“Estou tentando recomeçar. Estou doente, não consigo sair para trabalhar. Estou com crise de ansiedade desde a enchente de novembro. Ganho o Bolsa Família. Eu não tenho muito o que fazer agora, não tenho para onde ir”, desabafa a recicladora Ivonete da Silva Lemos, 47 anos, moradora da Ilha dos Marinheiros, uma das 16 que formam o bairro Arquipélago, em Porto Alegre (RS).
Lemos nasceu e cresceu na ilha. Por 24 anos viveu em outros pontos da Capital e, há cinco anos, voltou para o Arquipélago por conta de dificuldades financeiras, tendo conseguido comprar um imóvel modesto. Morando com sua filha de 15 anos, conta que a região costuma sofrer com inundações quando o nível do Guaíba sobe. Contudo, desde 2023, a situação se agravou.
“Como a minha casa era na beira do rio, ela era sempre atingida. Na enchente de setembro de 2023, bateu no assoalho; a de novembro deu no meio da casa. Eu tive que abandonar. Metade da casa foi destruída, incluindo duas peças com banheiro.” A Defesa Civil declarou a casa condenada e recomendou a desocupação. “Eu comprei aqui, eu paguei. Agora vocês querem que a gente saia sem ter nada, para onde ir?”, questiona.

A recicladora estava abrigada na casa de uma amiga até que veio a enchente de maio de 2024, atingindo também esse imóvel. A amiga foi contemplada no programa Compra Assistida, o que obrigou Lemos a procurar uma nova moradia. As águas de maio levaram o restante de sua casa e o galpão de reciclagem, sua principal fonte de renda. Ela conta que, na época, conseguiu o auxílio de R$ 2.500, o que, segundo ela, foi suficiente apenas para pagar contas e se alimentar.
Após ter que sair da casa onde estava, foi acolhida por outro amigo. “Só salvei a minha cadelinha. Foi a única coisa em que pensei. Peguei ela e a caminha dela porque foi muito rápido. Tive que abandonar tudo. Perdi tudo. Vocês podem ver, não tenho nada. Isso aqui foi doado. Minhas roupas estão na caixa. As camas foram doadas. Não tenho nada”, desabafa. Ganhando apenas R$ 1.000 por mês, não consegue alugar uma casa.
Há poucos meses, Lemos também foi contemplada no Compra Assistida, contudo, ainda não conseguiu encontrar um imóvel. Vivendo atualmente em uma casa cedida, vive sob tensão, pois terá que sair, já que o amigo também foi contemplado pelo programa federal e já adquiriu seu imóvel. Pelas regras do programa, o beneficiário deve entregar o imóvel anterior após conseguir um novo. Lutando contra o tempo, a recicladora espera encontrar uma nova moradia. Segundo ela, um dos entraves é achar um imóvel no valor de R$ 200 mil. “Quando a gente acha, o proprietário sobe o valor ou reclama da demora para receber da Caixa.”

O difícil recomeço
Como todos os atingidos e atingidas, Lemos está tentando recomeçar, mas além da insegurança em relação à moradia, sofre com impactos na saúde mental, com crises de ansiedade frequentes desde as enchentes. Relata dificuldade para sair de casa e realizar atividades cotidianas, tomada por angústia e desespero, quadro que começou após as enchentes de 2023 e se agravou com a de maio de 2024.
“Eu não conseguia sair de casa, eu não trabalhava, era só a minha guria que ia para o colégio. Eu olhava na janela e não podia fazer nada. Atravessava a rua e voltava, dizia: ‘Meu Deus, será que ela (a água) vai vir? O rio vai estar cheio, vazio?’ A enchente… a enchente, eu só botava aquilo na cabeça. Foi um desespero. Consegui sair e cheguei no posto chorando. ‘Me ajuda, não consigo mais me controlar’.” Lemos recebeu medicação para dormir e ansiolíticos. Após piora dos sintomas, a dosagem foi aumentada.

Descaso das autoridades e falhas de políticas públicas
A recicladora entende que há um descaso por parte das autoridades e do governo em relação às necessidades das pessoas afetadas. Para ela, há uma falta de atenção contínua às comunidades das ilhas e ausência de soluções efetivas. “Há muitos anos eles vêm com descaso nas ilhas. Quando ajudam é sempre o mínimo. Acho que, nessa situação, é descaso mesmo. Tem uns que não querem sair, mas a maioria quer, só que está todo mundo desistindo.”
A paisagem habitacional do local é marcada por casas simples e também por mansões, onde antes havia vegetação nativa. Ao todo, Porto Alegre possui 16 ilhas no bairro Arquipélago, localizadas no delta do rio Jacuí, com comunidades que enfrentam riscos frequentes de inundações, infraestrutura precária e dificuldade de acesso a serviços essenciais. As enchentes, como a histórica de 2024, causaram destruição de casas, carros e isolaram moradores, levando a ações emergenciais da prefeitura e da Defesa Civil, como resgates e abrigos temporários.

O prefeito Sebastião Melo (MDB) declarou à CNN, na época, que pretende usar “todos os instrumentos possíveis” para retirar moradores de cinco ilhas consideradas de alto risco. De acordo com o Executivo estadual, o reassentamento das famílias é uma questão de proteção à comunidade, pois o local sofre anualmente com enchentes. Não há previsão nem data limite para que a área seja desocupada, mas, segundo a prefeitura, o ideal é que isso ocorra o mais rápido possível para evitar que os moradores fiquem desabrigados novamente.
Devido à insegurança e aos riscos de novas enchentes, o maior desejo de Lemos é sair das ilhas e conquistar uma casa própria para ela e sua filha, que ofereça segurança e estabilidade. “Quero minha moradia, trabalhar com segurança e tocar a vida. A gente vai fazer os protestos aí e eles chamam a gente de vagabundo. A gente não é vagabundo. Eu sempre trabalhei. Quando eu vim pra cá, não consegui emprego, mas eu tinha um galpão de reciclagem. Era dali que eu vivia. Eu só quero a minha casa e sair daqui. Aqui eu não penso mais nada. Pode ser que tu ache alguém que diga que quer ficar, melhorar. Eu não quero”, afirma.
Lemos se agarra à esperança de encontrar logo um imóvel pelo Programa Compra Assistida. “Eu quero um lugar seguro. E estou tentando um lugar seguro, só que está bem difícil pelo valor e pela desistência. Tem que ser uma casa com toda a documentação. Não pode estar nada errado, nem ser onde pegou enchente.” Por não ter se adaptado a morar em apartamento, ela não descarta se mudar para municípios como Gravataí e Cachoeirinha, onde o valor das casas é mais acessível.
*Reportagem realizada em parceria entre o Movimento dos Atingidos por Barragens (MAB) e o Brasil de Fato.
