A atual guerra comercial entre Estados Unidos (EUA) e China pode abrir mercado para a Embraer, empresa brasileira de aviação que quase foi vendida para a Boeing durante o governo de Jair Bolsonaro (PL). Uma fala do presidente da República, Luiz Inácio Lula da Silva (PT), na última terça-feira (15), relembrou o caso.
“Outro dia, a Embraer era uma empresa quase quebrada, foi vendida para a Boeing. Ainda bem que a Boeing teve um desastre e não quis mais a Embraer. Ela agora voltou a ser coqueluche no mundo da aviação”, afirmou Lula.
O presidente se referia à possível decisão da China de suspender as entregas de jatos da empresa estadunidense, em resposta à decisão dos Estados Unidos de impor tarifas de 145% sobre produtos chineses. As três principais companhias aéreas do país asiático – Air China, China Eastern Airlines e China Southern Airlines – planejavam receber 45, 53 e 81 aviões da Boeing, respectivamente, até 2027. Os rumores sobre o boicote do país asiático à empresa estadunidense, no entanto, não foram confirmados oficialmente pelo governo chinês.
Segundo informações divulgadas pela Bloomberg, na terça-feira (15), o governo chinês teria orientado suas empresas a suspenderem as compras de equipamentos e peças de aeronaves de empresas americanas e anunciou que fará um plano para ajudar as empresas a enfrentar as consequências da decisão. Com isso, as ações da Boeing despencaram.
A economista Diana Chaib, pesquisadora das relações sino-brasileiras, avalia que o Brasil “passou raspando” de entrar em uma crise “por tabela”, ao se livrar de um acordo que vinha sendo negociado entre a Embraer e a Boeing, com a anuência do governo anterior, entre 2018 e 2019. “A Embraer escapou de uma crise por tabela ao não seguir adiante com esse processo de joint venture com a Boeing”, avalia.
Nos primeiros dias de seu governo, em janeiro de 2019, o ex-presidente Jair Bolsonaro (PL) anunciou que não exerceria seu poder de veto para o acordo entre a Embraer e a estadunidense Boeing para criação de uma nova empresa comercial.
Semanas antes, as empresas haviam anunciado a aprovação dos termos do acordo de fusão para a formação da joint venture Boeing Brasil Commercial, da qual a estadunidense Boeing deteria 80% e a Embraer, 20%. Com isso, a empresa brasileira abria mão do setor mais rentável da companhia, que é a produção de aviões comerciais, responsável por 58% dos lucros da Embraer em 2017.
“Se esse acordo tivesse sido efetivado, a divisão de aviação comercial da Embraer estaria agora sob controle da Boeing, justamente no momento em que essa empresa enfrenta restrições comerciais e diplomáticas na China. Então essa manutenção da autonomia da Embraer possibilitou ou viabilizou que ela negociasse diretamente com países como a China, sem essas amarras políticas e comerciais que estão agora afetando a Boeing”, considera a economista.
Após dois graves acidentes envolvendo aeronaves da Boeing entre 2018 e 2019 – o primeiro ocorreu na Indonésia e deixou 189 mortos, e o segundo, na Etiópia, matando 157 pessoas, em 2020 – a empresa estadunidense desistiu do acordo.
Segundo Chaib, a manutenção da Embraer como empresa nacional foi algo estratégico, já que o acordo incidiria sobre a soberania do país, sob o ponto de vista tecnológico e militar. “O setor aeronáutico não é apenas uma questão comercial, mas também envolve diretamente a transferência de tecnologia, a capacidade de inovação, e até questões de segurança nacional. Além disso, ter preservado a Embraer como uma empresa nacional fortaleceu a capacidade do Estado brasileiro de formular políticas industriais soberanas, evitando esse processo de desnacionalização de um dos poucos polos de tecnologia que a gente tem”, avalia.
“Nesse cenário crescente de tensão entre essas duas grandes potências, a China e os Estados Unidos, manter a Embraer como uma empresa brasileira é um ativo geopolítico importante para o Brasil e também vai permitir que a gente amplie parcerias com diversos países”, completa Chaib.
Para o economista, professor de Relações Internacionais e Economia da Universidade Federal do ABC (UFABC) e integrante do Observatório da Política Externa e da Inserção Internacional do Brasil (Opeb), Giorgio Romano, a guerra comercial entre Estados Unidos e China é uma demonstração de que o acordo entre Boeing e Embraer só prejudicaria a indústria brasileira da aviação.
“Com certeza essa situação mostra que todos os argumentos para entregar a Embraer para a Boeing estavam errados. A Embraer conseguiu mostrar sua resiliência e é importante para o Brasil, embora, evidentemente, importa muitas peças dos Estados Unidos, e isso continua”, pondera o professor. “O desafio é ampliar e avançar no adensamento da cadeia nacional e isso exige escala.”
Impacto no mercado global da aviação
Romano avalia que ainda é difícil avaliar os impactos do anúncio da China para o mercado internacional da aviação, principalmente pela instabilidade das decisões tomadas pelo governo estadunidense. Ele pondera que, caso as decisões de ambos os lados se mantenham, a China pode aproveitar a oportunidade para se aproximar de outros parceiros comerciais.
“A principal concorrente da Boeing na China é a Airbus, são os europeus. Então, inclusive nessa busca da China de aproveitar para fazer estabelecer melhores relações com a Europa, aumentar as encomendas da Airbus vai ser também uma coisa interessante.”
Para a economista Diana Chaib, a suspensão da compra de aeronaves da Boeing por empresas chinesas é mais um revés comercial para a empresa estadunidense, mas “um reflexo direto das tensões geopolíticas e econômicas que estão marcando essa chamada guerra comercial entre a China e os Estados Unidos”.
“Para além do impacto sobre os negócios da Boeing, essa medida também pode sinalizar uma nova etapa na reorganização das cadeias globais de valor, em que países como a China procuram reduzir sua dependência de empresas estratégicas dos Estados Unidos, especialmente nesses setores de alta tecnologia e de defesa”, avalia a economista.
Chaib considera que a decisão do governo chinês “representa uma contestação ao domínio tecnológico e industrial dos Estados Unidos”, acelerando a “fragmentação da globalização” tal qual se conhece. “Esses setores altamente estratégicos, como o aeroespacial, tendem a ser os primeiros a refletir esse novo cenário de confrontos e reposicionamentos globais.”
Romano pondera que a China já busca desenvolver sua própria indústria de aviação, inclusive para a produção de aeronaves com capacidade semelhante às oferecidas pela Embraer, de modo que não é possível atestar que a suspensão das compras de aeronaves da Boeing pelo governo chinês poderia beneficiar diretamente a empresa brasileira.
“A própria China está investindo pesadamente para ter sua própria indústria de aviação, está avançando muito, inclusive na área onde a Embraer atua, que é outra categoria, dos aviões menores para voos regionais”, disse o professor.
Para Chaib, embora a Embraer não atue no segmento das aeronaves de grande porte, fabricadas pela Boeing, há espaço para que a empresa brasileira se beneficie da lacuna deixada pela empresa estadunidense no mercado chinês. “A Embraer já estava nesse processo de se movimentar para fortalecer sua posição em países como a China, aproveitando esse vácuo deixado pela Boeing”, afirma a economista.