A estreia da peça O Céu da Língua no Teatro Sérgio Cardoso, em São Paulo (SP), marca um novo momento na carreira de Gregório Duvivier. Escrita e encenada por ele, com direção de Luciana Paes, o espetáculo gira em torno da língua portuguesa e do poder da palavra — um respiro poético que, segundo o ator, só é possível agora que o país deixou para trás o período de ataques constantes à democracia. “Não estaria fazendo essa peça se [o ex-presidente Jair] Bolsonaro tivesse sido reeleito. Ele conseguia controlar o tema, todo dia era uma tragédia”, afirmou, em entrevista ao Conexão BdF, da Rádio Brasil de Fato.
No bate-papo, Duvivier também refletiu sobre o papel da cultura no país e os impactos do desmonte promovido na gestão anterior. “A cultura é a viga central do país, mas os governos costumam nos colocar em segundo plano. O novo Ministério da Cultura está reconstruindo tudo do zero — na verdade, do menos dez”, diz. Para ele, o “apagão do audiovisual” iniciado no governo do ex-presidente Michel Temer (MDB) ainda ecoa nas salas de cinema, e o trabalho de retomada será longo. “ Tudo demora, mas começamos a ver uma nova retomada. Uma re-retomada.”
Sobre a peça, o artista se diz animado com a receptividade do público e com a possibilidade de voltar a discutir poesia em cena. O Céu da Língua, que fica em cartaz até o fim de maio na capital paulista, com sessões de quinta a domingo, às 19h. Os ingressos estão à venda no Sympla. “O sucesso da peça nos prova que existe um interesse constante, renovado, inclusive da juventude, na nossa língua e nas possibilidades poéticas que ela nos oferece. Estou no céu. No Céu da Língua”, brinca.
Confira a entrevista completa:
O Céu da Língua é um lugar de deleite, de satisfação, de agrado. Mas o Brasil anda precisando de um ‘céu da democracia’. Dá para fazer poesia e piada com autoritarismo ou existe limite para o humor?
Eu tentei. No Greg News, eu ficava fazendo piada. Mas não gosto tanto, confesso. Prefiro falar de poesia. Acho que não estaria fazendo essa peça se Bolsonaro fosse reeleito ao governo. Não por ser proibido, mas porque ele conseguia controlar o tema, era monotemático: todo dia estava tentando destruir a democracia, não podia ver nada funcionando sem tentar quebrar: o SUS [Sistema Único de Saúde], o Sesc [Serviço Social do Comércio], a vacina, as escolas… Todo dia era uma tragédia. Então você se via obrigado a falar disso enquanto comunicador.
Com o fim do bolsonarismo — ou pelo menos o seu ocaso, que eu espero que seja o seu fim —, finalmente estamos livres para falar de poesia, de língua, de humor. Acho que essa é a função da arte. Quando há um autoritário no poder, você se vê sequestrado pela sua pauta. Isso é muito ruim para o artista. Estou muito feliz com Lula no poder, voltamos à normalidade política. Não significa que não vamos falar de política. Tem muita coisa a ser dita, o governo não é perfeito, como nunca é. Mas nos permite falar de outras coisas porque está cometendo erros, não crimes contra a humanidade. Isso faz toda a diferença.
Como a peça está sendo recebida pelo público?
Eu não esperava um sucesso tão grande numa peça de poesia, que fala basicamente sobre língua portuguesa, assuntos que achamos que as pessoas não se interessam. Mas elas se interessam muito, e essa peça está provando isso: existe um interesse constante, renovado, inclusive da juventude, na nossa língua e nas possibilidades poéticas que ela nos oferece. Está em cartaz no Teatro Sérgio Cardoso, em São Paulo, fazendo três sessões por semana. Nunca imaginei isso. É uma alegria gigante, sem igual. Estou no céu. No Céu da Língua.
O cinema colocou o Brasil de novo no mapa. Seremos homenageados em Cannes, com um espaço dedicado ao cinema brasileiro. Kleber Mendonça, que estará no festival com o filme O agente secreto, disse que o cinema é feito aos poucos, um processo lento e gradual. É isso mesmo?
É perfeita essa observação de Kleber. O cinema é um trabalho de fôlego. Um filme dura em média de cinco a dez anos, do processo da primeira ideia até a estreia. Pode durar mais: 15, 20 anos. Ou seja, os filmes que vimos durante o governo Bolsonaro foram registrados no governo Dilma ou até no governo Lula. O que estamos vendo agora é fruto da pouca quantidade de filmes que estão sendo filmados e estrelados hoje por conta do apagão dos últimos seis anos. A Ancine [Agência Nacional do Cinema] ficou parada, congelada, com os projetos atravancados num gargalo.
Os efeitos dos governos Temer e Bolsonaro ainda são sentidos, e acho que ainda serão sentidos por um tempo, infelizmente. Tudo demora, mas já começamos a ver uma nova retomada. Uma re-retomada. É triste que o trabalho do artista no Brasil seja esse trabalho de Sísifo, que envolve construir, retomar, aí vem um governo e detona. Depois, tem que re-retomar, para vir outro governo e detonar de novo. É um trabalho exaustivo, mas não sabemos fazer outra coisa. Eu não sei, pelo menos.
Qual é o papel do artista hoje: resistir, insistir ou só rir para não chorar?
É insistir, claro. Como diz Milton Nascimento, é “ir onde o povo está”. Mas não podemos fazer nada sozinhos, e precisamos entender a cultura como estratégica enquanto país. Infelizmente, a cultura não tem a mesma força, o mesmo lobby do agronegócio, por exemplo. No entanto, dá rios de dinheiro ao Brasil, emprega milhões de pessoas. Quando se pensa no Brasil, lá fora, se pensa em samba, em carnaval, em futebol, que também é cultura. E isso com quase nenhum investimento.
A cultura é uma viga central desse país, mas só somos desse tamanho graças à persistência dos nossos artistas porque, infelizmente, os governos tendem a nos colocar em segundo plano. O governo atual representa um aumento gigantesco, uma progressão exponencial, em relação ao passado. A ministra da Cultura, Margareth Menezes, está fazendo um trabalho exaustivo de reconstruir do nada, do zero — na verdade, do menos 10 — tudo que foi desconstruído nos últimos seis anos, que começaram com Temer. É um trabalho árduo, que vai levar muito tempo, mas fico feliz que já tenha começado.
Como você enxerga o papel do humor e da poesia para reverter, ou pelo menos bagunçar, o discurso conservador que vem dominando?
A poesia e o humor têm uma função parecida, que é a de aproximar as pessoas da mensagem que você está querendo passar. Tanto o humor quanto a poesia tendem a ser mais populares, a romper barreiras. Se você faz a pessoa rir, já é meio caminho andado para ela ouvir o que você está dizendo, para ela gostar de você. É muito mais fácil convencer alguém depois que ela já deu pelo menos um sorriso.
Com a poesia, é a mesma coisa. A arte de conquistar corações e mentes é muito importante na política. Humor e poesia são aliados muito importantes na comunicação. Muitas vezes o nosso campo — a esquerda, o progressismo — os despreza, infelizmente. Estou aqui para lembrar da importância dessas ferramentas.
O que falta para a escola pública brasileira transformar mais meninos e meninas em poetas do cotidiano, em vez de só decoradores de regras gramaticais?
Vamos lembrar o que Paulo Freire já pregava: uma alfabetização mais poética e próxima do cotidiano. A mesma coisa vale para o aprendizado da literatura: que ensinemos para as crianças, desde já, na mais tenra idade, a poesia como algo gostoso, divertido, engraçado. Temos no Brasil ótimos poetas da infância: Manuel Bandeira, Mário Quintana, Cecília Meireles…
Minha filha pequena está apaixonada agora por Ou Isto ou Aquilo, de Cecília Meireles. É incrível, é lindo, e atravessa décadas. Temos que aproveitar que temos uma poesia muito pop — com o perdão do anglicismo. A poesia pode ajudar muito na alfabetização, desde que seja ensinada como algo lúdico, gostoso, prazeroso, e não como um dever, uma obrigação. Levar esse tesão da palavra para a sala de aula é muito importante.
Se você pudesse escolher uma palavra para ressuscitar no vocabulário político brasileiro, qual seria?
Acho que as palavras gastas são muito importantes ainda: “democracia”, “Estado de Direito”. E tem palavras que esquecemos na política, como “reforma agrária”. Hoje, são palavras esquecidas, infelizmente. Embora haja muita gente lutando, como o nosso querido MST [Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Tera], não as vemos mais na grande mídia. Essas palavras eram mais presentes na minha infância; vamos ressuscitá-las, pelo amor de Deus.
E se você pudesse convidar um político brasileiro para uma roda de poesia, quem seria e por quê?
Eu não sou fã de roda de poesia, então seria alguém que eu não gosto muito. Acho que chamaria Carla Zambelli. Sou fã dela, confesso. Essa última dela, que ela começou a ler o superchat das pessoas… é um manancial de loucura, meu Deus! Estou triste que ela vai ser presa, por um lado, porque ela não vai poder twittar. É cômico demais. Mas vai ser bom. Vai ser engraçado também ela presa, confesso. Eu não sou punitivista, mas a ideia desse povo preso está mexendo em sentimentos meus que não deveriam… Comemorar gente na cadeia, eu não gosto. Mas eles conseguiram.
Você imagina um futuro em que a linguagem seja menos machista, racista e elitista? O que falta para a língua portuguesa virar uma militante progressista?
A língua é reflexo da sociedade. Não dá para mudar a língua sem mudar a sociedade. Às vezes, queremos mudar o mundo pela linguagem, e acho que não é assim que funciona. Precisamos mudar o mundo, e a linguagem vai ser mudada junto. Claro que ter uma linguagem mais inclusiva é importante, mas a língua é fruto da sociedade, e eu sou contra tentar impor isso às pessoas.
O pronome neutro, por exemplo, acho que a pessoa tem direito de ser chamada como quiser, mas a maneira como nos comunicamos nunca pode ser impositiva, senão perdemos a população. As coisas precisam ser propostas, conversadas.
Eu sonho com uma língua que seja mais propositiva e menos impositiva, que o povo participe da discussão e entenda que a língua é dele. Ele fala português, e tem o direito de falar o português que ele fala. Podem chamar, inclusive, de “brasileiro”, se preferir.
Para ouvir e assistir
O jornal Conexão BdF vai ao ar em duas edições, de segunda a sexta-feira, uma às 9h e outra às 17h, na Rádio Brasil de Fato, 98.9 FM na Grande São Paulo, com transmissão simultânea também pelo YouTube do Brasil de Fato.