Minas Gerais vive mais um capítulo de disputas políticas na tentativa de lidar com sua dívida bilionária com a União, que já chega a marca de R$ 165 bilhões. Especialistas e parlamentares apontam que o governador do estado, Romeu Zema (Novo), tem usado brechas na adesão ao Programa de Pleno Pagamento da Dívida (Propag) para se desfazer de empresas públicas mineiras.
O Propag é um plano alternativo ao Regime de Recuperação Fiscal (RRF) e, recentemente, o governo de Minas Gerais entregou à Assembleia Legislativa de Minas Gerais (ALMG) um pacote com 12 projetos de lei e uma Proposta de Emenda à Constituição (PEC) com o objetivo de viabilizar a adesão ao programa.
“O governo Zema é um governo de lobistas, especializado em entregar frações da gestão pública para interesses muito específicos e correlacionados do setor empresarial, de capital, de uma base que inclusive o sustenta politicamente”, aponta Weslley Cantelmo, doutor em economia pelo Centro de Desenvolvimento e Planejamento Regional da Faculdade de Ciências Econômicas (Cedeplar) da Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG)
Brechas
Enquanto o RRF tinha exigências severas, como congelamento de salários de servidores, cortes de investimentos e perda de autonomia fiscal dos estados, com uma instância federal passando a gerir suas contas, o Propag tem propostas menos danosas.
O projeto, que virou lei, foi articulado pelo senador Rodrigo Pacheco (PSD), mas ainda tem ressalvas. A proposta prevê a redução dos juros da dívida, que podem ser zerados, desde que os estados consigam amortizar 20% do valor devido.
Como Minas não tem caixa para isso, o programa permite a federalização de ativos públicos como forma de pagamento, como a Companhia Energética de Minas Gerais (Cemig), a Companhia de Saneamento de Minas Gerais (Copasa) e a Companhia de Desenvolvimento Econômico de Minas Gerais (Codemig).
Ou seja, o estado entregaria empresas e bens ao governo federal, que os usaria como parte da quitação da dívida. É nesse ponto que surgem os maiores embates, segundo especialistas.,
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Cantelmo explica que, no caso da Cemig, por exemplo, há cláusulas que obrigam o governo a comprar ações de investidores minoritários caso o controle majoritário mude de mãos, o que pode gerar altos custos.
Na prática, segundo Weslley, o que o governo Zema propõe é: vender as estatais, usar o dinheiro para antecipar parte da dívida e, com isso, garantir o desconto nos juros.
“A ideia, desde o início do governo Zema, era de fato privatizar a Cemig, porque tem um conjunto de interesses ali que circundam o governo que dão sustentação política, inclusive, que são interesses de setores de capital. Eles têm uma dívida política com essa turma. Então, é uma das missões que motivaram todo o arranjo político necessário para a eleição do governo Zema”, chama a atenção.
Faltará autonomia?
Apesar disso, ele alerta que sua entrega ao governo federal não garante melhor gestão.
“Perde-se a autonomia. Minas deixa de decidir o que fazer com seus próprios ativos. Fica nas mãos de interesses muitas vezes alheios à realidade do estado”, afirma.
Apesar disso, Cantelmo reconhece que, diante da falta de perspectiva de mudanças na política estadual, a federalização pode ser “o menos pior” dos caminhos, já que impediria a privatização direta promovida por Zema.
O Propag propõe que os recursos economizados com a redução dos juros da dívida sejam usados em investimentos sociais, como escolas integrais, ensino técnico e infraestrutura. Mas o temor é que a lógica desenvolvimentista seja secundária, diante de um governo estadual comprometido com a financeirização e com a lógica de mercado.
Minas, afirma o especialista, vive o paradoxo de ter empresas estratégicas que poderiam impulsionar o desenvolvimento regional, mas que foram reduzidas a meras distribuidoras de dividendos.
“A Codemig, por exemplo, tem um papel potencial enorme na promoção de tecnologia e diversificação econômica, mas está estagnada, voltada apenas à extração de renda da mineração”, afirma.
O veto presidencial e a disputa fiscal
Outro ponto de tensão recente foi o veto do presidente Luiz Inácio Lula da Silva (PT) a um dispositivo aprovado pelo Congresso Federal que daria mais tempo aos estados para ajustar seus gastos com pessoal.
Hoje, Minas gasta acima do limite imposto pela Lei de Responsabilidade Fiscal (49% da receita corrente líquida). O veto manteve o prazo apertado de oito meses para reenquadramento, o que, segundo o entrevistado, pressiona ainda mais o já sufocado orçamento mineiro.
Ele considera, porém, que o problema não é pontual, mas estrutural. “Temos um Estado com máquina pública grande, necessária, mas desvalorizada. E a receita do Estado é frágil, dependente de ciclos de commodities. O modelo fiscal brasileiro precisa ser revisto. A LRF engessa os entes federativos e impede investimentos públicos.”
Apesar disso, o governo Zema tenta utilizar o veto como argumento político para pressionar o governo federal e dividir com Brasília a responsabilidade pelas dificuldades fiscais. É o que também sinaliza a deputada estadual Beatriz Cerqueira (PT).
“A postura do governo Zema com o governo federal é uma postura de palanque para 2026. Aliás, a postura de palanque do Zema, que é esse grande personagem criado da ‘não política’, é o único lugar do Zema. Ele precisa desse lugar, desse confronto, dessa polarização, porque é só nessa polarização que ele consegue existir”, observa.
Propostas inconsistentes
Cerqueira reforça, ainda, que as propostas apresentadas à ALMG são genéricas, pouco transparentes e representam uma tentativa de “entregar o estado ao mercado”, utilizando o Propag como instrumento para viabilizar privatizações que o governo não conseguiu em outras frentes.
“O governo Zema nunca abandonou a ideia das privatizações. Ele quer privatizar, ele quer entregar. Está usando o Propag para isso”, afirma.
A parlamentar cita a tentativa de retirada da obrigatoriedade de realização de um referendo para a privatização da Cemig e da Copasa, previsto na Constituição mineira, como um exemplo do desmonte das garantias democráticas que protegem os bens públicos.
UEMG privatizada?
Além desses ativos, o governador também encaminhou à ALMG a proposta de federalização da Universidade Estadual de Minas Gerais (UEMG), o que tem sido encarado com receio por docentes da instituição, como reforça Túlio Lopes, presidente da Associação dos Docentes da UEMG (Aduemg).
“Se transferir a gestão da UEMG para a União, nós vamos vivenciar uma situação de total insegurança jurídica, tanto para os servidores da universidade como para a própria estrutura. Vamos perder a característica de uma autarquia estadual, que é uma universidade, com autonomia universitária de gestão patrimonial, gestão financeira, autonomia didático-científica, etc”, lembra.
Nessa proposta, segundo ele, também há brechas para a venda da universidade à iniciativa privada.
“Essa não é uma proposta de federalização. É uma proposta de sucateamento e privatização que vai levar à extinção da universidade”, critica.
“Se nós desfizermos dos bens da UEMG, ela acaba. A universidade precisa de mais prédios, mais laboratórios, mais estrutura. O governo quer o contrário: vender o patrimônio e acabar com a autarquia estadual”, continua.
Segundo ele, a proposta de “federalização” causou entusiasmo inicial na categoria, mas não se sustenta juridicamente nem politicamente.
“Se fosse federalização de verdade, teria que passar pelo Congresso Nacional, por uma emenda constitucional, pelo Plano Nacional de Educação. Isso não existe. O que existe é um projeto mal disfarçado de entrega da UEMG”, afirma.
EMC na mira
O governo Zema também incluiu a Empresa Mineira de Comunicação (EMC) para federalização no Propag. A medida foi criticada pelo Sindicato dos Jornalistas de Minas Gerais (SJPMG), em comunicado divulgado nas redes sociais.
A entidade reiterou seu compromisso com a defesa da comunicação pública de Minas, representada pelas emissoras Rádio Inconfidência e Fundação TV Minas, e de seus empregados e servidores, que têm sido alvos constantes de assédios e perseguições.
“Não é de hoje que essas emissoras estão sendo sucateadas e precarizadas, e com produção de conteúdos que se distanciam da sua missão cultural e educativa, mas, nem por isso, a entidade apoia uma possível federalização, sem que antes tenha acesso total ao projeto e, principalmente, a informações sobre como os trabalhadores dessas emissoras serão afetados”, disse a entidade, em nota.
Outro lado
A reportagem entrou em contato com o governo e aguarda resposta. O conteúdo será atualizado quando houver posicionamento.