É importante que os países do Sul Global se unam para construir as pesquisas e inovações
Os dados mais recentes do Ministério da Saúde indicam que o número de casos de febre oropouche no Brasil ultrapassa os 7,4 mil. Até o momento, apenas Goiás, Distrito Federal, Rio Grande do Norte e Rio Grande do Sul não registraram infecções.
Quase cinco mil confirmações estão concentradas nos estados do Amazonas e Rondônia. Mas há surtos preocupantes também em locais como a Bahia, que tem mais de 800 notificações e o Espírito Santo, com registros superiores a 400.
Nas últimas semanas, o Brasil registrou os dois únicos óbitos por causa da doença já notificados pela ciência. As vítimas foram duas mulheres de 30 anos e sem comorbidades. Além disso, o Ministério da Saúde também constatou uma morte fetal em decorrência da febre oropouche.
Em conversa com o podcast Repórter SUS, a secretária de Vigilância em Saúde do Ministério da Saúde Ethel Maciel detalhou como as autoridades em saúde chegaram a informações importantes sobre o vírus, ainda pouco conhecido, a partir da decisão de disponibilizar testes em todo o país.
Na entrevista ela também falou sobre as ações das autoridades de saúde em todo o país, que correm contra o tempo coletivamente para entender mais sobre a doença. As frentes buscam respostas sobre a genética do microrganismo, a ação do vírus e as respostas do corpo humano e o comportamento dos vetores.
"Estamos em um momento epidêmico menor, mas a nossa preocupação é com o próximo ciclo. O Infodengue já disse pra nós que, se em 2024 a epidemia se antecipou para janeiro, é possível que em 2025 ela se antecipe para o fim de 2024. É para isso que estamos nos preparando."
Na América também há surtos no Peru, em Cuba, na Colômbia e na Bolívia. O cenário levou a Organização Pan-Americana da Saúde (Opas) a emitir um alerta sobre o alto risco de propagação da doença no continente.
Ethel Maciel ressaltou que o Brasil é o único país que produz testes para diagnóstico da febre oropouche, por meio da Fundação Oswaldo Cruz. Esses insumos, inclusive, têm sido usados por outras nações da América Latina nas políticas de vigilância e prevenção contra a doença.
"Chamo atenção para o fato de que, como as arboviroses são doenças do Sul Global, nós não temos antivirais. Então, é muito importante que os países do Sul Global se unam para construir as pesquisas e inovações tecnológicas para as doenças que nos afetam. Isso não virá do norte global.
A secretaria também falou sobre o que se sabe até agora sobre o mosquito e as formas de prevenção contra a doença doença. Diferentemente do mosquito que transmite a dengue, Culicoides busca lugares úmidos, com muita matéria orgânica em decomposição, como folhas, galhos, cascas, frutas e verduras.
As recomendações para evitar a picada são uso de roupas que cubram o corpo, distancia de locais com grande presença dos insetos, e limpeza de restos de matéria orgânica e ambientes úmidos, principalmente em residências com pessoas grávidas. Ainda não há certeza se os repelentes disponíveis no mercado afastam o mosquito, mas a recomendação é para que a população use o produto.
"Essas são novas perguntas, porque não temos muita informação na literatura sobre essa doença. Vamos ter que encontrar as respostas aqui. Por isso falei da importância dos investimentos em pesquisa. Não dá para criar um pesquisador especializado em oropouche da noite para o dia; é algo que leva tempo. Felizmente, já temos pesquisadores que vinham estudando isso, e por isso estamos chamando-os para nos ajudar a pensar nas soluções", concluiu Ethel.
Confira a entrevista a seguir ou ouça no tocador de áudio abaixo do título desta matéria.
Brasil de Fato: Qual é a atual situação da febre oropouche no Brasil?
Ethel Maciel: Até o ano passado, o vírus oropouche já estava entre nós, já tínhamos alguns casos, mas ainda não havia registro de óbito. O número de casos que identificamos até então estava concentrado na região amazônica, especificamente na região Norte. No início deste ano, principalmente devido ao impacto do El Niño no ano passado, começamos a observar uma mudança significativa no comportamento dessas arboviroses, os vírus que causam dengue, chikungunya, zika, e agora o Oropouche. Vimos um aumento muito diferente do que costumávamos ver em anos anteriores.
Em setembro do ano passado, trabalhamos com um grupo da Fiocruz, o InfoDengue, que realiza modelagens matemáticas para o Ministério da Saúde, para que possamos organizar, principalmente, nosso processo de compra de testes diagnósticos e medicamentos utilizados para essas arboviroses. Embora não tenhamos um antiviral específico, temos analgésicos, antitérmicos e soros que são utilizados para tratar os sintomas causados por esses vírus. Todas essas compras são feitas pelo Ministério da Saúde, assim como os inseticidas utilizados para o controle do vetor, então precisamos sempre planejar bem.
Quando o InfoDengue nos alertou, em setembro de 2023, que, devido às altas temperaturas que começamos a vivenciar após a passagem do El Niño, que causaram chuvas e inundações no Sul do país e seca no Norte, poderíamos ter mais de 4 milhões de casos de dengue. Aquilo parecia impossível, porque nossa pior epidemia teve 1,8 milhão de casos. Mais de 4 milhões era algo que nunca tínhamos vivenciado. E nós vimos algo muito diferente já no início do ano. Em geral, os casos de dengue e de outras arboviroses começam a aumentar em março, começo de abril, final de março.
Mas em janeiro deste ano houve uma explosão de casos, principalmente em Minas Gerais, o que chamou atenção. Começamos a ver uma velocidade muito grande de casos em janeiro, algo que não estava dentro dos padrões de epidemias anteriores. Em fevereiro, fomos investigar no Acre um grupo de pessoas que foram notificadas como casos de dengue, mas que apresentavam sintomas diferentes da doença. Parecia que havia algo diferente. Então, um grupo de investigação do Ministério da Saúde foi ao Acre, trabalhou com a Secretaria Estadual. Descobrimos que, naquele momento, havia em torno de 400 casos notificados de dengue, dos quais cerca de 200 não eram dengue, mas sim oropouche. Isso chamou a atenção, pois nunca tínhamos visto tantos casos de oropouche em tão curto intervalo de tempo.
Isso levou o Ministério da Saúde a decidir enviar testes diagnósticos, também produzidos por pesquisadores da Fiocruz, para todo o Brasil. Decidimos não monitorar apenas a região Norte, mas o país todo. Essa decisão fez diferença. É possível que vários casos, se não tivéssemos tomado essa decisão, teriam sido notificados como dengue.
Enviamos esses testes para todos os nossos laboratórios de referência e orientamos que, no caso de amostras negativas para zika, dengue e chikungunya, também fosse pesquisado oropouche. Incluímos a pesquisa do oropouche nesse painel viral, e rapidamente começamos a identificar que outros estados também tinham amostras positivas. Isso indicou que o vírus estava se comportando de maneira diferente.
Não podemos afirmar que ele já não estivesse espalhado e que não tínhamos condições de identificar antes. Mas, a partir do momento em que enviamos os testes, começamos a ter esse diagnóstico. Aquela decisão tomada em fevereiro fez diferença. Além disso, o Instituto Evandro Chagas, que é um centro colaborador da Organização Mundial da Saúde para arboviroses, também começou a investigar casos de abortamento de fetos no Acre. Em uma dessas investigações, identificaram a presença do vírus oropouche em um feto que sofreu abortamento. Emitimos uma nota técnica para alertar toda a rede de vigilância do país para investigar também o oropouche em casos de morte fetal.
Tivemos a primeira confirmação em Pernambuco. Conseguimos identificar algo que não havíamos conseguido anteriormente no Acre, pois não estávamos com essa vigilância mais rigorosa. Mas como já havíamos alertado toda a vigilância, foi feita uma investigação detalhada, e na sexta-feira passada identificamos e comunicamos às autoridades sanitárias internacionais, como a Organização Pan-Americana da Saúde e a Organização Mundial da Saúde, que esse vírus estava atravessando a barreira placentária e podendo ser transmitido de mãe para feto.
Como está o trabalho dos grupos de pesquisa do Ministério da Saúde sobre o vírus?
É muito importante ressaltar a importância desse investimento na ciência. Se não tivéssemos feito esse investimento na ciência, em um teste da Fiocruz, que inicialmente tinha uma utilização limitada, hoje não teríamos essa ferramenta. Esse teste diagnóstico, produzido aqui no Brasil, está sendo solicitado pela Organização Pan-Americana da Saúde para outros países das Américas. O Brasil hoje é o único país que tem esse teste, o que é motivo de orgulho para nós, fruto do investimento na ciência.
Muitas vezes, estamos investindo em algo que tem uma ação limitada no primeiro momento, mas sempre temos que ter em mente que os vírus estão evoluindo, podem se modificar e alterar seu comportamento. O que eles não faziam antes, agora podem fazer, como estamos vendo agora com o oropouche e sua capacidade de ultrapassar a barreira placentária. A placenta é uma barreira importante de proteção, geralmente impedindo que vírus e bactérias sejam transmitidos da mãe para o feto. Alguns vírus conseguem ultrapassar essa barreira, e por isso é muito importante identificar isso precocemente, como fizemos.
Essas pesquisas financiadas pelo Ministério da Saúde são fundamentais para entendermos como esse vírus está evoluindo, quais mutações ele está fazendo. Atualmente, no Brasil, estamos sediando um encontro internacional que estuda essas evoluções genéticas dos vírus. Temos mais de 33 países participando e uma sessão específica sobre oropouche será realizada para entendermos melhor.
Outra questão são as manifestações clínicas, como o vírus ataca nosso organismo e causa doenças mais graves. Até então, não tínhamos visto gravidade associada ao oropouche. Mas agora vimos duas mortes na Bahia de pessoas sem comorbidades, que não tinham predisposição para ter uma doença mais grave, mas que morreram pelo oropouche. Isso foi muito diferente do que tínhamos visto antes, inclusive em outros países. Também com uma capacidade muito grande de investigação do estado da Bahia.
Além disso, estamos estudando o vetor, que não é o Aedes, mas o Culecoides paraensis, um mosquito que ainda conhecemos pouco. Temos muito menos pesquisas sobre ele. O Aedes, por outro lado, já é bem estudado, sabemos quais inseticidas usar, temos um grande acúmulo de pesquisas e evidências relacionadas a ele. Mas para o Culecoides paraensis, o maruim, ou mosquito pólvora, como alguns chamam, temos um conhecimento limitado. Ele está mais presente em áreas silvestres, e sua forma de reprodução é diferente. As recomendações que fazemos para o Aedes, como evitar água parada, são diferentes para o maruim, que se reproduz em material orgânico. Então, folhas acumuladas, frutas caídas no chão, tudo isso pode ser um local de reprodução para ele.
Na semana passada, tivemos uma reunião em Pernambuco, com todos os especialistas do país sobre esse assunto, pesquisadores e sociedade civil, que é muito importante nesse momento. Pernambuco tem uma organização importante devido ao que viveu na epidemia de zika, que impactou várias famílias, com crianças nascendo com microcefalia. A associação Mães de Anjos também esteve presente nesse encontro, para que possamos trazer os aprendizados daquela epidemia e nos preparar melhor para possíveis aumentos futuros de casos.
Sempre falamos que, em relação a emergências, epidemias, pandemias, quanto mais você se prepara antes, melhor você chega quando o evento acontecer. Se não acontecer, melhor ainda, significa que a nossa preparação conseguiu conter a explosão. Então, a preparação é muito importante, preparar o serviço de saúde, treinar os profissionais, que é isso que a gente está fazendo agora. Então, nós estamos aproveitando esse momento para construir o nosso plano de enfrentamento, para todas as arboviroses, incluindo agora também o oropouche.
Já há informações sobre a taxa de propagação, índices de casos graves e grupos mais suscetíveis à febre oropouche?
No dia primeiro, nós lançamos o painel no site do Ministério da Saúde. Toda a população pode acompanhar as informações sobre a faixa etária das pessoas acometidas, sexo, aonde estão, em que local. Nesse momento, nós temos o número de casos limitado. Nós tivemos dois óbitos, essa primeira transmissão vertical confirmada, então ainda temos poucos elementos para construir as nossas medidas mais direcionadas. Nesse momento, o que nós estamos dizendo é: é preciso fazer prevenção com um alerta mais focado nas gestantes, por conta da possibilidade desse vírus ultrapassar a barreira placentária. Isso nos coloca num desafio maior.
É um mosquito para o qual os inseticidas que usamos usa para o Aedes não funcionam. Então nós temos que entender, por isso que esses grupos de pesquisa são importantes para nós. É uma doença que não é nova, mas a apresentação dela mudou. Quando isso acontece, precisamos sempre ter a pesquisa como nossa aliada. Os pesquisadores que estão ali, que conhecem, que podem nos dar as melhores respostas.
Até o momento, sabemos que esse mosquito se reproduz diferente do aedes, em material orgânico, então é importante alertarmos para a limpeza. Agora, temos que prestar atenção na água parada e na limpeza do local. Também é necessário um alerta para as autoridades, os prefeitos, secretários municipais, secretários estaduais, governadores, para que a gente possa nos preparar para um possível aumento no início do ano.
Estamos em um momento epidêmico menor, mas a nossa preocupação é com o próximo ciclo. O Infodengue já disse pra nós que, se em 2024 a epidemia se antecipou para janeiro, é possível que em 2025 ela se antecipe para o fim de 2024. É para isso que estamos nos preparando, fazendo todas essas análises, conversando com os pesquisadores, fazendo essas oficinas, para que possamos oferecer o melhor que o conhecimento até o momento tem.
Chamo atenção para o fato de que, como as arboviroses são doenças do Sul Global. Nós não temos antivirais. Então, é muito importante que os países do Sul Global se unam para construir as pesquisas e inovações tecnológicas para as doenças que nos afetam. Isso não virá do norte global. Precisamos nos unir para construir nossas próprias inovações tecnológicas.
É por isso que nossas instituições de pesquisa são muito importantes e precisam de investimento para encontrar soluções para os problemas que temos no nosso país. Se não focarmos nisso e fizermos os investimentos necessários agora, daqui a 5, 10, 20 anos, estaremos falando a mesma coisa, esperando que o norte global encontre soluções para os nossos problemas. Mas isso não acontecerá.
O que a população pode fazer para se prevenir da febre oropouche, especialmente para as gestantes, que agora tem uma preocupação a mais?
O que já sabemos sobre o comportamento desse mosquito nos diz que ele não pica por cima da roupa, então cobrir a maior área do corpo possível é uma medida importante. Fazer a limpeza dos locais, não deixar material orgânico acumulado, porque é onde ele se reproduz. Restos de plantas, frutas, folhas que caem no terreno podem servir de criadouros. Um detalhe importante são as calhas, que às vezes ficam obstruídas por folhas e podem ser um local de reprodução do mosquito. Então, é importante fazer essa varredura no nosso entorno, especialmente onde há gestantes.
Estamos também estudando se o repelente indicado para o aedes funciona contra o maruim. Essas são novas perguntas, porque não temos muita informação na literatura sobre essa doença. Vamos ter que encontrar as respostas aqui. Por isso falei da importância dos investimentos em pesquisa. Não dá para criar um pesquisador especializado em oropouche da noite para o dia; é algo que leva tempo. Felizmente, já temos pesquisadores que vinham estudando isso, e por isso estamos chamando-os para nos ajudar a pensar nas soluções.
Por enquanto, é isso que temos: não temos um medicamento antiviral específico, não temos uma vacina. Este mosquito está espalhado por toda a região das Américas, já foi identificado desde os Estados Unidos até a Argentina. É um mosquito com uma grande capacidade de transmissão.
Estamos também atentos ao que está acontecendo nos países vizinhos, especialmente em Cuba, onde 74 casos foram identificados. Cuba não tinha registrado a presença desse mosquito anteriormente, então estamos acompanhando de perto, porque se identificarem outro agente, vetor ou mosquito que possa transmitir esse vírus, precisamos ficar em alerta. O mundo está conectado, e temos que prestar atenção ao que acontece em outros lugares.
Próximo a nós, existe essa colaboração. Na América, a Organização Pan-Americana da Saúde faz uma boa gestão disso, e temos essa comunicação com nossos colegas de outros países para saber o que está acontecendo lá e também alertar a nossa vigilância aqui. O mundo está conectado, cada vez mais, e o que acontece em um lugar pode ter consequências em outros. Portanto, estamos acompanhando o que acontece nos outros países.
O Repórter SUS é uma parceria entre o Brasil de Fato e a escola Politécnica de saúde Joaquim Venâncio, da Fundação Oswaldo Cruz.
Edição: Thalita Pires