Nenhum migrante quer deixar sua casa e ser tratado como cidadão de segunda classe
Queridas amigas e amigos,
Saudações do Instituto Tricontinental de Pesquisa Social.
Em uma noite de verão, o sol implacável sobre o Níger se recusou a descer no horizonte. Procurei um pouco de sombra com três homens ansiosos no Touba au paradis, um pequeno e tranquilo restaurante em Agadez. Esses três nigerianos tentaram fazer a travessia em Assamaka, ao norte, para a Argélia, mas encontraram a fronteira bloqueada. Eles esperavam que seu destino final fosse a Europa, do outro lado do Mar Mediterrâneo, mas primeiro tinham que chegar à Argélia e, depois, atravessar o notável Deserto do Saara. Na época em que os conheci, nenhuma dessas travessias era possível.
A Argélia fechou a fronteira, e a cidade de Assamaka foi invadida por pessoas desesperadas que não queriam recuar, mas não podiam avançar. Esses homens me disseram que fugiram da Nigéria não por causa de qualquer ameaça física, mas simplesmente porque não conseguiam ganhar a vida em sua cidade natal. A alta inflação e o desemprego tornaram a situação na Nigéria impossível. “Como poderíamos ficar em casa”, disseram eles, “se nos tornamos um fardo para nossas famílias mesmo depois de terminarmos a escola?” Três homens nigerianos instruídos, desesperados para ganhar a vida, incapazes de ganhar a vida em casa, decidiram, contra seus próprios desejos, fazer uma viagem potencialmente fatal em busca de uma maneira de viver com dignidade.
Tive essa mesma conversa com migrantes em vários continentes. Se o total da população migrante global, que foi estimada em 281 milhões em 2020, pudesse ser contada como um país, seria o quarto maior país em população, depois da China, da Índia e dos Estados Unidos. Cada migrante tem uma história única, é claro, mas alguns traços são semelhantes. Hoje em dia, a maioria dos migrantes não se enquadra nas categorias de refugiados do antigo tratado – solicitantes de asilo que escapam de perseguição com base em “raça, religião, nacionalidade, filiação a um determinado grupo social ou opinião política”. Essa definição vem da Convenção e Protocolo Relativos à Situação dos Refugiados de 1951, que foi redigido no início da era da Guerra Fria. As tensões eram altas na época, pois os países ocidentais constituíam a maioria da ONU. De janeiro a agosto de 1950, a URSS boicotou vários órgãos da organização porque a ONU não concedeu à República Popular da China um assento no conselho de segurança. Dessa forma, a convenção foi baseada em uma concepção ocidental de refugiados como pessoas que estavam fugindo da “falta de liberdade” (atribuída à URSS) rumo à “liberdade” (que se presumia ser o Ocidente). Não havia nenhuma provisão para o movimento de pessoas submetidas a dificuldades econômicas graves devido à estrutura neocolonial da economia mundial.
Apesar de muitas tentativas de redefinir o termo “refugiado”, ele permanece no direito internacional como um termo relacionado à perseguição e não à fome. Os três homens em Agadez, por exemplo, não enfrentaram perseguição de acordo com a Convenção de 1951, mas sofreram muito em um país assolado por uma crise econômica de longo prazo. Essa crise foi originada dos seguintes elementos: uma parcela inicial da dívida foi herdada dos governantes britânicos; mais dívidas do Clube de Paris dos países credores usadas para construir a infraestrutura negligenciada durante o passado colonial da Nigéria (como o projeto de uma barragem no rio Níger); mais dívidas agravadas por empréstimos internos para modernizar a economia; o roubo de royalties das consideráveis vendas de petróleo da Nigéria. A Nigéria tem a 10° maior reserva de petróleo do mundo, mas uma taxa de pobreza de cerca de 40%. Parte dessa situação escandalosa se deve à extrema desigualdade social: o homem mais rico da Nigéria, Aliko Dangote, tem riqueza suficiente para gastar 1 milhão de dólar por dia durante 42 anos. Os três homens em Agadez têm dinheiro suficiente para atravessar o Saara, mas não o suficiente para atravessar o Mar Mediterrâneo. Enquanto eu falava com eles, me veio à mente a ideia de que provavelmente fracassariam em seu primeiro obstáculo. O que tinham pela frente era a luta para voltar para casa, onde nada restava, já que haviam liquidado todos os seus bens para a viagem fracassada.
Por que esses homens querem viajar para a Europa? Porque a Europa promove uma imagem de riqueza e oportunidade para o resto do mundo. Foi exatamente isso que me disseram. Os países dos antigos colonizadores seduzem com suas cidades em parte construídas com riquezas roubadas e agora atraem migrantes. E esses antigos colonizadores continuam a saquear os países em desenvolvimento: as cinco principais empresas petrolíferas que operam na Nigéria são a Shell (Reino Unido), a Chevron (EUA), a TotalEnergies (França), a ExxonMobil (EUA) e a Eni (Itália). Esses antigos colonizadores também continuam vendendo armas para suas antigas colônias e a bombardeá-las quando elas querem exercer sua soberania.
Em 1996, o escritor indiano Amitava Kumar publicou um poema chamado “Iraqi Restaurant”, que descreve uma realidade que traz seu assombro a esta carta semanal:
Os estadunidenses transformaram cada casa
em Bagdá em um forno
e esperarampelos iraquianos
aparecerem como cozinheiros
nos EUA, como os vietnamitas antes deles.
Ultimamente, tenho pensado nos migrantes que também estão tentando escalar a cerca da fronteira de Melilla, entre o Marrocos e a Espanha, ou atravessar a região de Darién, entre a Colômbia e o Panamá, aqueles que estão presos em prisões como o centro de detenção da Ilha Manus, em Papua Nova Guiné, ou o Centro de Processamento de El Paso Del Norte. A maioria deles são “refugiados do FMI”, ou “refugiados de mudança de regime”, ou refugiados do clima. Esses são termos desconhecidos no léxico da convenção de 1951. Uma nova convenção teria que levar essa realidade a sério.
Do total de 281 milhões de migrantes registrados, 26,4 milhões são refugiados registrados e 4,1 milhões são solicitantes de asilo registrados. Isso significa que muitos dos outros 250,5 milhões de migrantes são refugiados do FMI, de mudanças de regime ou de mudanças climáticas. Quando o Relatório Mundial sobre Migração 2024 da ONU observa que “o número de pessoas deslocadas devido a conflitos, violência, desastres e outros motivos atingiu os níveis mais altos dos registros modernos”, ele se refere a esses migrantes e não estritamente àqueles que estão fugindo de perseguições.
Quero explorar mais detalhadamente as circunstâncias que criam esses refugiados formalmente não reconhecidos:
1. Refugiados do FMI
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Quase todos os países em desenvolvimento foram atingidos pela crise da dívida do Terceiro Mundo, exemplificada pela falência do México em 1982. O único antídoto disponível era aceitar as condicionalidades do FMI para seus programas de ajuste estrutural. Os países em desenvolvimento tiveram que cortar subsídios destinados à saúde e à educação e abrir suas economias para a exploração voltada para a exportação.
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O resultado foi a degradação dos meios de subsistência da maioria, o que os levou a ocupações precárias no mercado interno e à perigosa migração para o exterior. Em 2018 o relatório do Banco Africano de Desenvolvimento mostrou que, devido ao ataque à agricultura global, os camponeses da África Ocidental se mudaram das áreas rurais para as cidades e passaram a trabalhar em serviços informais de baixa produtividade. A partir daí, eles decidem partir para a atração de rendas mais altas no Ocidente e no Golfo. Em 2020, por exemplo, as maiores migrações foram para três países específicos (Estados Unidos, Alemanha e Arábia Saudita), onde o tratamento que os migrantes recebem é muitas vezes terrível. Esses são padrões de migração motivados por grande desespero, não de esperança.
2. Refugiados de mudança de regime
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Desde a queda da União Soviética, os EUA aumentaram sua força militar e econômica para derrubar governos que tentam manter a soberania sobre seu próprio território. Atualmente, um terço de todos os países, especialmente os países em desenvolvimento, enfrentam sanções punitivas dos EUA. Como essas sanções geralmente impedem que os países usem o sistema financeiro internacional, essas políticas criam o caos econômico e causam angústia generalizada. Os 6,1 milhões de migrantes venezuelanos que deixaram seu país o fizeram principalmente devido ao regime de sanções imposto ilegalmente pelos EUA, que tirou a vitalidade da economia do país.
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É revelador que aqueles que aplicam mais vigorosamente políticas de mudança de regime, como os EUA e a União Europeia, sejam menos caridosos com aqueles que fogem de suas guerras. A Alemanha, por exemplo, começou a deportar afegãos, enquanto os EUA expulsam venezuelanos que, em desespero, montaram acampamentos em Juárez, no México.
3. Refugiados das mudanças climáticas
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Em 2015, na Conferência das Nações Unidas sobre Mudanças Climáticas (COP21), em Paris, os líderes governamentais concordaram em criar uma Força-Tarefa sobre Deslocamento. Três anos depois, em 2018, o Pacto Global da ONU concordou que as pessoas que estão se deslocando por causa da degradação climática devem ser protegidas. Entretanto, o conceito de refugiados climáticos ainda não está estabelecido.
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Em 2021, um relatório do Banco Mundial calculou que, até 2050, haverá pelo menos 216 milhões de refugiados climáticos. À medida que os níveis de água aumentam, as pequenas ilhas começarão a desaparecer, tornando suas populações sobreviventes de uma catástrofe que não foi criada por elas. Os países com as maiores emissões de carbono são responsáveis por aqueles que perderão seus territórios para os estragos da elevação dos
Nenhum migrante quer deixar sua casa e ser tratado como cidadão de segunda classe pelos países que forçaram sua migração em primeiro lugar (conforme mostra o relatório Import Deport: European Migrant Regimes in Times of Crisis, do Zetkin Forum for Social Research). Em geral, as mulheres não querem viajar longas distâncias, pois a ameaça de violência de gênero representa um risco maior para elas. Elas preferem a dignidade onde quer que decidam viver. Novas políticas de desenvolvimento nas nações mais pobres, o fim das mudanças forçadas de regime que trazem guerra e destruição e uma ação mais robusta em relação à catástrofe climática: essas são as melhores abordagens para lidar com a crise ampliada de refugiados.
Há uma década, o poeta palestino Dr. Fady Joudah escreveu “Mimesis”, uma reflexão exatamente sobre essa linha de pensamento:
Minha filha
não faria mal a uma aranha
que se aninhou
no guidão de sua bicicleta
por duas semanas
Ela esperou
Até que ela saiu por vontade própriaSe você derrubar a rede, eu disse
Ela simplesmente saberá
que esse não é um lugar para chamar de lar
E você poderia andar de bicicleta
Ela disse: é assim que os outros
tornam-se refugiados, não é mesmo?
Cordialmente,
Vijay.
Edição: Nathallia Fonseca