Por Patrícia Geittenes Tondelo* e Fabiano Rocha Diniz**
O crescimento urbano na Metrópole do Recife esteve frequentemente acompanhado de problemas de ordem social, econômica e ambiental que levaram à exposição da população mais pobre a diversas condições de vulnerabilidade - que tendem a se agravar com as mudanças climáticas. O que assistimos este ano de 2024 no Rio Grande do Sul já ocorreu no Recife em diversas ocasiões, como a cheia de 1975, lembrada até hoje.
No contexto em que vivemos, é possível observar diariamente os impactos previstos do câmbio climático, com a ocorrência cada vez mais frequente e intensa de eventos extremos, como chuvas, inundações, deslizamentos e o aumento do nível da água do mar. Assim, cabe-nos questionar: o risco inerente aos aspectos climáticos é ampliado pelas condições de pobreza e precariedade nas cidades? Ou seria o contrário, nos lugares de extrema pobreza, as situações de precariedade urbana são exacerbadas pelas mudanças climáticas?
A cidade do Recife tem um histórico no qual os melhores locais para se viver sempre foram disputados (e conquistados) pelas camadas sociais de maior poder aquisitivo, enquanto restam as terras menos atrativas (morros ou áreas alagáveis, como mangues e bordas de rios) para as camadas de baixo rendimento.
Segundo levantamento realizado pelo Governo Federal, no Brasil existem 1.942 municípios com grande suscetibilidade, com áreas frágeis, mais predispostas a desastres como deslizamentos de terras, enxurradas e inundações. Entre esses estados, Pernambuco é o terceiro com maior proporção da população abrigada em áreas de risco: 11,6% dos pernambucanos.
Em toda a região metropolitana, moradores convivem com transtornos causados pelas chuvas fortes, ocorrência de alagamentos e deslizamentos. No entanto, essas consequências não são sentidas igualmente por todas as pessoas.
Se, por um lado, os edifícios em altura com garagens nos pavimentos próximos ao solo são uma alternativa para morar na várzea inundável pelas classes de maior rendimento, por outro, as construções improvisadas nas encostas e margens de rios não são uma boa opção - mas é a única que existe para grande parte das classes com menor renda.
A vulnerabilidade, como o grau de fragilidade de indivíduos ou comunidades, não é resultante apenas da exposição a riscos ambientais, mas uma condição que decorre também de processos históricos e sociais de consolidação das cidades. Assim, pode ser ao mesmo tempo social e ambiental.
Essa situação ficou bastante evidente com os eventos climáticos ocorridos em maio de 2022, quando comunidades periféricas, precariamente consolidadas, foram fortemente atingidas por inundações e deslizamentos que levaram ao colapso do solo encharcado nas terras altas, inundaram áreas baixas, destruíram parte das moradias e acarretaram perdas de vidas humanas.
Esse foi o caso de Vila Arraes e Jardim Monte Verde, duas comunidades fortemente atingidas por inundações e deslizamentos provocados pelas chuvas. Em maio de 2022, morreram mais de 20 pessoas em Jardim Monte Verde, num total de mais de 130 mortes em toda região metropolitana.
Neste contexto de mudanças climáticas, muito se tem dito que a cidade precisa e deve ser resiliente, por isso precisamos entender melhor: o que é ser resiliente? Comumente, este termo é traduzido com a capacidade que as pessoas, as organizações humanas ou as cidades têm de se recuperar, se reconstruir, após um acidente ou desastre.
Entretanto, já se compreende que este "renascer das cinzas" não é mais suficiente. É preciso ir além, o verdadeiro desafio é reduzir ou erradicar as situações de risco, conviver com elementos vistos como hostis e causadores de problemas, como as águas das chuvas e dos rios.
Objetivamente, construir sobre morros e sobre as águas (em palafitas, casas flutuantes ou sobre pilotis) é possível, caso seja feito de modo seguro e capaz de produzir um habitat de qualidade e culturalmente apropriado. Mas, para que isso aconteça, defendemos que o planejamento urbano, o controle urbanístico-ambiental e as medidas para reduzir a desigualdades e vulnerabilidades devem estar a serviço dos que mais precisam, os moradores dos assentamentos precários e vulneráveis.
As comunidades e as zonas de especial interesse social (CIS e ZEIS, como são chamadas) são os territórios que necessitam receber a atenção prioritária das gestões municipais. Sua urbanização, com implantação de infraestruturas e serviços urbanos de qualidade, com melhoria ambiental e qualificação das moradias e dos espaços públicos devem ser realizadas urgentemente.
Em ano de eleição municipal, oferece-se uma oportunidade aos futuros gestores da metrópole de considerar e, acima de tudo, reconsiderar propostas de intervenções urbanísticas que contribuam e promovam a resiliência climática e o direito à cidade. O urbanismo como campo profissional dedicado à organização e melhoramento das condições de vida nas cidades é uma ferramenta a ser mobilizada para mitigar os impactos do clima e proporcionar cidades mais equitativas, saudáveis e com menos riscos para a população.
É preciso valorizar e resgatar os esforços que deram origem ao “Manual de Ocupação dos Morros”, desenvolvido pelo Programa Viva o Morro (1999), cuja produção é fruto de um esforço conjunto da universidade pública, das prefeituras municipais da Região Metropolitana do Recife, do Governo do Estado de Pernambuco e da sociedade civil, com apoio de profissionais de múltiplas disciplinas.
O manual apresenta uma série de ações de resposta e prevenção aos acidentes em locais de risco, aplicáveis às regiões de morros do Recife e da RMR. São ações a longo prazo que envolvem estruturação do espaço urbano, dotando-o de infraestrutura urbana, regulação e controle da ocupação habitacional compatível com a fragilidade ambiental dos morros.
Também busca romper com paradigma predominante de que os morros são inacessíveis e não favoráveis à urbanização e mudar a forma como são vistos e tratados pelos agentes públicos. Entende-se que os morros constituem um espaço parcialmente edificável, que precisa de orientação técnica para serem lugares de moradia seguros se requalificados, a partir da análise crítica de práticas consolidadas por parte da construção pública ou autopromovida pela população.
Mas por que estamos resgatando esse manual? Primeiro, o material é um excelente exemplo de produção que considera o contexto local, abrangendo questões relativas ao relevo, geologia, clima, modo de construção e a cultura e a condições de habitar os morros da RMR.
Segundo, o material vai ao encontro dos objetivos das atuais bases federais com o retorno do Ministério das Cidades em 2023 e a criação da Secretaria das Periferias (Decreto nº 11.468, de 5 de abril de 2023). De acordo com o artigo IV do decreto de criação, compete à Secretaria da Periferia “coordenar e apoiar as atividades relacionadas à redução de desigualdades e de riscos de desastres e as ações destinadas ao enfrentamento de necessidades habitacionais nos territórios urbanos vulneráveis, com foco na urbanização de assentamentos precários, na regularização fundiária urbana e na melhoria habitacional”.
Com a criação do “Programa Periferia Sem Risco”, a recém instituída secretaria também já se posiciona diante das mudanças climáticas, cujo objetivo é fortalecer o desenvolvimento de capacidades locais de infraestrutura, planejamento, informação e participação social para enfrentamento das desigualdades e redução das vulnerabilidades relativas a riscos de deslizamento e inundação nas periferias brasileiras.
Deixamos aqui uma reflexão final: entendemos que relançar a luz sobre o Manual de Ocupação dos Morros nos permitiria perceber que não estamos na estaca zero frente às mudanças climáticas. Muito já foi feito e muito continua à espera da oportunidade para ser resgatado e aplicado nos territórios periféricos.
Sabemos que habitar os morros reflete o dilema de muitas metrópoles brasileiras de Norte a Sul do país, cujo crescimento decorre de processos históricos de ocupação pelas populações mais carentes. Sugerimos irmos além da escala local e considerar também o potencial do Manual Viva os Morros, com adaptações, para aplicação em outros contextos nacionais.
*Arquiteta e Urbanista, doutoranda no programa de pós-graduação em Desenvolvimento Urbano (MDU/UFPE) e Pesquisadora do Observatório das Metrópoles – Núcleo Recife.
**Professor do departamento de Arquitetura e Urbanismo da UFPE, pesquisador do Observatório das Metrópoles - Núcleo Recife e da Comunidade Interdisciplinar de Ação, Pesquisa e Aprendizagem (CIAPA).
As opiniões contidas neste artigo não necessariamente refletem a linha editorial do Brasil de Fato.
Fonte: BdF Pernambuco
Edição: Vinícius Sobreira