Grenaldo Jesus Silva era militar em 1964, quando se opôs ao golpe deflagrado pela própria instituição que integrava. Preso e expulso da Marinha, fugiu de São Luís (MA), sua terra natal, para viver na clandestinidade em São Paulo. Constituiu uma família que não sabia do seu engajamento político e assim ficou por anos até que, em 1972, sentindo que o cerco fechava, tentou sequestrar um avião no aeroporto de Congonhas.
Denis Casemiro, pedreiro e agricultor, entrou no Sindicato de Lavradores de Votuporanga (SP), onde nasceu. Pouco depois e ainda jovem, se juntou às fileiras da Vanguarda Popular Revolucionária (VPR). Um ano antes de Grenaldo estampar as manchetes com a tentativa de fuga fracassada, Denis chegava à cidade de Imperatriz (MA). Tinha ali a missão de ajudar a organizar uma guerrilha rural contra a ditadura.
O maranhense foi capturado em São Paulo. O paulista, no Maranhão. Mortos pelo regime que combatiam, ambos foram enterrados como indigentes na vala clandestina de Perus do Cemitério Dom Bosco, em São Paulo (SP). Cerca de trinta anos depois, saíram da condição de desaparecidos da ditadura. Em coletiva de imprensa nesta quarta-feira (16), foi feito o anúncio da identificação dos remanescentes ósseos de Grenaldo e Dênis.
A descoberta foi feita pelo Centro de Antropologia e Arqueologia Forense (CAAF) da Universidade Federal de São Paulo (Unifesp), por meio de uma parceria com a Comissão Especial sobre Mortos e Desaparecidos Políticos (CEMDP) e o Ministério dos Direitos Humanos e da Cidadania (MDHC).
“É um dia de vitória, mas também de consternação”, resumiu a ministra dos Direitos Humanos, Macaé Evaristo. “Nós construímos a democracia. Mas a cultura autoritária instituída no Estado brasileiro, ainda é uma luta muito grande para que a gente possa dissolvê-la. Esse traço de autoritarismo está ainda muito presente nas instituições e nas forças de segurança do nosso país”, salientou.
Agora são seis os militantes contra a ditadura militar identificados na Vala de Perus. A última descoberta tinha sido em 2018, quando o irmão de Denis, Dimas Casemiro, e o sindicalista Aloísio Palhano tiveram os restos mortais reconhecidos. Antes, foram identificados Flávio Carvalho Molina em 2005 e Frederico Eduardo Mayr, em 1992.
Grenaldo e a carta não entregue
Com a feição similar e o nome idêntico ao do pai, Grenaldo Mesut – o filho – compareceu à coletiva de imprensa nesta quarta (16). Da plateia, secou os olhos algumas vezes. Foi a sua amostra de sangue que possibilitou a identificação do pai, com quem conviveu só até os quatro anos de idade. Optou por manter o silêncio ao ser abordado pela reportagem. “Estou ainda buscando o chão”.
Foi só adulto que soube a verdade sobre seu pai. Em 1972, quando Grenaldo Silva, aos 31 anos, tentou sozinho sequestrar um avião da Varig, a única informação que chegou à família foi pela imprensa. Um terrorista se suicidou. Foi com essa imagem, a de que era um “bandido”, que a família pobre e sem envolvimento político tocou a vida.
Outro que tocou a vida, mas assombrado por um segredo engasgado, foi José Barazal Alvarez. Ex-sargento especialista da Aeronáutica, foi ele o responsável por fazer o relatório do que tinha acontecido no aeroporto de Congonhas naquele fatídico 30 de maio. Entrou no avião pouco depois que Grenaldo Silva liberou todos os passageiros e boa parte da tripulação, foi rendido, imobilizado e morto com um tiro na nuca.
No bolso da camisa do ativista assassinado, Alvarez encontrou uma carta, suja de sangue, escrita ao filho. Nela, explicava quem era e contava sobre a intenção de fugir para o Uruguai, para que depois o garoto e a mãe o fossem encontrar. José Alvarez fez o relatório seguindo as ordens que lhe foram dadas pela ditadura.
Era 2002, Alvarez tinha 63 anos quando viu na capa da revista Época uma foto 3×4 de Grenaldo Silva. Era uma matéria da jornalista Eliane Brum. A procurou: precisava encontrar o filho do ativista, lhe dizer a verdade. Grenaldo Mesut tinha 35 anos quando sua esposa, Leila, também viu na capa a foto do sogro. Promovido por Brum, aconteceu então o encontro entre o filho do marinheiro e o ex-sargento. Ao conhecer a história do pai, caiu de joelhos. Todos choraram.
“Hoje é um dia de vitória”, anunciou a ativista Amelinha Teles, da Comissão de Familiares de Mortos e Desaparecidos, na coletiva desta quarta-feira. “Eu não conheci o Grenaldo pai, mas o filho sim. Ele chegou na minha casa querendo saber ‘quem foi meu pai’. A Crimeia [Teles] foi ao nosso arquivo, buscou a pasta e mostrou os documentos que nós tínhamos dele”, relatou a sobrevivente da ditadura. “Tinha ficado para ele que o pai foi um bandido. Foi então que viu. Foi um herói nacional”, sorriu.
Dênis, redescoberto
Supostamente, os restos mortais de Dênis Casemiro tinham sido os primeiros a ser identificados depois que a Vala Clandestina de Perus foi aberta durante a gestão municipal de Luiza Erundina (PT) em São Paulo, em 1990. A sua família lhe deu um enterro digno em agosto de 1991. Agora, passados 34 anos, descobre-se que aqueles remanescentes ósseos são de outra pessoa, ainda desconhecida. Com o teste DNA, o CAAF identificou, em outras ossadas, o material genético de Dênis.
Filho de um militante comunista, Dênis saiu de Votuporanga em 1967 para trabalhar na fábrica da Volkswagen em São Bernardo do Campo. Foi ali que, jogando futebol de várzea, conheceu os irmãos Devanir, Daniel e Jairo de Carvalho – dois dos quais seriam assassinados pelo regime mais tarde. Com eles, se integrou à Ala Vermelha, uma dissidência do Partido Comunista do Brasil (PCdB). Depois, passaria a militar na VPR.
Morto aos 28 anos por agentes do Departamento de Ordem Política e Social (DOPS), Dênis sofreu tortura por um mês, sob o comando do delegado Sérgio Paranhos Fleury. Documentos da ditadura apontam que ele teria tentado fugir da prisão antes de ser assassinado.
“O que estamos comprovando com o caso de Dênis e Grenaldo é que nós podemos identificar os desaparecidos políticos da ditadura. E da democracia”, declarou o professor Edson Teles, vice-coordenador do CAAF. “Temos meios para isso. Isso é um momento de abertura para um compromisso e uma responsabilidade”, atestou.