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Do Araguaia ao Mensalão, biografia de Genoino narra dilemas de revolucionário impedido de seguir na política

Fruto de longa entrevista, livro lançado neste mês traz, em relato de 1º pessoa, a trajetória do político brasileiro

Ouça o áudio:

Com o golpe militar de 1964, Genoino já estava envolvido na política por conta de sua relação com a União Nacional dos Estudantes (UNE) - Divulgação/Letra Selvagem e Kotter
Genoino encarna, simbolicamente, a trajetória de toda uma geração de brasileiros

Lançado neste mês, o livro José Genoino: uma vida entrevista é resultado de uma conversa de três dias "trancados" entre os biógrafos e o político brasileiro. Mantido o relato em primeira pessoa, a obra se torna uma autobiografia que conta desde a formação política e religiosa de Genoino no sertão cearense, a resistência à ditadura militar (1964-1985), com a formação da Guerrilha do Araguaia, até o enfrentamento aos processos relativos ao Mensalão.  

"Genoino encarna, simbolicamente, a trajetória de toda uma geração de brasileiros. Uma geração cuja maior parte foi ceifada, assassinada, torturada, banida do país pela ditadura militar, que se implantou em 64", conta o jornalista e escritor Nicodemos Sena, um dos biógrafos, ao lado de Salvio Kotter.

"E parte sobreviveu. Genoino é um dos sobreviventes da tortura, da perseguição política e, recentemente, também sofria o calvário com o lawfare", segue Sena, em entrevista ao programa Bem Viver desta quinta-feira (8).

A obra foi publicada a partir da parceria entre duas editoras fundadas pelos escritores, a Kotter e Letra Selvagem.

Genoino nasceu em Quixeramobim (CE), em 1946, onde, por meio da Igreja Católica, esteve sempre próximo aos estudos formais, impulsionando sua carreira acadêmica. Ao se mudar para a capital Fortaleza, ingressa no ensino superior.  

Com o golpe militar de 1964, ele já estava envolvido na política por conta de sua relação com a União Nacional dos Estudantes (UNE). Durante o agravamento da situação do país, o político se filiou ao PCdoB, momento em que começou a adotar identidades falsas como proteção. 

Assim que começa a década de 1970, chega a convocação para formar a Guerrilha do Araguaia, no encontro dos estados do Tocantins (na época, Goiás), Pará e Maranhão. 

Por mais de dois anos, Genoino vive integralmente em comunidade, em meio à floresta, na preparação para um projeto político que nunca foi posto em prática por conta da descoberta precipitada da ditadura militar sobre a articulação.  

"Acho que é correta a afirmação de que, no caso do Araguaia, os companheiros estavam mais preparados para morrer do que para matar", relata Genoino no livro sobre o espírito político do grupo. 

Para Nicodemos Sena, a guerrilha tinha potencial de consolidar uma mudança de paradigma sobre a relação do Estado brasileiro com a Amazônia, mas não houve tempo de consolidar as ideias desenvolvidas no projeto. 

"Infelizmente, o trabalho político foi atropelado, porque a ditadura o descobriu precocemente, e a guerrilha não teve tempo suficiente para se preparar militarmente para enfrentar os combates", comenta.  

"Mas a estratégia foi correta, a Amazônia realmente continua um palco de disputa política acirrada. Aquilo que acontecia lá, embrionariamente, a luta entre fazendeiros, posseiros e indígenas, hoje, está muito mais aguçada", comenta o escritor que nasceu em Santarém, oeste paraense.  

Sena é formado em jornalismo e foi diretor de redação do jornal A Província do Pará, localizado em Belém. Na década de 1990, lançou o livro premiado A Espera do Nunca Mais – Uma Saga Amazônica, que chegou à 3º edição em 2020.  

"Essa entrevista apenas é um começo, uma aproximação do tema dessa personagem, dessa personalidade, que vai me servir de protótipo para um grande herói, ou anti-herói, não sei ainda, que eu estou construindo ficcionalmente. Estou com um projeto de fazer novamente um épico, um grande épico que é o livro do Povo Brasileiro. E o Genoino está me inspirando muito, muito, mesmo", comenta o escritor. 

Desde o final de 2023, Genoino é convidado fixo do podcast Três por Quatro do Brasil de Fato. Ele participa regularmente da mesa de debates ao lado dos jornalistas Nara Lacerda e Igor Carvalho.

Confira a entrevista na íntegra: 

Como foi o processo de escrever o livro a dois e como surgiu a decisão de fazer em forma de relato em primeira pessoa?

Como é que se diz? Estava escrito nas estrelas desse livro sair. Eu conheço José Genoino desde 1979, quando ele sai da prisão e vem para a vida política em São Paulo, e aí eu, como estudante de jornalismo na Pontifícia Universidade Católica de São Paulo, recém chegado da Amazônia, tenho a oportunidade de vê-lo pela primeira vez.

Eu fiz o mesmo percurso que o Genoino. Ele nasceu um sertão do Ceará, no município de Quixeramobim, no distrito do Encantado - veja só que nome: ele saiu do Encantado para desencantar.  

Eu saí do interior da Amazônia, do oco da selva, e me encontro com o Genoino fazendo palestra, falando sobre política, muito jovem, e eu também. 

Eu sou mais novo do que ele um pouco, e participei com ele, acompanhei, às vezes muito próximo, às vezes à distância, todo esse périplo que ele vem enfrentando na sua vida pessoal e na vida política.  

E, de repente, Salvio Cotter,  essa figura também carismática, emblemática da cultura paranaense, que é meu amigo, é meu editor, inclusive, publicou a terceira edição da minha saga, uma saga de mais de mil páginas, ambientada na Amazônia, que se chama A Espera do Nunca Mais, um livro premiado e tal.  

E aí o Salvio me convida para esse projeto, para nós fazermos um livro baseado numa entrevista com o Genoino em 2022. E fizemos uma longa entrevista, ficamos três dias trancados, praticamente, isolados na sede da Cotter, lá no Paraná, em Curitiba, e disso saiu esse livro. 

Por que nós optamos em colocar em primeira pessoa? Isso foi uma questão: como vamos escrever isso aí? Um material muito riquíssimo, em que o Genoino conta coisas que não havia contado a ninguém. 

Nós conseguimos tirá-lo daquela seriedade, quase sisudez de político. Aliás, ao se abrir conosco, ele conseguiu contar coisas muito interessantes da sua vida, inclusive da sua vida particular. Algumas não colocamos no livro para preservar, né? Certas pessoas e tal, mas é um material muito rico. 

Genoino encarna, simbolicamente, a trajetória de toda uma geração de brasileiros, uma geração cuja maior parte foi ceifada, assassinada, torturada, banida do país pela ditadura militar, que se implantou em 64. 

E parte sobreviveu. Genoino é um dos sobreviventes da tortura, da perseguição política e, recentemente, também sofeu o calvário com o lawfare.  

Felizmente, hoje ele é um homem que, digamos assim, ressurgiu das cinzas, se levantou de novo para a vida, está absolvido em todos os processos, processos injustos do Mensalão. 

Quais diferenças você percebe entre o Genoino que você conheceu em 1979 e o entrevistado em 2022?

Bom, é um homem que atravessou um século. Ele vem de um Brasil arcaico, rudimentar 

Essa entrevista é apenas um começo, uma aproximação do tema dessa personagem, dessa personalidade, que vai me servir de protótipo para um grande herói, ou anti-herói, não sei ainda, que eu estou construindo ficcionalmente. Estou com um projeto de fazer novamente um épico, um grande épico que é o livro do Povo Brasileiro. E o Genoino está me inspirando muito, muito, mesmo.  

É um homem extremamente simples, que tem a marca camponesa. É um homem sofisticado, intelectual, uma grande experiência política, uma capacidade de análise profunda da realidade brasileira. 

No entanto, ele tem aquele toque áspero, duro, do camponês brasileiro, porque ele não relegou suas raízes, isso é muito importante.  

E a burguesia, a grande burguesia, odeia essas pessoas, essas pessoas que encarnam o espírito de um povo. Essa é a minha análise. É o caso de Lula e é o caso de José Dirceu.  

Todas essas pessoas que, digamos assim, sabem analisar o que está acontecendo, sabem elaborar estratégias. O Genoino é uma pessoa visada, muito visada.  

Eu acho que ele ainda tem um papel importante a cumprir aqui na nossa política, no nosso país.  

Qual foi a influência da Guerrilha do Araguaia para a região norte do país?

Eu sou da Amazônia e eu sei o que é a exclusão, a invisibilidade. A Amazônia é mais da metade do território brasileiro. No entanto, até hoje, acho que os brasileiros não conhecem a Amazônia. Têm uma visão distorcida, que se interessa apenas pelo exótico da região, e têm muito medo.  

A escolha da Amazônia, eu acho que se deu por aspectos geográficos, estratégicos de guerra, como por aspectos políticos. Genoino me explica muito bem nesse livro. Nós conseguimos tirar dele uma reflexão sobre por que a guerrilha se instalou naquela região. 

Uma região pouco habitada, onde o palco era favorável à instalação de um trabalho político a longo prazo, porque a guerrilha não era um foco. O objetivo era fazer um trabalho político que pressupunha tempo. 

Infelizmente, o trabalho político foi atropelado, porque a ditadura o descobriu precocemente, e a guerrilha não teve tempo suficiente para se preparar militarmente para enfrentar os combates. 

Não deu tempo, também, de fazer o trabalho político necessário de envolvimento da população.  

Mas a estratégia foi correta. A Amazônia realmente continua um palco de disputa política acirrada. Aquilo que acontecia lá, embrionariamente, a luta entre fazendeiros, posseiros e indígenas, hoje, está muito mais aguçada.  

A Amazônia, a frente pioneira do agronegócio, que naquela época estava apenas começando, hoje, está de uma maneira completamente, digamos assim, avolumada.  

Aquilo que acontecia no sul do Pará, ali no bico do Papagaio, onde aconteceu a guerrilha, hoje está acontecendo já lá no Oeste do Pará, ali na minha região.  

O romance que eu lancei em 94 é premonitório. Eu imaginei que essa luta do Pará, esse conflito agrário violento, iria chegar ao Norte, ao Oeste do Pará, e avançar para o Amazonas. E hoje a gente vê lá em Roraima.  

A ditadura propiciou todo um processo de invasão do grande capital na Amazônia e a passagem da economia extrativista para outro tipo de economia, das multinacionais. Na época da ditadura, se comprava terras com testa de ferro, brasileiros compravam. Tinha uma legislação que proibia a compra de grandes terras. Hoje, não.

Hoje, multinacionais estão com grandes partes da Amazônia, o território é delas. Por exemplo, a cidade de Maués, onde tem o Guaraná, era dos indígenas. Hoje, a Coca-Cola, a Fanta, essas multinacionais, compraram aquelas terras e colocaram a população local, indígena, para trabalhar para eles como assalariado. 

Na Amazônia, tem uma das oligarquias mais violentas e cruéis. Enquanto nós estamos conversando aqui, alguém certamente está sendo tocaiado e assassinado na região. 


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Edição: Martina Medina