A Comissão Parlamentar de Inquérito (CPI) do Senado sobre as bets mostrou que os influenciadores digitais estão longe de se responsabilizar pelos efeitos sociais e econômicos dos jogos de apostas online que divulgam em suas redes sociais.
Virgínia Fonseca e Rico Melquiades, com 53 e 4 milhões de seguidores no Instagram respectivamente, frisaram que divulgam os jogos porque o Congresso aprovou a regulamentação das apostas online, independentemente do quadro de vício e endividamento da população brasileira com esse tipo de jogo. Fosse o contrário, não fariam.
“Se eu divulgo hoje, é porque o Congresso aprovou. Eu estou fazendo o meu trabalho. Eu não obrigo ninguém a jogar. Eu deixo muito claro que se você tiver algum problema com vício não é para entrar”, afirmou Melquiades como testemunha à CPI.
“Eu deixo claro em todos os meus stories tudo o que tem que ser feito. Não faço nada fora da lei. Não faço nada que não seja permitido. (…) Quando eu posto, sempre deixo muito claro que é um jogo, que pode ganhar e pode perder; que menores de 18 anos são proibidos na plataforma; que se você possui qualquer tipo de vício, o recomendado é não entrar; e que é para jogar com responsabilidade”, afirmou Virgínia, também como testemunha, um dia antes.
Ela chegou a afirmar que não tem como socorrer seguidores viciados em bets: “eu não tenho poder de fazer nada”. De acordo com uma reportagem da revista Piauí, a influenciadora tem um contrato de R$ 29 milhões para divulgar em seus stories, no Instagram, uma empresa de apostas online.
De fato, os influenciadores divulgam os jogos de acordo com as regras regulamentadas pelo governo federal em agosto do ano passado, que estão disponíveis no site do Conselho Nacional de Autorregulamentação Publicitária (Conar). O conjunto de regras determina que:
- Todos anúncios devem conter um símbolo “18+” ou aviso de “proibido para menores de 18 anos”;
- Pessoas que apareçam em destaque nas publicidades deverão ser e parecer maiores de 21 anos de idade;
- Os perfis e sites dos anunciante deverão adotar os mecanismos de restrição etária disponíveis;
- Não devem ser inseridas em canal, programa ou conteúdo segmentado, criado, dirigido e voltado a menores de 18 anos;
- Em redes sociais devem usar somente canais, perfis ou influenciadores que tenham adultos como seu público-alvo.
- Cláusula de advertência: mensagens de jogo responsável;
- As publicidades deverão indicar claramente o anunciante responsável pela mensagem publicitária, a identificação da autorização/licença (assim que expedidas e conforme regulamentação), e o acesso para dados de contato e canal de atendimento ao consumidor.
- Os perfis em redes sociais e as páginas na Internet dos anunciantes devem ser verificados oficialmente, por exemplo, através de ícone de verificação de titularidade do serviço.
Segundo Christian Printes, gerente jurídico do Instituto de Defesa de Consumidores (Idec), no entanto, a regulamentação atual para a publicidade de jogos de apostas online é “claramente insuficiente”.
“Temos visto um crescimento acelerado desse mercado sem a devida regulação dos conteúdos publicitários, o que tem levado à naturalização do jogo e ao aliciamento de consumidores em situação de vulnerabilidade e que agravam a situação de milhares de pessoas superendividadas”, afirma o especialista.
Printes dá um passo além e afirma que, para o Idec, esse tipo de jogo não deveria funcionar no Brasil, uma vez que “afronta a vida, a saúde e a segurança” do consumidor. “Esse tipo de prática é altamente nociva às pessoas consumidoras e causa impactos sociais e de saúde pública”, reforça.
Por isso, ele classificou como “preocupante” a postura dos influenciadores de se eximirem das responsabilidades sociais e econômicas dos efeitos dos jogos de apostas online, “ainda mais considerando que muitos deles têm milhões de seguidores — muitos jovens — e promovem jogos e apostas online como se fossem uma forma fácil e divertida de ganhar dinheiro. Essa banalização do risco ignora os efeitos reais que estamos vendo: endividamento, perda de renda e impactos à saúde mental”.
O próprio influenciador Rico Melquiades afirmou durante a CPI que joga todos os dias e que a aposta online o ajuda a “aliviar” a ansiedade. “Eu costumo jogar também por divertimento. Todos os dias eu jogo. (…) Eu tenho muita ansiedade, então jogar alivia a minha ansiedade, assim como fumar também”, disse.
Uma pesquisa realizada pela Universidade Federal de São Paulo (Unifesp) indicou que pelo menos 10,9 milhões de pessoas fazem um uso perigoso de apostas no Brasil. O estudo, divulgado no início de abril deste ano, faz parte do Levantamento Nacional de Álcool e Drogas (Lenad) feito para o Ministério da Justiça e Segurança Pública (MJSP).
Do total, 1,4 milhão de jogadores desenvolveram transtornos de jogo, com prejuízos pessoais, sociais ou financeiros. O número é semelhante ao encontrado em uma pesquisa feita pela Universidade de São Paulo (USP), que mostrou que dois milhões de pessoas estão viciadas em jogos no Brasil. Um estudo do banco Itaú, por sua vez, indicou que os brasileiros perderam aproximadamente R$ 24 bilhões em jogos e apostas online em um ano.
Nesse cenário, Printes defende que “os influenciadores e plataformas digitais não podem ser tratados apenas como veículos de comunicação, mas como agentes que participam ativamente da cadeia de consumo e devem ser responsabilizados solidariamente com as bets pelos danos causados aos consumidores, considerando que recebem dinheiro diretamente das bets para ofertar as plataformas ao público”.
“Não basta apenas informar os riscos, deixar de direcionar publicidade para menores de idade ou não utilizar linguagem que estimule comportamento impulsivo ou compulsivo. Enquanto muitos influenciadores recebem das próprias bets uma quantia de dinheiro virtual para jogar e ofertar as plataformas de jogos e apostas online aos consumidores, a população coloca o dinheiro do pagamento da conta de luz, de água ou da comida no jogo. Aquilo que deveria fazer parte do mínimo existencial dessas pessoas, na realidade está sendo usufruído por terceiros que não estão preocupados com a saúde e segurança dos consumidores brasileiros”, afirma.
Transtornos psicológicos
De acordo com a Organização Mundial da Saúde (OMS), há um nome para o vício em jogos: a ludopatia, que causa o desejo incontrolável de jogar ou apostar devido à emoção que a prática causa no cérebro.
O presidente da Associação Brasileira de Psiquiatria (ABP), Antônio Geraldo da Silva, explica que a doença afeta o cérebro da mesma forma que o álcool e substâncias semelhantes. “Sintomas como inquietação ou irritabilidade, tentativa de escapar da realidade e do estresse através do jogo, ansiedade, depressão, angústia, mentir sobre apostar, isolamento social e até mesmo tentativas de suicídio fazem parte do quadro”, afirma.
“Além disso, a doença impacta diretamente na vida financeira com gastos maiores do que pode, acumulando dívidas e tendo dificuldades para pagar as contas, problemas familiares e sociais, pois a pessoa pode esconder de amigos e familiares suas dívidas geradas pelos vícios, desatenção e dificuldades no trabalho, entre outros”, explica o psiquiatra.
Silva considera que atualmente o Brasil não tem um sistema ambulatorial robusto para atender esse tipo de paciente. Em suas palavras, os Centros de Atenção Psicossocial (Caps), que oferecem serviços de saúde abertos para a comunidade, é “apenas” um dos equipamentos disponíveis e não pode ser considerado o principal.
“Precisamos de campanhas de prevenção, impedir que as pessoas entrem no vício é fundamental. Precisamos pará-las antes. É importante que as pessoas saibam que ninguém ganha das bets, não existe nenhuma possibilidade da pessoa enriquecer através destas plataformas. Elas sempre ganham”, conclui o presidente da ABP.