Nesta semana, o Brasil de Fato MG alcança a marca de 500 edições de seu jornal impresso. Desde 2013, o tablóide é distribuído gratuitamente nas sextas-feiras em diversos municípios de Minas Gerais, incluindo a capital do estado.
A iniciativa surgiu com o objetivo de produzir conteúdo jornalístico de qualidade e informar a população, mas a partir de uma ótica muitas vezes não considerada pelos veículos da mídia comercial: a das trabalhadoras e dos trabalhadores.
Com 12 anos de existência em território mineiro, o sistema Brasil de Fato já é uma das experiências mais longínquas de comunicação popular. Mas você sabia que no país e mesmo em Minas Gerais outros jornais também assumiram o papel de questionar a ordem política, econômica e social vigente a partir da perspectiva das classes populares? Reunimos nesta reportagem alguns deles. Confira:
O Pasquim
É o caso do O Pasquim, que surgiu em 1969, no auge da intensificação da repressão do regime militar, e se tornou símbolo de oposição à ditadura. A iniciativa foi criada logo após o decreto do AI-5, que inaugurou o período de maior repressão militar, e utilizava do humor e do sarcasmo para driblar a censura.
Fundação Biblioteca Nacional
Um dos fundadores do jornal foi o cartunista mineiro, de Caratinga, Ziraldo Alves Pinto. O quadrinista e jornalista nascido em Ribeirão das Neves Henrique de Souza Filho, conhecido como Henfil, também contribuiu com o veículo.
Charge de Ziraldo em O Pasquim / Acervo do Instituto Vladimir Herzog
Em um período de intenso controle da imprensa, O Pasquim se apresentou como um lugar de garantia da liberdade de expressão, dando espaço para artistas, intelectuais e jornalistas opositores ao regime militar.
Uma das edições mais marcantes do semanário foi escrita integralmente pelo compositor e cantor Chico Buarque de Hollanda, enquanto estava exilado na Itália. Ele utilizava o pseudônimo “Julinho da Adelaide”, como forma de contornar a censura.
Sebo virtual – Conrado Leiloeiro
O Binômio
No período que antecedeu os “anos de chumbo”, outro veículo também chamou a atenção por utilizar do humor para denunciar o contexto político da época, o jornal O Binômio: sombra e água fresca.
O próprio nome do semanário, que circulou entre 1952 e 1964 em Juiz de Fora, na Zona da Mata mineira, e em Belo Horizonte, foi escolhido como forma de questionar o plano “Binômio: energia e transporte”, lançado pelo então governador de Minas Gerais Juscelino Kubitscheck. A primeira fase do jornal foi profundamente marcada por críticas ao governo do estado.
A iniciativa foi fundada pelos jornalistas José Maria Rabelo e Euro Luiz Arantes e teve 801 edições, mas encerrou as publicações com o golpe militar. Em 2013, os periódicos foram doados à Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG), que os catalogou e digitalizou.
“Quando o ‘Binômio’ surgiu, a imprensa era mais ou menos o que é hoje, um porta-voz do Palácio da Liberdade ou, atualmente, da Cidade Administrativa — locais onde estiveram as sedes do governo de Minas Gerais. Nós quisemos fazer um jornal que se diferenciasse desse modelo de subserviência, de submissão”, explicou José Maria Rabelo, durante o ato de entrega do acervo para a UFMG.
Acervo/UFMG
Além das críticas ao governador e de denúncias a movimentações corruptas na política, O Binômio trazia de forma explícita a crítica à própria imprensa hegemônica. Já em sua primeira edição, no editorial Duzentas e sessenta e nove palavras ao leitor, o veículo busca se diferenciar dos demais jornais da época, afirmando ser sincero e honesto.
“Temos 99% de independência e 1% de ligações suspeitas. O oposto exatamente do que acontece com os nossos ilustres confrades, que têm 1% de independência e 99% de ligações mais suspeitas”, enfatiza a publicação.
O editorial finaliza dizendo que as diferenças — honestidade, sinceridade e 99% de independência — entre o semanário e os seus “quase indignos colegas” o levaria ao sucesso ou, pelo menos, o daria a vantagem de “não ter concorrente na praça”.
Acervo/UFMG
De fato, O Binômio se tornou um dos jornais mais referenciados do país. Enquanto a primeira edição teve 6 mil exemplares, nos últimos anos de existência do periódico, a tiragem chegou a 60 mil.
Além disso, o veículo, ao longo do tempo, foi se apropriando dos debates nacionais e passou a ser caracterizado por produzir grandes reportagens e por pautar os temas que estavam em debate na sociedade brasileira, como as reformas de base propostas pelo então presidente João Goulart.
Para acessar as edições do jornal O Binômio, digitalizadas pela UFMG, clique aqui.
Rádio Favela
Do alto do Aglomerado da Serra, maior favela de Belo Horizonte, surgia em 1976, ainda durante o regime militar, a Rádio Favela. A iniciativa foi fundada por Misael Avelino e resiste até os dias de hoje, com o nome Rádio Autêntica Favela FM.
O que motivou a fundação do veículo foi o desejo de dar voz à população da periferia. No início, a antena da rádio ficava em um abacateiro. Avelino e outros membros da equipe passavam os dias ouvindo atentamente quais eram as principais questões da comunidade e, no horário da tradicional Voz do Brasil, eles entravam no ar para dar “voz aos moradores”.
Rádio Favela comemora 48 anos – Diego Felipe
“No morro, a população não tinha voz. Então, o povo procurava a gente para colocar a boca no trombone. Quando a gente começou a entrar no ar, tinha uma rádio comercial aqui, mas eles não falavam com o povo. Por isso que a gente precisava ter uma rádio, para falar para o nosso povo, de favela para favela”, relembrou o fundador da iniciativa, em entrevista ao Brasil de Fato MG.
Para manter a rádio de pé, além da escassez de recursos, foi preciso resistir à repressão da ditadura. Avelino relata que, na época, os militares inclusive quebravam os seus equipamentos.
“Os militares ficavam dentro do morro procurando a gente. Todo mundo sabia onde a gente estava, mas nenhum morador entregava. Eles perseguiam a gente e quebravam todos os nossos equipamentos. Se eu fosse responder por todos os processos em que fui indiciado cumpriria 32 anos de cadeia”, relatou.
Atualmente, o sinal da Rádio Autêntica Favela FM alcança toda a capital mineira e municípios do entorno. Sintonize em 106.7 ou escute pelo site.
O Brasil de Fato MG possui dois programas veiculados na emissora, o Visões Populares Entrevista, que reúne entrevistas com especialistas sobre temas variados e vai ao ar todas às quartas-feiras, às 12h; e o Enfim, sexta!, transmitido sempre às sextas-feiras, também às 12h, com comentaristas que avaliam os principais acontecimentos políticos de Minas Gerais e do Brasil a cada semana.
Lampião da Esquina
Também foi durante a ditadura militar que surgiu o primeiro jornal do Brasil voltado para o público LGBTQIA+, quando ainda sequer existia essa sigla. O Lampião da Esquina foi fundado em 1978, no Rio de Janeiro, e, mesmo em um período de forte preconceito e violência, se dedicou à cobertura jornalística dos temas que envolviam as realidades das pessoas homossexuais.
A iniciativa, que também usava do humor e do sarcasmo, perdurou até 1981 e era marcadamente contrária ao autoritarismo da época. Ao todo, foram 37 edições que tratavam sobre sexualidade, questão racial, gênero, violência e também os temas gerais que pautavam o país, como a abertura política.
Fundação Perseu Abramo (FPA)
As publicações reuniam entrevistas, reportagens e pequenos quadros como o Cartas na Mesa, que dava visibilidade a cartas dos leitores. Entre as figuras que concederam entrevistas ao veículo estavam, por exemplo, o cantor Ney Matogrosso e o atual presidente do Brasil, Luiz Inácio Lula da Silva (PT).
O jornal é considerado um marco e enfrentou muitas dificuldades para se viabilizar. Além da falta de recursos financeiros, a iniciativa sofreu sucessivas tentativas de boicote por parte dos militares e de outros setores conservadores do país.
Reprodução/Unesp
Acesse as edições digitalizadas do jornal Lampião da Esquina clicando neste link.