“Nós fomos atingidos no nosso bairro pele enchente. Três metros acima do telhado, a minha casa ficou 35 dias embaixo d’água Hoje a minha vida se resume num quartinho dois por dois. É difícil para entender uma pessoa na idade que eu estou, me ver dependendo de uma cuia para um chimarrão, fazer uma comidinha como eu gosto. Hoje eu não tenho tudo isso. E cadê nossas autoridades? Nosso bairro ficou abandonado. Nossas autoridades não fazem nada por nós. Por isso que eu estou aqui hoje, reivindicando tudo isso, pra ver se temos alguma coisa para descanso, para não acontecer tudo de novo”, desabafa a dona de casa aposentada, Maria Inês dos Santos, moradora do bairro Mathias Velho, em Canoas região metropolitana, de Porto Alegre.
Santos é uma das pessoas que tiveram sua residência atingida pela enchente de maio de 2024, que deixo cerca de 101 mil casas destruídas ou danificadas, de acordo com a Confederação Nacional de Municípios (CNM). Segundo estimativa da entidade, a catástrofe climática e socioambiental trouxe mais de R$ 8,4 bilhões em prejuízos financeiros ao estado sendo mais da metade na área da habitação (R$ 4,5 bilhões).De acordo com prefeitura de Canoas, mais de 180 mil pessoas chegaram a ficar desalojadas. Ao menos oito bairros de Canoas – Rio Branco, Fátima, Mato Grande, Central Park, Cinco Colônias, Harmonia, Mathias Velho e São Luís – ficaram submersos pela água.
A aposentada participou do terceiro encontro das cozinhas solidárias pós-enchente de maio de 2024, realizada na manhã deste sábado (26). Organizado pelo pelo Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra (MST) e do Levante Popular da Juventude, evento reuniu mais de 20 cozinhas comunitárias da região metropolitana, lideranças comunitárias, movimentos sociais e moradores afetados pela enchente, na Associação de Moradores Getúlio Vargas.

“O segredo tá nessa palavrinha, participação. O desafio é envolver, é motivar, é participar. Não existe algo inato. Ninguém nasce e aprende a participar. Nós aprendemos na sociedade capitalista a obedecer, a seguir reto. Então não esperem participação das pessoas. E a participação não é dada, é algo a ser construído através da conscientização”, afirmou o integrante do MST, Adalberto Martins (Pardal).
A cozinha é o coração, sem a cozinha não há revolução, enfatizou o coordenador do Levante da Juventude do RS, Lucas Gertz. “E que bom saber que é pela força popular, por saber que aqui existem mulheres e homens de luta, que essa associação aqui está de pé, bonita, viva, recebendo um monte de gente.”
Para Angela Comunal, da Associação de Mulheres Maria da Glória, encontros que estão sendo proporcionados pelos movimentos sociais com as cozinhas solidárias é de grande importância para a articulação de políticas públicas. “Durante a enchente, essa articulação entre cozinhas é o que deu esse aporte para que a gente conseguisse atender um número maior de famílias e de pessoas com as refeições”.

Em sua avaliação o que precisa ser feito agora é avançar a participação das cozinhas comunitárias e solidárias dentro dos debates de políticas públicas, na proposta do controle social, que são os conselhos de segurança alimentar e nutricional. “No Rio Grande do Sul, nós também temos um outro espaço de discussão da pauta da segurança alimentar e nutricional, que é o Fórum Democrático. As cozinhas precisam estar com suas representações nesses espaços também, porque é a partir dali que surge também a questão da política pública”.
Após o encontro matinal, os participantes seguiram em marcha até à Casa de Bombas 6 (rua Curitiba, nº 5.569), onde foi realizado ato onde mobilizam por ações concretas sobre impactos das enchentes.

Por direito, por memória, para o não esquecimento
“A gente tem que lutar. Não adianta ficar sentado dentro de casa reclamando e depois querer cobrar a resposta. A gente venceu aqueles 30 dias. Eu vim pra casa com 24 dias. A casa dos meus pais demorou 38 dias pra eles conseguirem entrar em casa. Assim como aqui embaixo também, acho que foi 40 dias. E a gente vai tentar passar por isso de novo? Não adianta colocar argila e não sei o que. Não, a gente quer uma obra que funcione, não é tapar o sal com a peneira”, enfatizou moradora durante o ato.
De acordo com os manifestantes, o rompimento do dique na Casa de Bombas 6 foi o ponto crítico do desastre em Canoas, e o local continua sem qualquer providência significativa para a contenção de novos desastres.
A carta, intitulada Ato pela vida – Quem passou tem pressa, com as reinvindicações dos atingidos também foi elaborada e lida no final do ato. O documento será entregue na prefeitura da cidade, na Câmara de Vereadores de Porto Alegre (RS) e para o governador do Rio Grande do Sul.
“Um ano depois, o abandono continua. Agora é a nossa voz que vai romper o silêncio. No dia 3 de maio de 2024, a maior enchente da história recente de Canoas destruiu casas, famílias, memórias. Foi uma tragédia anunciada. Mesmo com 48 horas de aviso sobre o que viria, o que nos deram foram sacos de areia, promessas vazias e um barco furado, que ainda estava emprestado para a cidade vizinha. E um ano depois, ainda tem gente esperando por tudo, teto, aluguel social, uma resposta, sinal de dignidade. Enquanto isso, R$ 6,5 bilhões já estão disponíveis para obras”, enfatiza trecho da carta.

O investimento ao que o documento se refere, é o anunciado ano passado pelo governo federal destinado para recuperação e melhorias de infraestruturas essenciais para evitar tragédias como a de 2024. Segundo o secretário para Apoio à Reconstrução do RS, Maneco Hassen os recursos estão disponíveis para o governo estadual investir desde dezembro, mas o governo de Eduardo Leite ainda não apresentou projetos.
Em nota, divulgada no porto, executivo estadual afirma investimento total de R$ 6,9 bilhões, distribuídos em diversas frentes de atuação através do Plano Rio Grande (PRG)
“Queremos saber onde está o dinheiro. Queremos obras nas ruas, não só nas propagandas. Queremos uma comissão de fiscalização e transparência: Queremos saber quais são os projetos reais, onde estão os recursos e por que não chegaram até as obras. O que está acontecendo aqui não é um simples protesto. É um marco. Um clamor. Uma súplica. Um pedido de ajuda. Um grito de socorro. Não é só por nós. É por quem se foi. É por quem ainda espera. É pela dignidade de uma cidade inteira”, ressalta outro trecho da carta.

Abaixo reivindicações dos moradores:
- Apresentação imediata do projeto de reforço dos diques;
- Obras urgentes de contenção e segurança;
- Plano de ação para eventos climáticos futuros;
- Celeridade na construção e entrega de moradias definitivas;
- Participação popular na definição das prioridades;
- Respeito à história de quem perdeu tudo;
- Aluguel Social;
- Garantia de continuidade para quem já recebe;
- Inclusão imediata de quem ainda não conseguiu acessar o auxílio;
- Respostas claras e públicas sobre o processo de atendimento;
- Atendimento psicológico;
- Ações efetivas de cuidado com a saúde mental da população atingida;
- Atendimento psicológico nos bairros impactados;
- Profissionais disponíveis nos CRAS e unidades de saúde;
Prevenção - Limpeza e manutenção urgente dos bueiros e canais de escoamento;
- Transparência sobre os planos da Defesa Civil;
- Estrutura real de resposta às chuvas;
- Orçamento digno para quem cuida da vida, não só da imagem;
Transparência dos Recursos - Criação de uma comissão de fiscalização popular dos 6,5 bilhões;
- Acesso público aos projetos já aprovados;
- Pressão direta sobre o governo do Estado para liberação imediata das obras.

De acordo com a prefeitura de Canoas, das 3 mil unidades habitacionais autorizadas pelo Ministério das Cidades, já foram assinados dois contratos, totalizando mais de 1.500 unidades para pessoas exclusivamente atingidas pela enchente, com previsão de entrega em 18 meses. Ainda pelo governo do eStado a administração tem contratada 48 unidades de casas definitivas no bairro Guajuviras e estamos em tratativas para a construção de mais 100 casas pelo “Programa A Casa é Sua Calamidade”. Além de 100 casas com o convênio com a universidade Ulbra.
O executivo municipal informa que há um convênio com o Governo do Estado de cooperação para a construção de 58 casas temporárias. Essas obras estão em andamento no bairro Estância Velha, com previsão de finalizar até 15 de maio. Concomitante, já foram iniciadas as obras de dois empreendimentos de moradias definitivas, 200 em Niterói e 200 no FÁtima, totalizando 400 unidades habitacionais do FAR da Caixa Econômica Federal. As obras serão finalizadas em até 18 meses. O programa Aluguel Social atualmente contempla 1249 famílias. Sendo que 77 contratos são de atendidos do CHA.
Mobilizações seguem no estado
As comunidades de Cruzeiro do Sul atingidas pelas emergências socioclimáticas realizaram nesta quinta-feira (1º) ato de celebração da vida, partir das 14h, no Ginásio da Comunidade Maravalha. O evento é organizado por um coletivo de organizações que atuam no município, especialmente as comunidades rurais que foram atingidas pelo desastre. O objetivo é marcar um ano da catástrofe ambiental na região, trazendo depoimentos e mensagens para lembrar o esforço de reconstrução da população.

No sábado (3), às 16 horas, outro ato está marcado para acontecer em Canoas, no Parque Eduardo Gomes, reunindo moradores atingidos pela enchente para cobrar obras urgentes para os atingidos.


