Um ano após a enchente de 2024 que devastou o Rio Grande do Sul, movimentos sociais, sindicatos, agricultores, moradores da cidade, parlamentares e atingidos se reuniram em Porto Alegre nesta quinta-feira (15), em um grande ato unificado para cobrar do poder público ações concretas diante da crise climática, da insegurança alimentar e do abandono habitacional. A mobilização, que além das ruas, percorreu órgãos como o Ministério da Fazenda, Casa Civil e Palácio Piratini, teve como pauta central a reconstrução com justiça social e soberania.
Além de caminhada, o ato, que reuniu cerca de 3 mil pessoas ao longo da manhã e prosseguiu durante a tarde, contou com manifestações culturais, distribuição de almoço e agenda entre representantes das entidades organizadoras e dos governos estadual e federal. O Brasil de Fato RS acompanhou a mobilização e ouviu dos participantes as principais reivindicações.

Parceiros de luta
O presidente estadual da Central Única dos Trabalhadores (CUT/RS), Amarildo Cenci, destacou a necessidade de políticas públicas articuladas entre União, estado e municípios. “Essa mobilização marca um ano da enchente e reúne várias lutas: moradia, crédito, seguro, garantia de comercialização para os agricultores familiares. É fundamental que haja agilidade na liberação de recursos, assistência técnica e políticas que deem segurança para o agricultor plantar e vender. A classe trabalhadora está em movimento para reconstruir o Brasil com mais igualdade e soberania alimentar.”
A precariedade da política de moradia foi tema recorrente entre os manifestantes. “A moradia está muito lenta, inclusive para o agricultor familiar, que teve pouca liberação de recursos até agora. Acreditamos que o governo Lula pode fazer mais”, reforçou Amarildo.

A diretora-geral do 39° Núcleo do CPERS-Sindicato e coordenadora da InterSindical, Neiva Lazzarotto, também participou do ato representando educadores e movimentos populares. “É urgente garantir recursos para os pequenos agricultores e para os atingidos por barragens e pelas enchentes. A moradia é um direito e uma urgência. O governo federal diz que liberou mais de R$ 111 bilhões para o estado, mas onde está esse dinheiro?”, questionou.

O povo fala
Do norte do estado, Venice Meazza, agricultora de Espumoso e presidente do Sindicato dos Trabalhadores Rurais local, se emocionou ao falar da exclusão de pequenos produtores do Programa de Garantia da Atividade Agropecuária (Proagro) e do acesso ao crédito. “São cinco anos de perdas climáticas e agora não temos mais direito ao Proagro. A gente veio com esperança de que alguma medida seja publicada. Se a agricultura familiar não está bem, a cidade também não vai bem”, disse, com lágrimas nos olhos.

Camponesa e coordenadora do Movimento dos Pequenos Agricultores (MPA), Geni da Silva, moradora de Liberato Salzano, no interior do Rio Grande do Sul, compartilhou as dificuldades vividas no campo. “Tenho 50 anos, sou viúva, moro com meu filho na roça, onde nasci e vivi a vida toda. A gente quer permanecer no interior, mas está cada vez mais difícil. Passamos por várias estiagens, perdemos plantações, o gado sofreu com a falta de pasto e as nossas fontes de água foram tomadas por terra. A situação é crítica.”
Apesar das adversidades, ela reafirma o compromisso com a terra e a produção de alimentos saudáveis, mas pede apoio. “Quero continuar na agricultura, quero produzir comida limpa, de qualidade, para quem está no campo e na cidade. Só que a gente precisa de apoio. Parece que o dinheiro vai para as prefeituras, mas não chega até nossas propriedades. O que eu espero é que o governo federal e estadual se sensibilizem com o nosso sofrimento. Se o agricultor for obrigado a sair da roça, vai faltar comida.”

A professora aposentada Juraci Padilha, de Estrela, reforçou o sentimento de frustração: “Muita luta e pouco resultado. O povo está com depressão, desanimado. Estamos cansados de promessas. É urgente ter política de habitação, crédito e renegociação de dívidas. O povo quer ser ouvido e respeitado”.

A situação do Programa Compra Assistida, que integra o Programa Minha Casa, Minha Vida Reconstrução, em apoio a quem perdeu sua moradia, também foi denunciada por manifestantes. “Muitos ainda não conseguiram imóveis. Os critérios estão muito rígidos e a maioria das ofertas é em bairros ou cidades distantes da rotina das famílias”, relatou um jovem ambulante de 27 anos que perdeu a casa e vive atualmente com o sogro, aguardando resposta do governo.
Queise Luciana Lopes, moradora da região das ilhas em Porto Alegre, chamou atenção para o drama das famílias idosas e doentes. “É muito difícil encontrar imóveis. Muitos ainda estão sem posto de saúde, sem estadia solidária e enfrentando demora para receber as chaves. Viemos lutar por moradia e pela flexibilização dos critérios.”

Parlamentares que apoiam
Durante a marcha e nas reuniões com representantes dos governos, deputadas e deputados manifestaram apoio à mobilização dos movimentos sociais e apontaram a urgência na implementação de políticas públicas efetivas.
A deputada estadual Sofia Cavedon (PT) ressaltou que “são muitas pautas importantes”, sobre vida, sustentabilidade, alimentação, restauração do solo da agricultura “e, principalmente, transição da agricultura familiar para longe da lógica predatória”.
Ela criticou a falta de novos assentamentos desde 2014 no RS e disse ser “inaceitável” ter “1.603 famílias acampadas lutando por terra quando há terras federais e estaduais disponíveis”. A parlamentar também alertou para a necessidade de controle social na aplicação dos recursos do fundo de reconstrução e denunciou a priorização do governo estadual em privatizações.

Também presente, a deputada federal Maria do Rosário (PT-RS) saudou a articulação dos movimentos e enfatizou a importância da reconstrução do Ministério do Desenvolvimento Agrário (MDA) e das políticas públicas para o campo. “É uma marcha em defesa da democracia, mas também em defesa de alimento e comida de qualidade na mesa dos trabalhadores e das trabalhadoras do nosso país”, afirmou.
A deputada estadual Laura Sito (PT) comemorou conquistas como o anúncio do Programa de Aquisição de Alimentos (PAA) Sementes, e cobrou a contrapartida do governo estadual. “É lamentável a postura do governo do estado frente a tanto orçamento que tem. Foram mais de R$ 111 bilhões destinados pelo governo federal ao Rio Grande do Sul, e muito pouco o governo estadual destinou à nossa agricultura familiar.”
Já a deputada federal Fernanda Melchionna (Psol-RS) elogiou a organização e a pressão dos movimentos: “É muito importante essa grande caminhada para demandar temas estruturantes como agricultura familiar, reforma agrária, apoio aos pequenos agricultores e atendimento às famílias atingidas pelas enchentes”. Ela criticou o que chamou de “agenda negacionista e neoliberal” do governo estadual.

O deputado federal Dionilson Marcon (PT-RS) destacou a legitimidade da mobilização. “O governo tem uma composição muito grande com os grandões e esquece muitas vezes de olhar para quem mais precisa. Principalmente na política agrícola para quem produz comida saudável.” Ele também cobrou o retorno do programa Proagro em sua versão original e enfatizou a importância da moradia popular: “É preciso gritar até que tenha garganta. A mobilização é correta, precisa e legítima”.
Para o deputado estadual Zé Nunes (PT), a mobilização teve resultados positivos, especialmente pela disposição do governo federal ao diálogo. “A presença do MDA e da Companhia Nacional de Abastecimento (Conab) foi importante, com medidas como o edital Terra à Mesa, o PAA Sementes e a ampliação do crédito fundiário.” Ele lamentou, no entanto, a ausência de diálogo do governo do estado: “Infelizmente, o governador não dialoga com esse setor do campo, ou dialoga muito pouco”.
Manifestação cultural e solidária
A caminhada, organizada por movimentos como Movimento dos Pequenos Agricultores (MPA), Movimento dos Atingidos por Barragens (MAB), Federação dos Trabalhadores na Agricultura Familiar do Rio Grande do Sul (Fetraf/RS), Movimento dos Trabalhadores Sem Teto (MTST) e sindicatos, demonstra a força da unidade popular. Entre faixas, cartazes e cantos, ficou claro o recado: reconstruir o Rio Grande do Sul exige escuta, investimento público e respeito à dignidade do povo trabalhador.

Durante o ato também foram realizadas manifestações culturais e shows musicais. As cozinhas solidárias serviram marmitas na parada da marcha, com alimentos oferecidos pelo pequenos agricultores da agricultura familiar. Um dia de luta do povo.

Os governos estadual e federal foram questionados sobre as demandas levantandas na manifestação. Não houve retorno até o fechamento desta reportagem. O espaço segue aberto.
