Conheci Pepe Mujica na praça de fronteira, entre Santana do Livramento (BR) e Rivera (UR). Estava sentado na quina do palco, aguardando a chegada de Lula, Dilma Rousseff e Rafael Correa para uma conferência conjunta. Um colega aproximou-se e pediu uma foto. A resposta foi um sorriso aberto e o braço estendido chamando o jovem para o retrato. Foi a senha para que nos aproximássemos, todos, e acontecesse um dedo de prosa inesquecível.
Pepe foi um intérprete do mundo com uma sensibilidade ímpar e uma capacidade de desprendimento incomparável. Quando o chamaram a subir ao palco, nos abraçou um a um e com olhos alegres aconselhou: “Vocês contam as histórias e por isso são responsáveis pelo modo como as histórias serão compreendidas depois. Esse é um trabalho muito importante. O que acontece aqui, o que falamos, depende de vocês para chegar até quem precisa saber, até quem precisa ouvir. Tenham carinho na escuta e gentileza no olhar, para que possam contar boas histórias para quem vem depois de nós.”

Em sua fala no palco, enfatizou a necessidade de unidade entre os setores progressistas latino-americanos para enfrentar a ofensiva da direita. O neofascismo, naquele período, mostrava os primeiros sinais concretos de sua face vil. Pepe lembrou que as derrotas recentes do período eram causadas sobretudo por nossas próprias divisões. E criticou fortemente a incapacidade de muitos companheiros e companheiras em olhar para o outro dando prioridade aos pontos de divergência que nos afastam e não aos pontos de convergência que nos deveriam trazer comunhão.
Mujica também alertou sobre a crescente prioridade dada à economia em detrimento da sensibilidade social. Este, segundo ele, é um mal não apenas de governos, mas das próprias relações no meio social. Questionou se o crescimento econômico está sendo acompanhado de uma distribuição justa e se as pessoas estão, de fato, felizes com suas vidas. Sobre o campo político repetiu uma afirmativa de vida: a democracia precisa de partidos políticos fortes, mas eles somente são viáveis se formados a partir de uma militância social ativa. Pepe sempre deixou claro sua crença de que as mudanças não podem depender de figuras individuais, pois a luta sempre deve continuar, mesmo após a saída dessas lideranças.
A segunda vez que encontrei pessoalmente Pepe, foi em Foz do Iguaçu, na fronteira entre Brasil e Paraguai. Na companhia dos companheiros de luta Tairi Felipe e Eulália Sá, tivemos um rápido encontro com ele ainda no hotel, antes da conferência da Jornada Latino-Americana e Caribenha de Integração dos Povos, em fevereiro de 2024. Seu carinho ao nos ouvir e receber os símbolos do Movimento dos Pequenos Agricultores (MPA) – a bandeira, a publicação do Plano Camponês e o símbolo coletivo de diversidade – mais uma vez mostrou a generosidade de seu coração e uma imensa capacidade de escuta e acolhimento. Nos chamou de companheiros, sorrindo com os lábios e com os olhos.
Naquele encontro Pepe alertou que a verdadeira integração não pode ser alcançada apenas por meio de acordos entre governos e sim pela via da participação popular. “A história não é feita por grandes caudilhos, a história é feita pelas massas”, disse. Ações concretas de solidariedade entre os países latino-americanos não devem esperar, devem ser implementadas imediatamente e em caráter contínuo, como elo central de uma grande pátria comum, formalizada através de novos símbolos de unidade – uma única bandeira, um único hino, uma única data referencial, até mesmo uma capacidade de unificação das negociações privilegiando as moedas locais em detrimento do domínio do dólar.
Em Foz do Iguaçu, Mujica dedicou boa parte de sua fala ao chamamento aos jovens, procurando encorajá-los a adotar causas significativas, a assumirem o engajamento social e evitarem o conformismo com as injustiças do mundo. A verdadeira liberdade, disse ele, está em viver com um propósito.
“Não se cansem de lutar por um mundo melhor. Vocês não fazem isso pelos outros, vocês fazem isso por vocês mesmos, para ser menos egoístas do que a civilização de mercado em que temos que viver nos impõe. Lute pela vida, lute por uma sociedade melhor. Quando você cometer erros, assuma-os, porque os erros são inevitáveis, o que é evitável é mentir.”
Pepe sempre me pareceu profundamente próximo, profundamente humano. “Não há nada mais importante que o amor”, disse tanto em Foz do Iguaçu quanto em Santana do Livramento/Rivera, como que repetindo o Che quando ensinou que o amor precede qualquer ação verdadeiramente revolucionária. “Gracias, Dom Pepe”, falou um colega. “Obrigado mestre!”, disse outro. “No me llames don o maestro. Somos compañeros”, respondeu. Obrigado Pepe, obrigado por tanto! Presente! Semente!
* Este é um artigo de opinião e não necessariamente representa a linha editorial do Brasil do Fato.
