Em 1992, lideranças religiosas se uniram para dar o grito em defesa da Terra, na Eco-92, no Rio de Janeiro. Agora, mais de 30 anos depois, diante de uma das maiores crises climáticas da história do país, lideranças, movimentos sociais, ambientalistas se mobilizam para a 30ª Conferência das Nações Unidas sobre Mudanças do Clima (COP 30). Em Porto Alegre, o primeiro passo foi dado neste sábado (17), com o lançamento da 1ª Vigília pela Terra.
Durante este ano, acontecerão outras vigílias em diversas cidades brasileiras, em uma iniciativa do Instituto de Estudos da Religião (Iser). As mobilizações culminarão em uma grande vigília multirreligiosa na 30ª Conferência das Nações Unidas sobre Mudanças Climáticas (COP30), que acontecerá em novembro, em Belém (PA).
Durante o ato, realizado no final da tarde, na orla do Guaíba, próxima a Usina do Gasômeto e ao monumento em homenagem aos voluntários que atuaram na enchente, manifestantes entoaram o mantra: “Tudo está interligado como se fossemos um”. A ação, de caráter inter-religioso, reuniu lideranças espirituais, movimentos sociais, coletivos, comunidades de fé e pessoas comprometidas com a justiça climática e marcou um ano das tragédias climáticas que impactaram o Rio Grande do Sul.

“Aqui, juntamos nossas vozes, desde o bioma Pampa, que se conecta com a Mata Atlântica e o sistema costeiro marinho. Em memória às vítimas das enchentes, em agradecimento aos corações oferecidos de tantos voluntários e organizações para ajudar a aliviar as dores daqueles dias. Situação que não foi ainda superada completamente, pois muitos seguem em abrigos, na espera de políticas públicas que atendam as suas justas demandas por direitos. Este também é um espaço de grito por justiça. Não enfrentamos todos a mesma crise, sentimos os impactos da crise climática de forma diversa”, destacou o integrante do Iser, Paulo Sampaio.
Além das falas das lideranças religiosas, de atingidos e movimentos sociais, a celebração também contou com intervenções musicais, declamações de poesia (slam) e homenagem às vítimas humanas e animais da enchente que atingiu o estado em 2024.
A ação foi organizada em parceria com o Fórum Inter-religioso e Ecumênico do Rio Grande do Sul (Fire), a Fundação Luterana de Diaconia, o Conselho Nacional de Igrejas Cristãs do Brasil (Conic), o Zen Budismo do Vale dos Sinos, o Centro de Estudos Budistas Bodisatva (Cebb), a Visão Mundial, a Igreja Episcopal Anglicana do Brasil, o Conselho Estadual do Povo de Terreiro do RS, o Youth Action Hub, o Global Shapers POA, o Comitê de Povos e Comunidades Tradicionais dos Pampas, o Coletivo Abrigo, entre outras entidades.

Em defesa da Terra Comum
“Essa casa é a casa de todos, esse encontro ecumênico representa isso, um lar comum de todos nós, independente da nossa fé, das nossas tradições, da nossa não-fé, inclusive. Que nós possamos estar unidos em defesa dessa mãe, porque, como disse o Frei Leonardo Boff, a Terra é mãe e mãe a gente não maltrata, a gente cuida”, ressaltou o diretor do Coletivo Abrigo e integrante do Fórum Inter-religioso, Tiago Santos.
Reverendo da Igreja Episcopal Anglicana do Brasil, Ivan Carlos Pereira pontuou a importância da união e o significado do ato acontecer na orla. “A vigília significa que estamos vigilantes, fiscalizando, vendo o que está acontecendo no planeta e também aquilo que os governantes estão fazendo, para onde estão conduzindo as nossas nações nessa realidade de mudanças e tragédias climáticas que enfrentamos. Estamos aqui nesse espaço tão importante que é a orla do Guaíba, que é um símbolo sagrado agora de Porto Alegre, porque aqui muitas pessoas foram salvas.”
A psicóloga e zen-budista Monja Kokai falou sobre a interligação de todos os seres, que não estão separados da Terra mas foram distanciados. “A Terra está dando sinais, e ela está muito ferida, muito machucada. E aí entra um dos principais papéis das religiões. A ciência tem feito o seu trabalho, temos informação suficiente e sabemos que grande parte da parcela da humanidade está angustiada. Nós temos que nos mobilizar coletivamente porque sozinho ninguém vai resolver.”

A vigília foi aberta com uma celebração para Oxum (rios) e Xapanã (terra) e benção de ervas realizada pelo babalorixá do Ilê dos Orixás de São Leopoldo (RS), Pai Dejair de Ogum. “É da nossa tradição, do povo de matriz africana, o culto à natureza. Para nós, o próprio orixá é a força da natureza. Vir aqui saudar a Mãe Terra, a água, a folha, o vento, para nós é muito importante e sagrado. Pena que algumas comunidades se esqueceram da importância de viver em harmonia com a natureza, valorizar os leitos dos rios, os arroios, os açudes. O capitalismo está sendo tão perverso que as pessoas, por questões econômicas, estão desrespeitando essa convivência”, destacou Pai Dejair.
A celebração foi encerrada com uma meditação conduzida pelo Lama Samten, recitando o mantra de Tara. Ao comentar sobre os mais de 30 anos que separam os dois eventos sobre o clima realizado no país, Samtem afirmou que de lá para cá, muitas palavras foram derramadas mas quase pouco foi feito efetivamente.
“A novidade que a gente teve de lá para cá é que nós estamos nos conscientizando que as palavras não são suficientes. Porque nós entendemos todas as coisas, mas a humanidade segue impulsionada de um modo destrutivo. A vigília é quando a gente abre o coração, pede que as coisas milagrosamente aconteçam. A racionalidade, ela já produziu todas as palavras, nós precisamos agora das transformações”, frisou.
Solidariedade em meio à tragédia
“Nós, pescadoras e pescadores, ribeirinhos, povos e comunidades tradicionais estamos pagando uma conta que não é nossa. Nós somos os maiores guardiões da natureza, mas estamos sofrendo as maiores consequências. Fomos nós também que salvamos mais de 90% das vidas com as nossas embarcações, e fomos os menos ajudados com política pública para conseguir nos reerguer novamente, mas somos resilientes”, enfatizou a representante das comunidades de pescadoras artesanais Viviane Alves.
Fundadora do Coletivo Abrigo e moradora de Canoas (RS), Poliana Einsfeld teve sua casa atingida pelas águas. Além de lembrar dos mais de 180 mil desalojados na cidade, ela ressaltou a solidariedade advinda do episódio. “Queremos justiça por todos que perderam suas casas e seus negócios. Vamos continuar exigindo providências das autoridades competentes. A culpa não é do rio. A culpa não é de Deus. Aliás, nunca sentimos, de forma tão clara e tão palpável a mão de Deus. Apesar de termos perdido tudo, nada nos faltou, o amor, o carinho, a solidariedade e o aconchego de tanta gente.”
Também moradora de Canoas, a integrante da economia solidária do município que agrega mais de 35 grupos, Eva Dornelles, 75 anos, disse que muitas colegas perderam todos os seus instrumentos de trabalho que tinham nas casas. Após um ano, aos poucos estão conseguindo se recuperar e buscar a força de trabalho. Para ela, a responsabilidade da catástrofe climática vem das mãos dos homens.
“Há muitos anos, o homem depredou muito o caminho das águas, o ar, o mundo que a gente vive. Somos um tanto responsável por tudo isso que aconteceu, precisamos corrigir isso o mais rápido possível”, afirmou Dornelles, que também é Promotora Legal Popular.

Somos natureza
Representante do Instituto Curicaca, Alexandre Krob pontuou que, desde a Eco-92, pouco foi alterado. “Conseguimos mudar muito pouco o destino que vem sendo traçado por um comportamento humano, principalmente das corporações, dos governos, do agronegócio, da mineração, da forma gananciosa em que os poderes se relacionam com essa nossa terra, com esse nosso planeta. A gente teve esses anúncios trazidos por cientistas, ambientalistas, há muito tempo, mas ninguém deu bola.”
Krob exemplificou com o bioma Pampa, que vem sendo tomado por silvicultura, plantação de soja e mineração. “Isso vem se acumulando com o tempo, e está nos levando para uma situação de não retorno. A gente precisa cobrar dos nossos políticos uma atuação muito mais efetiva. A COP30, que vai acontecer em Belém, talvez seja um momento ainda de esperança de uma mudança.”
O presidente da Associação Gaúcha de Proteção ao Ambiente Natural (Agapan), Heverton Lacerda, apontou que 10% dos mais ricos do planeta são responsáveis pela emissão de 52% dos gases do efeito estufa, enquanto mais da metade da população só emite 7%. “Nós precisamos retomar essa compreensão do quanto nós somos natureza. Nosso planeta tem os reinos animal, vegetal e mineral. Nós somos uma espécie de um desses reinos, do reino animal, e essa é a espécie que está ajudando a degradar e a destruir o planeta.”
Lacerda também chamou atenção para a preservação das águas que banham Porto Alegre. “O Guaíba é um curso d’água, pouco importa para nós se o nome seja rio ou lago, o que importa é a proteção do Guaíba e a proteção das comunidades que estão em suas margens. Nós bebemos d’água do Guaíba e precisamos dele limpo. Considerar ele um curso d’água é dar a proteção máxima às suas margens. E essa é a luta que nós estamos travando na Justiça, proteção máxima, independente do nome que queiram dar.”
Na mesma linha, a cacica Iracema Gãh Té Nascimento, da Retomada Gãh Ré, reforçou que o Guaíba é mãe das nascentes que nascem dos morros. Lembrou que, quando havia árvores na orla, esteve entre aqueles que brigaram contra o corte. “Não adiantou, o que vence sempre é essas pedras e construção. Cadê as folha, os peixes? Vocês viram que aconteceu, a enchente, ela atravessou essas pedras. Não adiantou. Se tivessem as árvores, as gramas, ela não tinha invadido Porto Alegre, a cidade e esses prédios. Nós indígenas sabemos o caminho das águas e como é que a gente pode construir a nossa casa. Nós temos que ter primeiro respeito pela nossa natureza. Respeitar cada coisa que existe no solo da nossa mãe terra.”
Mente e coração
O integrante do Iser lembrou que “o racismo que provoca a intolerância, invasão e violação de terreiros é o mesmo que faz com que populações pretas e periféricas e as comunidades tradicionais quilombolas, povos ciganos, comunidades pesqueiras, entre outras, sejam as mais afetadas pelos eventos climáticos extremos”. Segundo ele, é necessário “comunicar às mentes, mas também aos corações”.
“Que a natureza, através dos biomas, dos rios voadores e de tantos outros sistemas ecológicos da vida, nos conduza a viver nesta terra de maneira responsável e fraterna, sabendo que nada nos é indiferente, pois tudo está conectado e interligado com este belo encontro que realizamos aqui agora”, concluiu Paulo Sampaio.
