A ideia é de D. Pedro II, afirmam os defensores do projeto de construção de um terminal portuário privado em Arroio do Sal, litoral gaúcho, já batizado de Porto Meridional. Trata-se de um Terminal de Uso privado (TUP), no jargão das construtoras. O município é local de veraneio de milhares de pessoas que elevam a população local de 11.057 moradores para 90 mil nas férias (Ibge 2022).
Além de usarem a figura da realeza como argumento de qualificação da proposta, há quem veja vantagens econômicas, sociais e até estratégicas, como o senador Luiz Carlos Heinze (PP/RS), engenheiro agrônomo, ex-prefeito de São Borja, integrante da bancada ruralista no Congresso Nacional. Mas há uma forte corrente antagônica entre parlamentares gaúchos, na comunidade de Arroio do Sal e também entre cientistas e pesquisadores. O deputado estadual Halley Lino (PT), advogado, é uma voz que se coloca contra a criação do porto. O deputado é presidente da Frente Parlamentar em defesa do Porto de Rio Grande, criada no último mês de março.
O porto de Rio Grande fica a 464 km de distância de Caxias do Sul, região serrana que concentra grande número de empresas interessadas no terminal de Arroio do Sal. No entanto, bem mais perto da serra gaúcha está o porto de Imbituba, Santa Catarina, a 380 km de distância, e que até agora cumpriu muito bem com o seu papel de opção de escoamento de cargas. O litoral catarinense, com baías e enseadas, tem a costa naturalmente favorável à construção de estruturas portuárias.

De acordo com o senador Heinze, seriam necessários cerca de 400 anos de acúmulo de sedimentos para justificar uma dragagem semelhante à que é feita anualmente no porto de Rio Grande. “Essa eficiência se deve à localização geográfica privilegiada, à profundidade natural e às correntes marítimas favoráveis”, justifica. Heinze acredita que essa condição única irá representar uma significativa redução nos custos logísticos para o estado.
O senador é um dos articuladores da Frente Parlamentar em Apoio ao Porto de Arroio do Sal, criada em 2022 na Assembleia Legislativa gaúcha, que conta com o apoio da Federação das Indústrias do Rio GRande do Sul (Fiergs) e de outras entidades empresariais e patronais. O porto, ao norte do estado, favoreceria a logística de escoamento de cargas das empresas localizadas principalmente na região da serra. No entanto, bem pertinho da serra gaúcha, está o porto de Imbituba (SC), que até agora cumpriu com o seu papel.
Em pronunciamento na tribuna da Assembleia Legislativa gaúcha, o deputado Halley Lino disse que antes de criar novas instalações portuárias, “o estado deveria criar soluções para gargalos como das rodovias e dos pedágios, problemas que, segundo ele, levaram o setor de cargas migrar para o estado vizinho, Santa Catarina”. O parlamentar entende que o porto de Rio Grande atende de modo satisfatório a demanda do estado e que não há necessidade alguma de construir o terminal de Arroio do Sal.
O deputado destaca a localização privilegiada do porto de Rio Grande, com acesso à Lagoa dos Patos e protegido pelos molhes da barra do Rio Grande. “Temos importação de vários países, com destaque para a China, que tem 43% dos destinos das nossas cargas.”
Cientista critica a construção do porto
Não é bem assim, alerta o professor titular de geografia polar e glaciologia da Universidade Federal do Rio Grande do Sul (Ufrgs), membro da Academia Brasileira de Ciências (ABC) e professor colaborador na University of Maine, nos Estados Unidos, Jefferson Cardia Simões, que atua como consultor científico do Movimento Unificado em Defesa do Litoral Norte (Movln/RS). Simões esclarece que a construção do porto modificará o transporte de sedimentos no mar, resultando em erosão ao norte e acúmulo de sedimentos ao sul, afetando negativamente as praias e o turismo local.

O professor vai além: “há uma migração de sedimentos que ocorrem no sentido sul-norte, seguindo o fluxo da corrente marinha. A construção de uma estrutura no mar bloqueando o fluxo, fará com que a praia na parte ao sul do porto aumente com o depósito de sedimentos, enquanto a praia na parte ao norte sofrerá erosão”. E afirma que “isso é o básico da geomorfologia costeira”. Ou seja, a profundidade do mar na região será afetada e não haverá a vantagem esperada pelos apoiadores do projeto da época do Brasil monárquico.
O Instituto Curicaca, organização não governamental dedicada às questões ambientais e de cultura, questiona a construção do porto de Arroio do Sal desde o início do assunto, há pouco mais de dois anos. O Curicaca atua no litoral norte há mais de 20 anos e tem pesquisas sobre espécies migratórias, além de fazer parte do Conselho do Refúgio da Vida Silvestre da Ilha dos Lobos, em Torres, a poucos quilômetros da área em pode ser construído o terminal.
O coordenador técnico do Instituto, Alexandre Krob, reforça também o fato de ser comum baleias francas usarem o território entre Arroio do Sal e Torres para amamentar seus filhotes e seguir viagem em direção ao norte, assim como há grande fluxo de toninhas (golfinhos), tartarugas, além de lobos e leões marinhos que circulam em torno da Ilha dos Lobos. “A existência de um porto na área coloca em risco a vida dessas espécies e compromete todo o ecossistema local”, adverte.
A construtora
A manifestação do Movimento Unificado em Defesa do Litoral Norte/RS não foi suficiente para sensibilizar empresários e autoridades. A construtora paulista DTA Engenharia, que tem contratos com o governo federal e governos de estados e municípios, já apresentou ao Instituto Brasileiro do Meio Ambiente e dos Recursos Naturais Renováveis (Ibama) os estudos necessários para iniciar a obra. O presidente da DTA, João Acácio Gomes de Oliveira, disse que o futuro terminal privado de Arroio do Sal fará uma “concorrência saudável com o porto de Rio Grande e que o estado é carente de logística portuária”. Segundo o empresário, o porto de Rio Grande destina R$ 300 milhões por ano em dragagem para viabilizar a navegação e que o terminal de Arroio do Sal não necessitará desse procedimento.
O contrato de adesão para a instalação e exploração do Terminal de Uso Privado (TUP) do Porto Meridional de Arroio do Sal foi assinado em 18 de outubro de 2024. Por meio de nota, o Ministério de Portos e Aeroportos (Mpor) informou que “a autorização para o empreendimento é a primeira etapa do projeto. Comunicamos que o licenciamento ambiental é necessário para o início da execução das obras, conforme prazos previstos nos normativos do Instituto Brasileiro do Meio Ambiente e dos Recursos Naturais Renováveis (Ibama) diante das fases de implantação do projeto. Ou seja, para iniciar os trabalhos práticos, o titular do contrato precisa reunir todas as autorizações necessárias e regidas em normativas”.
A construção do terminal está orçada em R$ 6,5 bilhões, sendo R$ 1,5 bilhão destinados à infraestrutura e R$ 5 bilhões para berços e terminal. O Porto Meridional terá profundidade de 17m e capacidade para receber navios de até 399 metros. De acordo com a empresa, as obras devem começar na primeira metade de 2026, com início das operações previsto para a primeira metade de 2028. O terminal terá capacidade para movimentar 53 milhões de toneladas por ano.
A Fiergs, que reúne os grandes empresários do Rio Grande do Sul, também é a favor do terminal no Litoral norte. Por meio de nota, a direção da entidade informou que “a instalação de um novo porto em Arroio do Sal é importante para diversificar a oferta de estrutura logística do Rio Grande do Sul, hoje baseada somente em Rio Grande. A logística é um dos elementos que mais impactam na competitividade da indústria gaúcha”.
De acordo com a entidade empresarial, o estado conta com um complexo portuário de excelência e que está entre os portos que mais movimentam cargas no Brasil. “Outros estados exportadores contam com outras alternativas portuárias. Santa Catarina tem cinco portos de significativa relevância, contribuindo para maior concorrência, especialização e oferta de competitividade logística. Assim, a adição de uma alternativa portuária no Litoral Norte gaúcho pode fortalecer os laços da indústria gaúcha com o mercado internacional.”
A Fiergs estima que “o investimento no novo porto pode alcançar mais de R$ 4,7 bilhões para estruturas complementares e gerar cerca de 7 mil empregos diretos e indiretos. Soma-se a isso o estímulo à atividade econômica de forma geral”.
Sobre impactos ambientais, a entidade diz que “é necessário que todos os estudos apresentados sejam avaliados pelos órgãos competentes, para que possamos associar o desenvolvimento da economia com a preservação do meio ambiente e dos recursos naturais”.
O Ibama
O Ibama, por meio de nota à redação, confirmou ter recebido os documentos da DTA Engenharia. “A respeito do licenciamento do empreendimento Porto Meridional, proposto para instalação no município de Arroio do Sal, o Instituto Brasileiro do Meio Ambiente e dos Recursos Naturais Renováveis (Ibama) informa que o processo se encontra em andamento e que recebeu, recentemente, o Estudo de Impacto Ambiental (EIA) e o Relatório de Impacto Ambiental (Rima) do empreendedor.”
A nota afirma ainda que agora, cabe ao Ibama efetuar o checklist do estudo para verificar se está em conformidade com o Termo de Referência emitido pelo Instituto. “É importante destacar que o prazo para análise do estudo só passa a contar após o aceite do documento, o qual depende do checklist. Com a conclusão do checklist, o Ibama terá até seis meses para análise, período em que o Instituto poderá pedir complementações ao estudo no âmbito da análise técnica e realizar, pelo menos, uma audiência pública, para que a população local possa se manifestar sobre os possíveis impactos ambientais do empreendimento.”
Os moradores
A bióloga Nance Nardi, professora aposentada da Ufrgs, veranista há mais de 50 anos em Arroio do Sal e moradora há cinco, diz que a região é um paraíso por sua tranquilidade e belas paisagens que incluem a praia em si, lagoas, parques e patrimônios ambientais e históricos, como os sambaquis.
Os sambaquis são sítios arqueológicos catalogados e que abrangem um período de 3.660 anos A.C até a invasão europeia no século 18, sendo que 25 deles constam como prioritários pelo Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional (Iphan).
De acordo com a bióloga, “além dos impactos econômicos do projeto, que ao contrário do que é divulgado resultará em prejuízo econômico ao município, ao Litoral norte e a todo o estado, os impactos socioambientais são extremamente negativos, haverá poluição do ar e da água, alteração das correntes marítimas, com destruição dos habitats de inúmeras espécies, e problemas sociais reconhecidamente presentes nas áreas de construção de portos, como aumento das doenças infecciosas transmissíveis e tráfico de drogas, por exemplo”.
“É imensa a dificuldade, para não dizer impossibilidade”, salienta a bióloga, “de construir um porto em uma linha de mar aberto como o do Rio Grande do Sul, basta termos o porto de Rio Grande, instalado com muito êxito”.
A moradora de Arroio do Sal salienta que o terminal vai desviar cargas que seriam escoadas normalmente por Rio Grande. Nardi alerta que “não existe explicação plausível para criar uma concorrência interna”. Além disso, seria necessário abrir novas estradas pela Serra do Mar para alcançar o terminal e que a Mata Atlântica é protegida por lei.
“Pessoalmente acredito que o envolvimento de empresários e políticos em um projeto tão mal estruturado deve-se a interesses especulativos. Além da valorização de imóveis, haveria circulação de recursos, inicialmente previstos como exclusivamente privados, mas como já está sendo divulgado, também com recursos públicos”, avalia.
Para o estudante de geografia no Campus Litoral Norte da Ufrgs Artur Duprat de Oliveira, de 20 anos, morador em Arroio do Sal desde os seis, a especulação imobiliária pode ser a verdadeira estratégia por trás da proposta de um porto na cidade. Ele acredita que os políticos que defendem o porto têm um discurso desenvolvimentista, que é o progresso chegando, mas qual será o preço? “Creio que exista uma especulação imobiliária e uma tendência a gentrificar o litoral. O preço dos imóveis subiu muito, principalmente depois da pandemia da covid-19, quando as pessoas saíram dos grandes centros urbanos.”

Uma rápida pesquisa nos sites de imobiliárias do litoral gaúcho mostra que uma casa com cerca de 200 metros quadrados e três quartos em Tramandaí, cidade com a maior infraestrutura urbana do litoral gaúcho, custa em média R$ 600 mil, mas em Arroio do Sal pode chegar a R$ 1 milhão.
Ainda de acordo com o estudante de geografia, “cidades portuárias não são exemplo de desenvolvimento social. Temos uma comunidade de pescadores que será impactada. E pequenas propriedades rurais familiares também serão afetadas. O que o nosso estado precisa é de um plano de desenvolvimento sustentado para o Litoral norte, com respeito à produção das populações tradicionais”, conclui.
