Em uma audiência pública realizada nessa terça-feira (20), na Assembleia Legislativa da Paraíba (ALPB), parlamentares, representantes dos músicos, empresários do setor cultural e especialistas debateram a aplicação da Lei 13.652/2025, que regulamenta o chamado “couvert artístico”— uma taxa cobrada em bares, restaurantes e casas noturnas que deve ser repassada integralmente aos artistas que se apresentam nesses locais.
A deputada estadual Cida Ramos (PT-PB), autora da proposta, enfatizou o caráter social e cultural da lei, destacando a importância do repasse integral do valor para garantir a dignidade dos trabalhadores da cultura e corrigir uma relação histórica de exploração econômica dos músicos.
Dentre as diversas falas, o vereador Mô Lima (PP), que também é músico, expressou apoio à valorização da categoria, mas fez duras críticas às brechas existentes na lei. Para ele, a norma carece de clareza em pontos fundamentais, como penalidades para quem descumprir, critérios para diferentes perfis de artistas e estabelecimentos, além da ausência de diálogo mais amplo com os envolvidos.
Mô Lima (PP-PB) destacou que a lei, apesar de positiva em seu princípio, pode gerar insegurança jurídica e desigualdade entre os músicos. Ele exemplificou com situações em que artistas recebem valores muito diferentes — de R$ 30 a R$ 3 mil — e criticou o fato de a multa prevista pelo Procon (R$ 12 mil) não estar prevista de forma clara no texto legal. O vereador também denunciou um boicote indireto de bares, representados pela Associação Brasileira de Bares e Restaurantes (Abrasel), que estariam evitando contratar músicos para não arcar com os custos do couvert.
A deputada Cida Ramos (PT-PB) respondeu à fala anterior do vereador Mô Lima reafirmando sua autoridade como anfitriã da audiência e defensora da lei. De forma firme, ela destacou que a legislação não é “fumaça”, mas uma norma em vigor que deve ser cumprida. Usando sua própria trajetória como professora, Ramos enfatizou que, assim como defende sua categoria, agora está ao lado dos músicos, que enfrentam realidades duras no cotidiano.
Ela ressaltou que a questão central não é a logística de calcular o couvert artístico ao final das apresentações, mas sim a sobrevivência dos artistas, que muitas vezes precisam voltar para casa de ônibus às 5h30 por não terem dinheiro para transporte, caso o couvert não seja respeitado. A deputada cobrou que a discussão seja feita com base em fatos reais e sensibilidade, especialmente diante da precariedade enfrentada pelos músicos.
Lamounier Costa, representando a Comissão Gestora do Sindicato dos Músicos da Paraíba, destacou o espírito republicano do debate: “Nós queremos sentar à mesa não como adversários, mas como trabalhadores que exigem respeito, que exigem condições dignas. A música é trabalho, é uma profissão. E o artista não pode viver de aplauso. O artista tem que viver com dignidade também. Então, como um dos requerimentos que nós fazemos a essa casa é que acompanhe, que fiscalize a aplicação da lei em território; que promova ações de educação e conscientização junto ao setor empresarial para que entenda o papel da lei e o valor do músico”.
A Abrasel esteve presente com dois representantes – uma delas, Tâmara Cavalcante, iniciou sua fala afirmando que o setor de alimentação fora do lar é responsável por mais de 20 mil estabelecimentos formais e gera cerca de 120 mil empregos no estado. Ela criticou declarações da deputada Cida Ramos, autora da lei, que teriam classificado o setor como “chantagista” e “explorador”, e defendeu que a Abrasel preza pelo diálogo e não atacou os músicos nem o Legislativo.
Segundo Tâmara, a lei foi elaborada sem a participação dos principais setores envolvidos — empresários e músicos — e apresenta falhas, como ausência de critérios claros para fiscalização, rateio do couvert entre artistas e estrutura, além de possíveis violações à Lei Geral de Proteção de Dados (LGPD), por exigir a exposição de contratos com dados pessoais.
Ela apontou que a insegurança jurídica gerada pela lei desestimula a contratação de músicos, sobretudo por bares pequenos, que muitas vezes não têm público suficiente para garantir ao artista sequer o custo do transporte. Também questionou a viabilidade econômica da cobrança e repasse integral do couvert, lembrando que os empresários arcam com estrutura (som, iluminação, segurança), impostos (como 27,5% de INSS) e taxas de maquineta.
Cavalcante argumentou que o couvert não remunera apenas o artista, mas toda a cadeia produtiva que viabiliza a apresentação, e que, da forma como está, a lei pode prejudicar os pequenos estabelecimentos, os músicos e o acesso do público à cultura — especialmente durante a semana, quando o movimento é menor.
“Ontem foi dito que a gente estava defendendo as grandes empresas. Pelo contrário, deputada, são os pequenos que mais vão sofrer, porque são os pequenos que não vão ter músicos porque eles têm dez mesas, cinco mesas, e o músico não vai sair de casa justamente pelo mesmo fato que falaram aqui, sem saber se vão ter pelo menos o dinheiro do transporte”, declarou Cavalcante.
Arthur Lira, dirigente da Abrasel-PB e dono do restaurante Estaleiro, afirmou que defende o setor empresarial, mas reconhece que existem estabelecimentos que desrespeitam e desvalorizam músicos. Criticou o tom do debate, dizendo que os empresários foram chamados de “chantagistas” e acusados de “enriquecimento ilícito”, o que, segundo ele, não contribui para o diálogo. Ressaltou que o setor de alimentação é um dos que mais fecha empresas no país e que muitos empresários saem endividados, vendendo bens e com dívidas bancárias.
“Aí quando diz que estabelecimentos estão tirando os músicos, é boicote. Não é boicote não. O povo está quebrando. Alimento sobe todo dia. Sobe tudo nesse país todo dia. Vocês estão vendo a inflação como está. A gente está minimizando custos. A gente trabalha todo dia. Meu trabalho é procurando ver como minimizar, puxa daqui, puxa dali, porque tem dívida em banco, porque tem que pagar folha de pagamento de funcionário. Tudo isso a gente tem aqui. Se ficar nisso, a gente não chega a lugar nenhum, fica só rodando, certo?”, disse Lira.
Ele também questionou a aplicação atual da lei, dizendo que, sem convenção coletiva válida e sem sindicato dos músicos formalizado, os estabelecimentos estão obrigados a repassar 100% do couvert artístico aos músicos, sem poder reter nem os 20% previstos em caso de acordo, o que considera inviável diante dos custos operacionais. Alegou que, atualmente, os empresários não têm margem de negociação.
Para o vereador Marcos Henriques (PT-PB), a lei deve ser continuada e receber aperfeiçoamentos. Ele denominou como contradição o fato de a Abrasel dialogar e, ao mesmo tempo, entrar com uma ação judicial contra a lei. Ele também pontuou relatos sobre a suspensão de apresentações — que, segundo ele, pode configurar boicote. Defendeu que a aplicação da lei pode servir de modelo nacional, desde que os envolvidos se desarmem e dialoguem de forma honesta.
“A Abrasel quer negociar e entra na justiça contra uma lei. É uma coisa meio sem lógica isso. Então eu acho que é muito ruim você querer discutir a melhoria pro músico com a faca no pescoço. E na primeira reunião que eu participei, a representante da Abrasel disse com todas as letras: ‘Nós vamos suspender a música’. Isso aí não é uma tentativa de boicote? Eu acho que nós devemos dar uma chance a essa lei”, declarou Henriques.
O vereador continuou lembrando que nem todos os empresários exploram músicos, mas muitos pagam cachês baixos (R$ 150 ou R$ 200), o que a nova legislação pretende transformar.
Adriano Ismael, representando a Ordem dos Músicos do Estado da Paraíba lembrou que músicos também têm altos custos operacionais: instrumentos caros, cordas, ensaios pagos, tempo de preparação e atualização constante.
“Sou músico há 38 anos e há quanto tempo a gente já vem lutando para ter dignidade, para termos nossos direitos. Nós somos trabalhadores, certo? Quando se fala em custos operacionais, músico tem muito custo. Quantos aqui não batalharam para comprar um instrumento? Então, será que o cachê que nós ganhamos hoje compra uma corda do instrumento para trabalhar? O tempo que se gasta em estúdios de ensaio. A gente tem um custo sim, e é alto”, disse Ismael.
O vereador Guga Jampa (PSD-PB) se posicionou a favor da lei. Reforçou que não existe uma guerra entre músicos e empresários, mas frisou que “o empresário precisa mais do músico do que o contrário”. Questionou a distribuição injusta do couvert artístico, afirmando que alguns bares arrecadam muito e repassam pouco ou quase nada aos músicos e reafirmou a importância da parceria entre artistas e estabelecimentos, reconhecendo a interdependência entre os dois lados.
O deputado Félix Araújo (Rede-PB) fez uma fala contundente em defesa da lei e refutou veementemente o argumento de que a lei seria inconstitucional, afirmando, com base na Constituição Federal, que não há nada de ilegal ou abusivo no conteúdo da norma aprovada. Ele citou o trecho da lei: “Dispõe sobre o repasse do couvert artístico em casas de show, bares, restaurantes e similares em todo o estado da Paraíba” — e perguntou retoricamente: “Onde está escrito que isso é proibido?”
Júnior Pires, secretário do Procon Municipal de João Pessoa, esclareceu que o Procon atua apenas nas relações de consumo entre estabelecimento e consumidor, e que a fiscalização da lei cabe aos órgãos de cultura dos municípios. Explicou que a multa mínima de 200 UFIR-PB (cerca de R$ 12 mil) é geral, não sendo específica para essa lei. O Procon intervirá apenas em casos de infração ao Código de Defesa do Consumidor, como cobranças indevidas ou falta de clareza na cobrança do couvert. Apontou dúvidas práticas a serem esclarecidas, como a forma de cobrança e o destinatário do pagamento.
A deputada Cida Ramos reafirmou seu compromisso com a defesa da cultura e dos trabalhadores da música durante a audiência “Nós temos vídeos de representantes da cultura e de estabelecimentos que já pagam corretamente ao artista”, disse, referindo-se a depoimentos divulgados nas redes sociais para fortalecer o apoio à lei.
“Sempre acreditei que desenvolvimento econômico, cultura, turismo e arte deveriam estar muito interligados”, declarou. Segundo ela, os bares e restaurantes, ao utilizarem a música como atrativo, também assumem uma função social que vai além do lucro. “A Paraíba tem uma cultura densa, tem escolas de música reconhecidas internacionalmente.”
Ela defendeu a legitimidade da lei e o apoio popular que ela recebe. “O apoio à Lei 13.652 é imenso. Em qualquer enquete, rede social, programa de rádio ou TV, a população diz: ‘É uma lei justa’.” Cida Ramos refutou a ideia de que a lei coloca artistas contra empresários. “O que nós queremos dizer é que essa relação é desigual. E ela não se sustenta.”
Ramos rebateu argumentos dos empresários sobre os altos custos e o fechamento de bares e restaurantes. “Assim como o empresário precisa pagar folha, manter o padrão de vida e o estabelecimento, o músico também tem seus custos. Paga transporte, alimentação, instrumento. Às vezes o instrumento está até no próprio bar.” Ela reforçou que o cover artístico é um valor pago pelo cliente pela performance musical e não deve ser tratado como receita do estabelecimento.
Sobre a forma de cobrança do couvert, Ramos afirmou: “O couvert tem que ser proporcional ao número de mesas. Teremos realidades distintas? Teremos. Mas podemos ajustar. Fiscalização é uma delas. E se tiver três grupos tocando no mesmo dia? Há alternativas. Isso não pode ser impedimento para não aplicar a lei.”
Ela criticou a resistência dos representantes da Abrasel em negociar até mesmo uma divisão proporcional. “Nem aceitaram discutir uma balança 50/50. A reação dos músicos está aqui. Eles estão dizendo: não aceitamos mais essa desigualdade.”
Rejeitando qualquer tentativa de deslegitimar a luta da categoria, ela destacou: “Músico é trabalhador. Eu jamais ousaria dizer ‘meus músicos’, como se fossem propriedade. Eles falam por eles mesmos.”
Ramos também recordou sua atuação durante a pandemia, quando intermediou diálogos para que bares e restaurantes recebessem apoio do governo. “Eu sei como é difícil também para o lado de cá. Mas agora os empresários precisam entender que essa balança precisa ser ajustada por igual.”
O que é o couvert artístico e como funciona a lei?
O couvert artístico é uma taxa que o consumidor paga ao frequentar estabelecimentos com música ao vivo, normalmente incluída na conta ou cobrada à parte, que deve ser destinada exclusivamente aos artistas que se apresentam naquele local.
Antes da lei, muitos empresários retinham parte ou a maior parte desse valor, alegando custos e despesas, prejudicando diretamente os trabalhadores da música. A Lei 13.652 estabelece que 80% do valor arrecadado deve ser destinado integralmente aos músicos, enquanto os 20% restantes ficam para o estabelecimento para cobrir custos administrativos e operacionais.
Contudo, a lei também prevê que o repasse deve ser feito de forma transparente, garantindo que o valor destinado aos artistas não seja retido indevidamente. Esse percentual 80/20 visa equilibrar a relação entre os trabalhadores e os empresários, considerando os custos reais de ambos os lados.
A lei e a luta dos músicos na Paraíba e no Brasil
A Lei 13.652 é fruto de anos de reivindicações por parte dos músicos, que historicamente enfrentam precarização, baixos salários e falta de reconhecimento. Muitos artistas recorriam a estratégias informais para garantir sua sobrevivência, como cobrar “chapéu” em apresentações, o que revelou a ausência de um mecanismo legal claro para a proteção social desses trabalhadores.
A lei teve origem no reconhecimento da necessidade de proteger direitos culturais, previsto na Constituição Federal (Art. 215), e foi regulamentada para estabelecer o repasse justo e garantir a dignidade dos trabalhadores da música.
No âmbito nacional, estima-se que o setor de música ao vivo emprega milhares de trabalhadores informais, que ganham, em média, abaixo do salário mínimo, segundo dados do Ministério do Trabalho. Estima-se que mais de 80% dos profissionais atuam na informalidade ou com contratos precários, o que reforça a importância da regulamentação da lei para assegurar seus direitos.
No entanto, a lei enfrentou resistência, principalmente dos empresários que alegam impactos financeiros. Já foram registradas diversas polêmicas e debates acalorados sobre a fiscalização e aplicação da norma, com alguns empresários chegando a ameaçar a retirada da música ao vivo, o que preocupa artistas e defensores da cultura.
Participaram da audiência pública, entre outros: o deputado Félix Araújo Filho (Rede-PB); os vereadores pessoenses Marcos Henriques (PT-PB), Mô Lima (PP-PB) e Guguinha Moov Jampa (PSD-PB); a advogada Ezilda Melo, vice-diretora da Escola Superior de Advocacia da OAB/PB; o executivo Samuel Ribeiro Carneiro Barros, representando o Procon Estadual; os músicos Adriano Ismael, representando a Ordem dos Músicos do Estado da Paraíba e Lamounier Costa, representando a Comissão Gestora do Sindicato dos Músicos da Paraíba.