Neste ano, o Abril Vermelho, jornada anual de mobilização do MST, tem como lema principal “Ocupar para o Brasil alimentar”. A ação amplia o debate sobre reforma agrária popular com a sociedade e denuncia o impacto do modelo de produção do agronegócio e suas implicações socioambientais.
Tendo como recorte o estado do Rio de Janeiro, o Brasil de Fato resolveu aprofundar o debate sobre a reforma agrária a partir de uma conversa com o professor do Departamento de Geografia da Faculdade de Formação de Professores da Universidade do Estado do Rio de Janeiro (Uerj) Paulo Alentejano, conhecido como Paulinho Chinelo.
Alentejano analisa a complexidade da questão agrária no estado do Rio, um território marcado pela distribuição desigual de terras. Na entrevista, o pesquisador aborda a trajetória e o papel central das ocupações realizadas pelo MST desde 1996, como as ações contribuíram para democratizar o acesso à terra, produzir alimentos de qualidade para a população fluminense e recuperar a biodiversidade de áreas degradas.
O professor da Uerj trata também sobre os desafios para a reforma agrária popular no Rio de Janeiro e a negligência dos sucessivos governos fluminenses com a população do campo.
“O que se tem verificado no estado do Rio nas últimas décadas é o agravamento das desigualdades e da crise agrária, a partir do aumento da concentração fundiária, da expulsão de trabalhadores do campo e da redução generalizada da produção agrícola, em especial de alimentos básicos, com forte impacto sobre a soberania alimentar”, aponta.
Confira a entrevista:
Brasil de Fato: Neste ano, o mote do Abril Vermelho é “Ocupar para o Brasil alimentar”. Como o senhor avalia as ocupações do MST no estado do Rio? Quais impactos elas trouxeram?
Paulo Alentejano: As ocupações de terra realizadas pelo MST no estado do Rio nas últimas décadas foram uma forma de contrabalançar, ainda que de forma limitada, essa tendência ao abandono da agricultura. Desde 1996, o MST realizou 60 ocupações de terra no estado do Rio de Janeiro, sendo 34 na região Norte Fluminense e 24 no município de Campos dos Goytacazes, a maioria em terras de antigas usinas de açúcar e álcool que faliram ao longo dos anos 1990, deixando uma grande quantidade de terras improdutivas e muitos trabalhadores desempregados e sem sequer terem sido indenizados.
Dessas ocupações, resultaram 22 assentamentos rurais no estado do Rio, 13 no Norte Fluminense e nove em Campos, ou seja, pouco mais de um terço nas três escalas. Nesses assentamentos foram assentadas 1.688 famílias no estado do Rio, 1.318 famílias no Norte Fluminense e 1.305 em Campos. Apesar de todas as dificuldades enfrentadas pelas famílias para produzir nestes assentamentos, infraestrutura precária, falta de crédito e assistência técnica, em muitos municípios do estado do Rio são nestas áreas que resistem as produções de alimentos básicos, como arroz, feijão, mandioca, frutas e verduras. Outro aspecto que vale destacar é a contribuição destes assentamentos para a recuperação ambiental destas áreas, antigas áreas de monoculturas e pastos degradados onde hoje há muito mais árvores e matas. Enfim, as ocupações permitiram transferir uma parte das terras antes controladas pelo latifúndio para trabalhadores rurais sem terra, nas quais estes hoje trabalham, produzem alimentos e recuperam a biodiversidade.
O estado do Rio, apesar do tamanho reduzido, tem uma alta densidade populacional, tornando o acesso à terra ainda mais disputado. Considerando o contexto social e político atual do estado, quais os principais desafios para a reforma agrária na região?
O estado do Rio de Janeiro é o mais urbanizado da federação, com 97,9% de população urbana. O que não significa dizer que as áreas rurais do estado sejam exatamente vazios demográficos, afinal, são mais de 300 mil pessoas vivendo no campo. Essa população, porém, tem recebido muito pouca atenção dos sucessivos governos fluminenses, em especial a parcela desses que vive da agricultura, atividade cada vez mais negligenciada pelas políticas públicas no estado.
Discursos como o da “vocação urbana”, da “vocação turística”, da “vocação energética”, buscam naturalizar os caminhos escolhidos para o desenvolvimento do estado do Rio de Janeiro, assim como os processos decorrentes destes. Foi o que se verificou com a instalação em diversas regiões do estado de grandes projetos de desenvolvimento com impactos nas áreas rurais, seja pela valorização das terras, seja pela expulsão de trabalhadores rurais de suas terras, atingindo inclusive assentamentos rurais como o Terra Prometida, cortado pelo Arco Metropolitano, o Zumbi dos Palmares, ameaçado pela construção de uma variante da BR-101 em Campos dos Goytacazes, do Ilha Grande e do Che Guevara, também localizados em Campos, atingidos pela criação do Parque Estadual do Açu, compensação ambiental do Porto do Açu.
Assim, o que se tem verificado no estado do Rio nas últimas décadas é o agravamento das desigualdades e da crise agrária, a partir do aumento da concentração fundiária, da expulsão de trabalhadores do campo e da redução generalizada da produção agrícola, em especial de alimentos básicos, com forte impacto sobre a soberania alimentar.
Os dados do Censo Agropecuário de 2017 (IBGE) para o estado do Rio de Janeiro revelam que a agricultura familiar é predominante, mas com baixa mecanização, afetando a capacidade produtiva. Houve alguma mudança neste cenário de lá para cá? Caso afirmativo, qual?
De fato, a maior parte dos tratores utilizados na agricultura fluminense encontra-se sob controle da agricultura patronal, um total de 7.331 veículos, contra 5.512 alocados na agricultura familiar, segundo o Censo do IBGE. Porém, há que se considerar o fato de que os estabelecimentos com menos de 10 ha são 58,3% do total, ocupam apenas 4,9% da área, mas geram 28,7 % do Valor da Produção Agropecuária (VPA). Por outro lado, os estabelecimentos com mais de 1.000 ha são apenas 0,3 % do total, ocupam 20,2% da área, mas geram somente 3,3% do VPA. Ou seja, os pequenos estabelecimentos, em geral enquadrados como agricultura familiar, são proporcionalmente muito mais produtivos que os grandes, agricultura patronal. Ou seja, a mecanização não assegura capacidade produtiva.
O cenário de lá pra cá não mudou, não houve qualquer alteração significativa no acesso dos pequenos agricultores a máquinas e equipamentos agrícolas, até porque as grandes corporações transnacionais que controlam a produção e a venda destes no Brasil seguem priorizando a produção de máquinas e equipamentos de grande porte, incompatíveis com o tamanho das terras, a capacidade financeira e, muitas vezes, também as características topográficas das terras sob controle da agricultura familiar.
A proximidade com mercados consumidores e a produção de alimentos orgânicos e feiras agroecológicas são alguns potenciais presentes no estado do Rio quando o assunto é agricultura familiar. O que pode ser feito para aprimorar esta conexão entre campo e cidade?
Parafraseando Chico Mendes, “agroecologia sem reforma agrária é jardinagem”. Sem reforma agrária não será possível massificar a agroecologia e ela continuará a atender apenas a nichos de mercado e não cumprirá o objetivo de fornecer alimentos saudáveis à classe trabalhadora. Ainda mais em um estado como o Rio de Janeiro com 97,9% de população urbana. Mas essa reforma agrária precisa ser acompanhada de uma nova política de produção de máquinas e equipamentos agrícolas adaptados apequena produção, de assistência técnica e financiamento condizentes com os princípios da agroecologia e de políticas de comercialização que apoiem a venda direta dos pequenos agricultores para os moradores de favelas e periferias urbanas.