A notícia da morte do Papa Francisco, no último dia 21 de abril, aos 88 anos, encerrou uma fase da Igreja na qual o pontificado de Francisco foi um dos mais emblemáticos e polarizadores da história recente da Igreja Católica. Seu legado já é objeto de intensa disputa: se, por um lado, foi amplamente celebrado por lideranças globais e por fiéis que se identificaram com sua figura associada a de um pastor sensível às dores e ao sofrimento do mundo, por outro lado sua atuação provocou resistências internas e ataques de setores conservadores dentro e fora da Igreja que o consideravam excessivamente progressista. A morte do Papa Francisco, mais do que o fim de uma era, reabre disputas internas acerca dos rumos pelos quais seguirá a Igreja no século XXI.
O papado de Bergoglio ficou marcado por uma série de ineditismos: foi o primeiro Papa vindo da América Latina, cuja região de maioria católica historicamente marginalizada na alta hierarquia vaticana. Sobre esse fato, o próprio Bergoglio ironizou ao dizer que os cardeais o foram “buscar no fim do mundo”. Sua atuação pastoral na periferia de Buenos Aires ficou marcada pela forma como ele procurou vivenciar o catolicismo: próximo dos pobres, avesso a ostentações e atento às injustiças sociais. Sua forma de atuação, desde o início, contrastava com o modelo, institucional e, por vezes, cerimonial de seus pares e da própria Cúria Romana.
É reconhecida, na Argentina, sua postura de compromisso com os mais vulneráveis. Mesmo como arcebispo, manteve um estilo de vida simples. No entanto, também em sua terra natal, não gozou de unanimidade e sua biografia foi marcada por críticas: parte da sociedade argentina e estudiosos apontam uma atuação ambígua ou omissa durante a ditadura militar (1976–1983). Apesar de sempre ter negado colaboração com o regime, inclusive com testemunhos de pessoas que também vivenciaram esse período o terem isentado dessa suposta colaboração, essa sombra nunca se dissipou completamente. Para alguns, inclusive, sua posterior atuação como Papa foi interpretada por alguns como um esforço de redenção da própria biografia ao fazer a opção preferencial pelos pobres e pelos perseguidos.
É inegável que, ao ser eleito Papa em 2013, seus primeiros gestos públicos deixaram claro que haveria uma mudança de estilo por parte do Pontífice. Rejeitou o uso de vestes pomposas, preferiu morar na Casa Santa Marta, escolheu o nome Francisco, em referência ao santo de Assis, símbolo da humildade e da paz. Promoveu e incentivou a colegialidade episcopal e o diálogo entre os diferentes setores da Igreja, sinalizando que desejava uma descentralização do poder no vaticano. Todavia, essas ações provocaram certo mal-estar em setores tradicionalistas e conservadores que viam, no simbolismo da pompa e da centralização, a garantia da autoridade papal e da unidade doutrinária.
Sua imagem e sua comunicação pública foi marcada por forte carisma e simbolismos e não é exagero afirmar que foi o líder religioso mais carismático da Igreja desde João Paulo II. Suas viagens apostólicas a países em conflito, sua linguagem afetiva e sua insistência na mensagem do perdão e da misericórdia — em detrimento da condenação moral — conquistaram a atenção de católicos e não católicos. Não era incomum vê-lo abraçando pessoas em situação de rua, lavando os pés de imigrantes, ou chorando diante de vítimas de tragédias humanitárias. Não por acaso, atraiu simpatia global em tempos de crescente indiferença institucional.
O Papa Francisco, em nome de uma maior colegialidade, também buscou ampliar a presença global da Igreja ao nomear cardeais vindos de regiões periféricas — como Oceania, Sudeste Asiático e países africanos pouco representados no Colégio Cardinalício. Ao que tudo indica, sua intenção era clara: tornar a Igreja Católica mais universal de fato, menos eurocêntrica e, consequentemente, menos refém das disputas eclesiásticas europeias. Por conseguinte, essa escolha de Francisco provocou desconfortos, especialmente entre bispos de países tradicionalmente influentes, que viram seu prestígio diminuir frente ao fortalecimento de vozes de fora da Europa.
Entretanto, seu papado também foi caracterizado por uma certa ambiguidade. Para os setores progressistas da Igreja, o Papa avançou menos do que se esperava em temas como o celibato clerical, o papel das mulheres e a questão do aborto. Por outro lado, para os tradicionalistas, Francisco ultrapassou os limites ao relativizar o tom disciplinar da doutrina. Essa dupla visão fez com que seu pontificado fosse, simultaneamente, visto como reformista e como continuador da tradição, dependendo do grupo ideológico que o analisa.
Essa ambivalência ficou evidente todas as vezes em que se posicionou contra o clericalismo e ao carreirismo dentro da Igreja. Francisco defendia a necessidade de uma “Igreja em saída” — expressão que cunhou para indicar uma instituição voltada para o mundo, e não reclusa em seus próprios debates internos. Também falava em “Igreja de portas abertas”, contrapondo-se ao elitismo teológico e ao moralismo excludente e condenatório. Porém, ao mesmo tempo, evitava gestos e reformas abruptas, preferindo abrir espaços de escuta e discernimento, como nos sínodos sobre a Amazônia e sobre a sinodalidade, que buscaram envolver leigos, mulheres e representantes de comunidades tradicionais. Nem seu tom conciliador foi bem visto por alguns setores na Igreja que o acusavam de leniente com os desvios doutrinários.
Ao longo do seu pontificado, os posicionamentos de Francisco diante das grandes questões globais também merecem destaque: sempre procurou demonstrar sensibilidade diante da fome, das guerras, da crise migratória, da crise climática e da crescente desigualdade. Entre os especialistas, sua encíclica Laudato Si’, dedicada ao cuidado com a casa comum, tornou-se referência ética na luta ambiental. Denunciou a “globalização da indiferença” e criticou, em diversas ocasiões, os excessos do neoliberalismo e da financeirização da vida. Essas posições o colocaram em atrito direto com forças políticas conservadoras, tanto no hemisfério norte quanto na América Latina e seus aliados dentro da Igreja.
Seu posicionamento diante de todas essas questões, tornaram Francisco alvo de ataques sistemáticos de grupos religiosos e políticos de orientação reacionária. Além de ataques externos, grupos internos da Igreja (leigos, padres e bispos), com destaque para influenciadores digitais e políticos católicos, o acusaram de enfraquecer a identidade cristã e, diuturnamente, questionaram a legitimidade do seu papado. Nas redes sociais, circularam insultos e até orações pedindo sua morte, revelando o grau de insensibilidade e polarização que sua liderança provocava. Sua opção preferencial pelos pobres e pelas minorias foi rotulada de “comunismo”, num anacronismo retórico que ignorava a tradição social do próprio catolicismo.
Após sua morte e o fim do seu pontificado, a Igreja se encontra num dilema: retroceder ou manter o legado de Francisco? Apesar de ter nomeado a maioria dos atuais 135 cardeais eleitores, o que poderia sugerir uma rota favorável de continuidade de seu legado, a correlação de forças no interior da Cúria permanece incerta. Não há dúvidas de que setores conservadores e tradicionalistas (que desde o início do pontificado de Francisco nunca deixaram de se manifestar) permanecem organizados, articulados e tentarão influenciar a escolha do próximo Papa no intuito de conter ou reverter as tendências pastorais promovidas por Francisco. O conclave que se aproxima será, portanto, palco de uma acirrada disputa sobre a identidade e a missão da Igreja no século XXI.
A morte do Papa Francisco não marca apenas o fim de um pontificado, mas o início de um processo de redefinição do catolicismo global. Provavelmente, sua figura continuará inspirando movimentos eclesiais, projetos pastorais e resistências institucionais na Igreja. Como todo grande líder religioso, seu legado não será pacífico nem consensual e não há sinas de que a fratura existente no interior do catolicismo será restaurada. Com sua partida, caberá aos católicos decidir se a Igreja seguirá pela trilha indicada por Francisco ou se retornará aos palácios e salões eclesiais silenciosos da autorreferência e da rigidez doutrinária e dogmática.
*Paulo César Batista é especialista em sociologia/antropologia da religião, professor da rede pública e privada no Rio de Janeiro, com doutorado em Ciências Humanas (Sociologia) pela Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ) e mestrado em Ciências Sociais pela Universidade Estadual do Rio de Janeiro (Uerj).
**Este é um artigo de opinião e não necessariamente representa a linha editorial do Brasil do Fato.