurança Pública (PE)
Em abril, Freire já havia sido demitido do cargo que recém assumira, na Comissão Nacional de Alfabetização, junto ao Ministério de Educação. Retornando a Recife, fora um dos alvos da Comissão criada na Universidade do Recife instituída para estudantes e professores em ações contra “a ordem política e social, ou atos de guerra revolucionária”. Sua sala de trabalho na Universidade foi invadida, vários objetos e documentos confiscados e destruídos. Meses mais tarde, em outubro, à revelia, Freire foi sumariamente demitido.
Mesmo tendo sido liberto, a repressão exigia que “elementos suspeitos de subversão” tivessem que comparecer regularmente às instalações do Exército para registrar suas últimas atividades e dar explicações de suas tarefas profissionais e sociais. Sem trabalho, em meio a vários amigos presos, torturados e desaparecidos, e informado acerca de uma terceira prisão no Rio de Janeiro, não comparece a nova intimação. Apesar da contrariedade, não lhe restou alternativa a não ser obter apoio para sair do país, buscando, em setembro de 1964, asilo na Embaixada da Bolívia.
Para conhecer mais sobre a prisão política de Paulo Freire
Recomendaria aos interessados no tema que envolve a prisão política de Freire quatro trabalhos para conhecer com maior riqueza essa história. Deles, retive algumas das informações aqui presentes. O primeiro deles, o próprio Freire, em um dos livros “falados” com Sérgio Guimarães. “Aprendendo com a própria história” (Paz e Terra, 2013); o recém-lançado “Inquérito Paulo Freire”, que reproduz as inquirições e traz uma introdução contextualizadora, uma entrevista com um pesquisador do tema e importantes notas informativas (Elefante, 2024), organizado por Joana Salém Vasconcelos; o riquíssimo depoimento de Clodomir Santos de Morais, “Cenários da Libertação” (Expressão Popular, 2021); e o compêndio “Paulo Freire, anistiado político”, organizado por Moacir Gadotti e Paulo Abraão (Instituto Paulo Freire, Ministério da Justiça, 2012).
Atualizar-se nas lutas do aqui e do agora
Além de revisitar essa história, entre tantas outras, neste ano no qual descomemoramos os 60 anos do Golpe de 1964, que impôs uma brutal ditadura empresarial-militar por longos 21 anos, é preciso assumir o compromisso com o presente-futuro que nos convoca à presencialidade, para um encontro que está no horizonte, e nos convida à circulação dos afetos, saberes e práticas que anunciam futuro viáveis.
Aos 43 anos, professor universitário, com crescente reconhecimento nacional, cinco filhos, Paulo Freire foi um dos primeiros perseguidos e punidos pelos interventores golpistas, e se viu obrigado a buscar o exílio para só voltar ao Brasil com a abertura política, em 1980. Ao contrário do que queriam seus perseguidores, Freire voltou gigante, teve uma vida longeva, 75 anos bem vividos.
Foi anistiado postumamente pelo Estado brasileiro em 2012, que reconheceu as injustiças cometidas. Com sua vida e obra, deixou marcadores muitíssimos fecundos e inspiradores aos caminhantes da utopia. E continua a ser um dos maiores brasileiros que nosso país já teve. Cada vez maior.
Quando Freire estará conosco
Um dos eventos que mostra o quanto o pensamento de Paulo Freire está vivo entre nós, à despeito das tentativas de golpista, de ontem e de hoje, encarcerá-lo e calá-lo, bem como governantes tecnocratas e conservadores em todos as escalas, é a realização do XXV Fórum de Estudos: Leituras Paulo Freire, que este ano acontece em Porto Alegre, no Campus Centro da Ufrgs, entre dias 23 e 25 de maio.
Mais de 500 educadoras(es), estudantes, pesquisadores/as, sindicalistas, militantes e ativistas de movimentos sociais e populares se deslocarão de todo o estado em direção à capital para celebrar os 25 anos de atividades ininterruptas e itinerantes do Fórum, para partilhar saberes acadêmicos, experiências práticas em escola e projetos educativos nas mais variadas áreas e campos que a educação popular vem realizando na direção de uma sociedade mais justa, democrática e digna para todos(as).
As inscrições se encerraram, mas a atividade inicial é franca e aberta a quem se interessa pelo tema. Dia 23 de maio, uma quinta-feira, nos encontraremos no Pátio da Faced/Ufrgs às 18h30, embalados sob o Mo(vi)mento Cultural com Tambores de Freire. Depois seguiremos todos e todas ao Salão de Atos da Ufrgs para palestra do prof. Gaudêncio Frigotto (Uerj), às 19h30, que discorrerá sobre o tema: “Educação Pública Popular: desafios e resistências no tempo presente”, seguido de debate com os participantes.
Card de divulgação do evento / Divulgação
Se possível, venha celebrar este momento. O espírito freireano estará presente entre nós, a iluminar, como um sendeiro, os caminhos da luta. E a lembrar: Ditadura, nunca mais!
* Professor, Historiador e integrante do CPHIS – Coletivo de Profs. de História da Rede Municipal de Ensino de Porto Alegre (RS)
** Este é um artigo de opinião. A visão do autor não necessariamente expressa a linha editorial do jornal Brasil de Fato.