O Observatório da Mineração, centro de jornalismo investigativo que produz relatórios, notas técnicas e pesquisas científicas sobre o setor, denunciou, na última semana, que vem sofrendo tentativa de intimidação por parte da mineradora Sigma Lithium, responsável pela operação de uma mina de extração de lítio na região do Vale do Jequitinhonha, em Minas Gerais.
O grupo recebeu uma notificação extrajudicial, após fazer contato com a empresa e pedir o seu posicionamento sobre uma nota técnica produzida por pesquisadores de universidades brasileiras e da Inglaterra, que denunciou uma série de violações cometidas nos municípios de Araçuaí e Itinga, onde opera o projeto de mineração Grota do Cirilo.
Segundo o observatório, o documento enviado pelos advogados da mineradora, afirmava que, caso fosse publicada uma matéria sobre o tema, a Sigma Lithium iria tomar “medidas legais”.
O texto foi ao ar no dia 7 de maio, mesmo diante do que Maurício Angelo, um dos diretores do centro de jornalismo e doutorando em ciência ambiental pela Universidade de São Paulo (USP), caracteriza como “tentativa de censura”.
“É muito claro que a notificação tem o objetivo de intimidar e, nesse caso, tentar fazer uma censura prévia ao observatório. Eles nos ameaçam de processo. Mas é importante dizer que o contexto vai além dessa matéria específica. O Observatório da Mineração tem 10 anos e, desde o início do ‘boom’ do lítio no Vale de Jequitinhonha, nós cobrimos as operações da Sigma, assim como as de outras empresa”, destaca.
“Por exemplo, nós publicamos muitas matérias e uma nota técnica sobre esse projeto de lei do lítio, ‘lítio verde’, que coloca na mão das próprias empresas a oportunidade de se auto certificar com um selo de ‘lítio verde’, algo que a Sigma já faz. O discurso da Sigma é de que é uma ‘operação verde’, ‘sustentável’, etc. E parece que a mineradora tem bastante dificuldade em conviver com críticas”, continua Maurício Angelo.
Em resposta à movimentação da empresa, o Observatório da Mineração enviou uma contranotificação e acionou o Ministério Público Federal (MPF), o Ministério Público de Minas Gerais (MPMG) e a Defensoria Pública da União (DPU), que acompanham o caso.
Entre as irregularidades apuradas pela nota técnica, que é fruto do projeto de pesquisa internacional Local, Indigenous, Quilombola and Traditional Communities and the construction of the ‘Lithium Valley’ in Minas Gerais, Brazil: Empowering silenced voices in the energy transition (LIQUIT), estão problemas no licenciamento ambiental, ausência de consulta às comunidades locais, omissões nos estudos de impacto e a adoção de tecnologias ultrapassadas que causam danos ambientais e sociais profundos.
Ao Brasil de Fato MG, o deputado estadual Jean Freire (PT), que é nascido na região e tem acompanhado a atuação da mineradora no Vale do Jequitinhonha, avaliou que a tentativa de impedir a divulgação dos dados obtidos pelo estudo técnico é “preocupante”, uma vez que a pesquisa foi elaborada por membros de instituições respeitadas nacionalmente e internacionalmente, entre elas a Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG) e a Universidade Federal dos Vales do Jequitinhonha e Mucuri (UFVJM).
“Ao invés de tentar silenciar quem levanta questionamentos legítimos sobre os impactos da mineração, a empresa deveria buscar responder tecnicamente às críticas. Essa seria a postura mais responsável com as comunidades atingidas, com o meio ambiente e com quem dedica tempo e estudo a pensar soluções mais sustentáveis para as nossas demandas enquanto sociedade. A liberdade de expressão e o acesso à informação são direitos, não obstáculos”, afirma o parlamentar.
‘Sigma não sabe lidar com narrativas de moradores’
Porém, especialistas que têm acompanhado o processo de discussões sobre os empreendimentos desenvolvidos pela Sigma Lithium na região denunciam que a mineradora tem demonstrado pouca abertura para receber críticas e para refletir sobre elas.
“A Sigma não sabe lidar com narrativas de moradores, quilombolas, indígenas, que são afetados pela inflação, pela poluição sonora e do ar, pelo consumo de água, pelos rejeitos, pelo aumento da violência e uma série de outras consequências já identificadas exaustivamente não apenas por nós, do Observatório da Mineração, mas também por diversos outros atores”, explica Maurício Ângelo.
“A empresa poderia tentar responder aos questionamentos dos pesquisadores, tentar responder tecnicamente aos questionamentos, que são muito bem detalhados. É uma nota técnica de quase 40 páginas. Mas ela não quis. Ela optou por intimidar, ameaçar com processo e tentar censurar previamente”, continua.
‘Gestão da crítica’ e ‘controle territorial’
Nos mês passado, duas audiências, a pedido do MPMG, aconteceram nos municípios de Itinga e Araçuaí para debater os impactos do Projeto Grota do Cirilo — o mesmo cujos efeitos foram analisados pela nota técnica produzida pelos pesquisadores.
Marcelo Barbosa, da direção do Movimento pela Soberania Popular na Mineração (MAM), participou das reuniões e, na avaliação dele, é nítido que a empresa atua com uma estratégia de “controle territorial”.
“Nos movimentos sociais, nós chamamos essa forma de lidar da Sigma de ‘gestão da crítica’, na qual a empresa faz ‘projetinhos’, ‘parcerias’, ‘filantropia’, etc, para tentar passar uma imagem positiva para a comunidade, para tentar construir a ideia que a empresa está trazendo coisas boas para a cidade”, explica.
Um dos projetos desenvolvidos pela empresa em Araçuaí oferece microcrédito para mulheres do município. Porém, ambientalistas e membros de movimentos populares apontam que são justamente as mulheres as principais impactadas negativamente quando um empreendimento minerário chega ao território.
Experiências de outras cidades indicam que, com o avanço da mineração, houve também o aumento do adoecimento físico e mental, o crescimento do índice de violência sexual, a maior superlotação dos equipamentos públicos, em especial os de saúde, entre outros fatores, cujas consequências recaem principalmente “nos ombros” femininos.
“Mesmo assim, essas ações são utilizadas pela empresa nas audiências públicas convocadas para discutir os impactos da mineração para dizer assim: ‘beleza, tem um impacto. Mas olha o tanto de coisa boa que a gente está fazendo’. Isso é parte da tentativa de construir no território uma relação que impeça as críticas”, continua Marcelo Barbosa.
Um diagnóstico da UFMG, publicado em 2019, indicou que a população da região do Vale do Jequitinhonha possui altas taxas de analfabetismo, em comparação com os índices do Brasil e de Minas Gerais. Apesar de a empresa, segundo o dirigente do MAM, ‘tentar parecer ter uma boa relação com o território’, todo o site da Sigma Lithium, que é sediada no Canadá, está publicado em inglês.
Ataque à ciência e ao jornalismo
A ação extrajudicial movida pela mineradora também levanta outro debate. Qual é o papel da ciência e do jornalismo no acompanhamento de grandes empreendimentos?
A Constituição Federal do Brasil assegura a liberdade de imprensa e o direito à “crítica, ainda quando veemente e ofensiva contra alguém, desde que se limite aos legítimos termos a necessidade de narrativa, excluída o ânimo de injúria e atenta, apenas, a preocupação do bem ou do interesse social”.
A legislação também garante o direito de resposta a quem for acusado em jornal ou periódico. Porém, Maurício Ângelo explica que foram inúmeras as tentativas do Observatório da Mineração em fazer contato com a empresa, todas sem sucesso, segundo ele.
“Todas as vezes que nós fizemos alguma matéria sobre a Sigma, nós procuramos a empresa para que ela pudesse se manifestar, se posicionar e ter o outro lado na reportagem. Mas a Sigma nunca respondeu. Isso inclui ligações, e-mails, e até tentativas presenciais”, relata o diretor do observatório.
Diante da falta de respostas e da recente “tentativa de intimidação”, ele enfatiza que essa prática da mineradora deveria chamar a atenção de toda a sociedade brasileira.
“A sociedade brasileira, inclusive os governos, os pesquisadores, a sociedade civil, as ONGs, todo mundo que se importa com a liberdade de expressão, com os direitos humanos, com os impactos do modelo mineral no Brasil, com o modelo de desenvolvimento que o Brasil tem buscado, com a transição energética e com a crise climática precisa prestar muita atenção nesse caso”, finaliza Maurício Ângelo.
O outro lado
O Brasil de Fato MG entrou em contato com a Sigma Lithium e perguntou:
1) Por que a empresa enviou uma notificação extrajudicial ao Observatório da Mineração ao invés de responder também tecnicamente aos dados publicados pelos pesquisadores?
2) Quais são os procedimentos adotados pela Sigma Lithium diante das críticas de instituições e de moradores das comunidades?
3) Na avaliação da empresa, há problema em pesquisadores e instituições de ensino acompanharem o desenvolvimento de empreendimentos minerários nos territórios?
A mineradora não respondeu, até a publicação desta matéria. O espaço segue aberto para manifestações.