programa bem viver

Casas de parto humanizado resgatam conhecimento secular e denunciam violência médica

Casa Angela, em São Paulo, é referência e inspiração por realizar processo de maneira gratuita e vinculado ao SUS

Ouça o áudio:

Casa Cordão em Fortaleza realiza atendimento multidisciplinar que envolve toda a família - Divulgação

“Grande erro na história da humanidade”. Assim define a obstetriz Juliana Mesquita sobre o momento em que o trabalho de parto deixou de ser uma tarefa das parteiras e virou um procedimento médico.

Hoje, Mesquita é uma das sócias da Casa de Cordão, em Fortaleza (CE), que realiza parto humanizado em um atendimento multidisciplinar para as mães e para toda a família. 

A inspiração do projeto veio de um experiência que é referência em todo o país, a Casa Angela, localizada na zona sul de São Paulo. Fundada oficialmente há 15 anos, o espaço já realizou 3.500 partos e oferece atendimento 100% gratuito, vinculado ao Sistema Único de Saúde (SUS).

:: Marcha nacional por parto humanizado luta contra a criminalização do trabalho de enfermeiras e parteiras ::

Por quase cinco anos, Mesquita atuou na Casa Angela, mudando a concepção de parto que tinha aprendido na faculdade de obstetriz, na Universidade de São Paulo (USP), e todos os partos que acompanhou em hospitais privados. 

“Os nenéns nasciam, na maioria de cesárea, iam pro bercinho, eu aspirava [o nariz], fazia a vitamina K, fazia as injeções, o neném sempre chorando, e aí nas primeiras vezes você fala ‘nossa, mas é normal?’,, e as pessoas falavam pra mim ‘ah, é normal, recém-nascido não sente dor’”, relata Mesquita em entrevista ao programa Bem Viver desta sexta-feira (10).

“Isso para mim era rotina, eu achava que tinha que ser assim”, conclui.

Após uma indicação de uma colega, Mesquita conheceu a Casa Angela. “Mudou minha concepção”, relembra.

O espaço abriu oficialmente em 2009, mas a história remonta a 1980 pelo trabalho da parteira alemã Angela Gehrke da Silva na comunidade do Jardim Monte Azul, na zona sul de São Paulo.

O processo de construção e implantação da Casa foi coordenado pela médica alemã Anke Riedel, que havia voluntariado com Angela e que atuou na fundação e gestão da Casa Angela até 2017.

Juliana Mesquita defende que o Brasil começou a “patologizar o parto” quando a Corte Portuguesa se mudou para cá, no início do século 19. Segundo ela, nesse momento, como um processo de “higienização” do país, as parteiras foram proibidas de realizar seu trabalho e foi criado curso de medicina, justamente, com esse fim.

“Isso foi um grande erro na história da humanidade, porque, quando você tira o parto da mão de quem fez isso há milênios e quando você diz que você tirou e colocou na mão de alguém que está começando a fazer isso agora sem perguntar como é que isso acontecia, é um grande absurdo”, avalia.

:: Único Centro de Parto Normal extra-hospitalar de Salvador encerra atividades ::

Confira a entrevista completa


Como você chegou à Casa  Angela?

Eu já começo dizendo que eu vim um pouquinho mais do interior, né? Eu sou de Limoeiro do Norte, no interior do Ceará. Eu acabei voltando pra Fortaleza por ser a capital. Eu fui pra São Paulo como uma forma de buscar recursos, inclusive de estudo.

Eu fiz um curso de técnica de enfermagem, trabalhei em hospitais, então a minha primeira inserção no mercado de trabalho foi trabalhando com obstetrícia, mas como técnica de enfermagem em hospitais particulares de Guarulhos, e eu me apaixonei pela obstetrícia lá, eu gostava muito de estar na obstetriz, de acompanhar esse movimento de nascimento. 

Então eu conheci um curso de obstetrícia na USP. E aí veio a minha luta para poder entrar no vestibular. Porque, para uma pessoa que veio do interior do Ceará… Eu ouvia de muita gente, inclusive, que eu não ia conseguir passar. E eu sei que nem é maldade, nada demais. 

No final, eu passei dois anos no cursinho e consegui passar no vestibular, fiz o curso de obstetrícia e o mundo novo se abriu para mim. Eu já era apaixonada pela obstetrícia, e, quando eu entrei dentro da graduação, eu descobri todo um universo de possibilidades que o Brasil não conhecia. 

Eu descobri, inclusive, que o que eu vi no hospital era muito violento. Quando a gente fala muito sobre violência obstétrica, a gente precisa fazer alguns recortes e, sei lá, aspirar o neném ou não deixar quase a família ver, para mim, na época em que eu era técnica, isso era rotina.

Eu não via como violência, eu não consegui enxergar isso. Quando eu comecei a estudar, foi que eu comecei a entender que o que acontecia no hospital era muito violento.

Os nenéns nasciam, na maioria, de cesárea, aí iam pro bercinho. Eu aspirava [o nariz], fazia a vitamina K, fazia as injeções, o neném sempre chorando, e aí, nas primeiras vezes, você fala: "Nossa, mas é normal, né?”. E as pessoas falavam pra mim: "Ah, é normal, recém-nascido não sente dor”. Aí você só enrolava num paninho, mostrava para a mãe, para o pai a pulseira no braço e na perninha para não dizer que vão perder a criança, tudo em coisa de dez segundos, e pronto.

Isso para mim era rotina, eu achava que tinha que ser assim. E aí, quando eu fui para o curso de obstetriz, foi que eu comecei a questionar, que a forma como os bebês nasciam no Brasil era muito violenta, era errada, tinham muitas intervenções que eram desnecessárias. 

Então, esse questionamento me veio de uma forma muito forte no fim da graduação de que, ok, eu vou me formar. Tudo isso que eu estou aprendendo, o que eu estou lendo, as evidências que eu estou estudando são muito legais e eu escutava dos meus colegas de trabalho.

Mas tudo o que eu via eram mulheres que ficavam sozinhas, isoladas em posição litotômica e, assim, era coisa horrível mesmo. 

Nessa inquietude, eu fui conhecer a Casa Angela, alguém me falou da Casa Angela, e resolvi me inscrever como voluntária. E aí eu me apaixonei de cara.

Depois de formada, eu tava decidida a voltar para o Ceará, mas me veio a reflexão sobre o que é que eu vou fazer lá no Ceará sem ter essa compreensão do que é acompanhar um parto de verdade. Eu não tinha acompanhado nenhum parto até o momento, né? 

E aí eu falei: "Não, eu vou trabalhar nesse lugar". E foi uma das melhores coisas da minha vida. Eu lembro até hoje do primeiro parto que eu acompanhei. Eu vi uma fisiologia do parto acontecer, porque aí a mulher tinha sido acompanhada no pré-natal.

Então a mulher chegou, a gente deixou um ambiente mais calmo, as contrações meio que pararam quando ela veio, e aí a gente viu a fisiologia acontecer, o ambiente ficou mais calmo, ela pariu de uma forma linda, e eu fiquei completamente apaixonada por isso. 

Eu falei: "Gente, as mulheres merecem isso". Toda vez que eu falo sobre isso, eu comento que o meu maior aprendizado foi sobre quando não intervir.

E, na maioria das vezes, você não precisa intervir. Na maioria das vezes, você precisa respeitar a fisiologia, respeitar, trazer segurança para a família, ter um olhar firme, forte, empático, que a família se sinta segura e a maioria dos partos vão acontecer bem dessa forma. Não é? 

Só que, obviamente, você tem que ter um olhar atento para quando intervir de forma a cuidar da segurança. Mas eu acho que o maior desafio disso tudo, quando você sabe pouco, você intervém muito. Você fica com medo, você acha que a fisiologia não está funcionando, aí você está intervindo, né? 

Eu falava: “Caramba, isso aqui é tão especial, tão especial que precisa ser multiplicado. A minha terra merece um negócio desse”. E aí, nesse processo, foi que eu cheguei a Fortaleza.

Eu sonho ter uma casa de parto em Fortaleza e que essa casa de parto seja pelo SUS. Mas Fortaleza já tentou ter casa de parto três vezes, e impasses burocráticos não permitiram que fosse para frente. E aí eu falo que talvez, quem sabe, não sei se a gente consegue realizar esse sonho ainda nessa vida.

Você consegue explicar da onde surgiu essa cultura de patologizar o parto?

Eu consigo, porque eu sou uma pessoa que eu amo estudar a história para conseguir entender por que as coisas são assim.

Se você pensar na história da humanidade, foram milênios de pessoas, mulheres parindo, crianças nascidas de partos, na maior parte da história da humanidade, em casa, acompanhados por parteiras. 

E a gente teve um grande momento na nossa história, e aí eu vou fazer o recorte do Brasil, que isso aconteceu na época da vinda do Dom Pedro pra cá.

Teve um processo de higienização do país, a gente foi tentar organizar as coisas porque o homem tava vindo. Nesse processo, a sistematização do nascimento começou a ocorrer. Então, por exemplo, antes os partos eram acompanhados pelas parteiras e ninguém prestava muita atenção nisso. 

 A partir da vinda do Dom Pedro para cá, os partos para serem acompanhados pelas parteiras, eles precisavam de autorização do Capitão-Mor. Então, elas precisavam de uma carta de autorização para poder acompanhar os nascimentos. 

Nos primeiros partos depois disso, se ainda se tinha muitas mortes, a gente não tinha uma assistência boa, obviamente, até a medicina evoluiu muito de lá para cá. 

E aí, a partir desse momento, foram criadas as primeiras escolas de medicina, e aí, quando se cria as escolas de medicina... Eu sempre faço esse recorte, porque esse recorte social, de gênero e de raça, você precisa enxergar para você entender onde a gente está hoje né? 

Porque, se eu te perguntar, quem é que se formava em medicina há 120 anos? Eram homens, brancos, héteros, filhos de fazendeiros, ricos. 

E a gente colocou o parto, enfiou o parto dentro desse sistema. Só que a fisiologia não funciona tão bem dentro desse sistema. E aí a gente começa a inventar técnicas e começou a chamar as parteiras de leigas, começou a dizer que as parteiras eram ignorantes, que o que elas faziam não prestava. 

Isso foi um grande erro na história da humanidade, porque, quando você tira o parto da mão de quem fez isso há milênios e quando você diz que você tirou e colocou na mão de alguém que está começando a fazer isso agora sem perguntar como é que isso acontecia, é um grande absurdo.

Elas [parteiras] passaram milênios estudando isso, porque o conhecimento da parteria vem de gerações, de mãe para filha. E a gente fez isso. A gente começou a acompanhar partos nos hospitais dessa forma, e cheios de intervenções. 

Inclusive, teve uma época que foi bem obscura, da obstetriz, em que a gente tinha um tal de "sono crepuscular". Todo vez você mexe na fisiologia, você precisa fazer alguma coisa para intervir, e aí uma intervenção leva a outra, e aí, daqui a pouco, você está num parto que virou uma cascata de intervenções. 

E aí a gente teve, inclusive, esse momento em que tinha o sono crepuscular, que você dava sedativos, e a mulher se debatia, e ela era totalmente sedada para a criança ser tirada, você fazia episiotomia, que é um corte na vagina, e puxava todos os nenéns com ferro.

Por isso que hoje em dia todo mundo tem medo de parto, porque a experiência da minha tia, da minha mãe, dessa geração de mulheres que foram as mulheres que vieram antes de mim, essa geração passou por esses partos violentos. 

Na década de 1980, a Organização Mundial de Saúde [OMS] publica uma diretriz que diz que 90%, ou seja, nove a cada dez intervenções que a gente fazia durante o parto eram potencialmente danosas para a família e desnecessárias.

A gente percebe que, se a gente deixar o bebê com a mãe, como as parteiras faziam antes, é mais seguro, os bebês se recuperam mais rápido, mantém a temperatura muito melhor do que embaixo do bercinho que a gente criou, mantém a frequência respiratória melhor e conseguem favorecer a microbiota do bebê. 

Então hoje a gente fala sobre "hora de ouro". O que é essa hora de ouro? Esse momento ideal em que a mãe precisa ficar com o bebê para ele restabelecer frequência respiratória, frequência cardíaca, para fazer a colonização, que é super importante para essa primeira infância.


Confira como ouvir e acompanhar o Programa Bem Viver nas rádios parceiras e plataformas de podcast / Brasil de Fato

Sintonize 

programa de rádio Bem Viver vai ao ar de segunda a sexta-feira, das 11h às 12h, com reprise aos domingos, às 10h, na Rádio Brasil Atual. A sintonia é 98,9 FM na Grande São Paulo. A versão em vídeo é semanal e vai ao ar aos sábados a partir das 13h30 no YouTube do Brasil de Fato e TVs retransmissoras: Basta clicar aqui

Em diferentes horários, de segunda a sexta-feira, o programa é transmitido na Rádio Super de Sorocaba (SP); Rádio Palermo (SP); Rádio Cantareira (SP); Rádio Interativa, de Senador Alexandre Costa (MA); Rádio Comunitária Malhada do Jatobá, de São João do Piauí (PI); Rádio Terra Livre (MST), de Abelardo Luz (SC); Rádio Timbira, de São Luís (MA); Rádio Terra Livre de Hulha Negra (RN), Rádio Camponesa, em Itapeva (SP), Rádio Onda FM, de Novo Cruzeiro (MG), Rádio Pife, de Brasília (DF), Rádio Cidade, de João Pessoa (PB), Rádio Palermo (SP), Rádio Torres Cidade (RS); Rádio Cantareira (SP); Rádio Keraz; Web Rádio Studio F; Rádio Seguros MA; Rádio Iguaçu FM; Rádio Unidade Digital ; Rádio Cidade Classic HIts; Playlisten; Rádio Cidade; Web Rádio Apocalipse; Rádio; Alternativa Sul FM; Alberto dos Anjos; Rádio Voz da Cidade; Rádio Nativa FM; Rádio News 77; Web Rádio Líder Baixio; Rádio Super Nova; Rádio Ribeirinha Libertadora; Uruguaiana FM; Serra Azul FM; Folha 390; Rádio Chapada FM; Rbn; Web Rádio Mombassom; Fogão 24 Horas; Web Rádio Brisa; Rádio Palermo; Rádio Web Estação Mirim; Rádio Líder; Nova Geração; Ana Terra FM; Rádio Metropolitana de Piracicaba; Rádio Alternativa FM; Rádio Web Torres Cidade; Objetiva Cast; DMnews Web Rádio; Criativa Web Rádio; Rádio Notícias; Topmix Digital MS; Rádio Oriental Sul; Mogiana Web; Rádio Atalaia FM Rio; Rádio Vila Mix; Web Rádio Palmeira; Web Rádio Travessia; Rádio Millennium; Rádio EsportesNet; Rádio Altura FM; Web Rádio Cidade; Rádio Viva a Vida; Rádio Regional Vale FM; Rádio Gerasom; Coruja Web; Vale do Tempo; Servo do Rei; Rádio Best Sound; Rádio Lagoa Azul; Rádio Show Livre; Web Rádio Sintonizando os Corações; Rádio Campos Belos; Rádio Mundial; Clic Rádio Porto Alegre; Web Rádio Rosana; Rádio Cidade Light; União FM; Rádio Araras FM; Rádios Educadora e Transamérica; Rádio Jerônimo; Web Rádio Imaculado Coração; Rede Líder Web; Rádio Club; Rede dos Trabalhadores; Angelu'Song; Web Rádio Nacional; Rádio SINTSEPANSA; Luz News; Montanha Rádio; Rede Vida Brasil; Rádio Broto FM; Rádio Campestre; Rádio Profética Gospel; Chip i7 FM; Rádio Breganejo; Rádio Web Live; Ldnews; Rádio Clube Campos Novos; Rádio Terra Viva; Rádio interativa; Cristofm.net; Rádio Master Net; Rádio Barreto Web; Radio RockChat; Rádio Happiness; Mex FM; Voadeira Rádio Web; Lully FM; Web Rádionin; Rádio Interação; Web Rádio Engeforest; Web Rádio Pentecoste; Web Rádio Liverock; Web Rádio Fatos; Rádio Augusto Barbosa Online; Super FM; Rádio Interação Arcoverde; Rádio; Independência Recife; Rádio Cidadania FM; Web Rádio 102; Web Rádio Fonte da Vida; Rádio Web Studio P; São José Web Rádio - Prados (MG); Webrádio Cultura de Santa Maria; Web Rádio Universo Livre; Rádio Villa; Rádio Farol FM; Viva FM; Rádio Interativa de Jequitinhonha; Estilo - WebRádio; Rede Nova Sat FM; Rádio Comunitária Impacto 87,9FM; Web Rádio DNA Brasil; Nova onda FM; Cabn; Leal FM; Rádio Itapetininga; Rádio Vidas; Primeflashits; Rádio Deus Vivo; Rádio Cuieiras FM; Rádio Comunitária Tupancy; Sete News; Moreno Rádio Web; Rádio Web Esperança; Vila Boa FM; Novataweb; Rural FM Web; Bela Vista Web; Rádio Senzala; Rádio Pagu; Rádio Santidade; M'ysa; Criativa FM de Capitólio; Rádio Nordeste da Bahia; Rádio Central; Rádio VHV; Cultura1 Web Rádio; Rádio da Rua; Web Music; Piedade FM; Rádio 94 FM Itararé; Rádio Luna Rio; Mar Azul FM; Rádio Web Piauí; Savic; Web Rádio Link; EG Link; Web Rádio Brasil Sertaneja; Web Rádio Sindviarios/CUT. 

A programação também fica disponível na Rádio Brasil de Fato, das 11h às 12h, de segunda a sexta-feira. O programa Bem Viver está nas plataformas: Spotify, Google Podcasts, Itunes, Pocket Casts e Deezer.

Assim como os demais conteúdos, o Brasil de Fato disponibiliza o programa Bem Viver de forma gratuita para rádios comunitárias, rádios-poste e outras emissoras que manifestarem interesse em veicular o conteúdo. Para ser incluído na nossa lista de distribuição, entre em contato por meio do formulário.

Edição: Rodrigo Chagas