No coração do bairro Bom Jesus, em Porto Alegre, resiste e floresce uma história marcada pela luta ambiental e pelo compromisso com a justiça social. Criado em 1996 pela liderança comunitária Marli Medeiros, o Centro de Educação Ambiental (CEA) teve origem de um sonho simples e poderoso: transformar o que era chamado de lixo em trabalho, educação e dignidade.

Marli faleceu em 2018, aos 65 anos, mas deixou um legado que ecoa em cada canto do CEA. Hoje, quem conduz essa trajetória é seu neto, Henrique Medeiros, que cresceu entre os recicláveis e os ensinamentos da avó. À frente do centro, ele mantém viva a essência do projeto e amplia suas ações, enfrentando de forma coletiva os desafios sociais e ambientais da região.

“Uma mulher preta de periferia que estudou até a 5ª série dizendo que queria salvar o mundo através daquilo que chamavam de lixo”, relembra Henrique. “Eu literalmente nasci aqui dentro. Quando minha avó e meu avô começaram, colocaram quatro estacas de madeira, uma lona preta por cima e começaram a receber muito lixo. Aos 9, 10 anos, a gente reciclava só alumínio, plástico e papel. Hoje, temos quase 34 tipos de resíduos sendo reaproveitados aqui.”

Localizado em uma das áreas vulnerabilizadas de Porto Alegre, o CEA é mais que uma usina de reciclagem: é um polo comunitário de cuidado com o meio ambiente e com as pessoas. A periferia da Bom Jesus, marcada por desigualdades históricas, é também um território de potência, onde práticas sustentáveis se misturam com ações sociais profundas. “Aqui a gente tenta responsabilizar uma parte dessa industrialização inconsequente com o nosso serviço de reciclagem”, diz Henrique. “Como a Marli costumava dizer, nós somos os médicos do planeta.”

Henrique destaca que o CEA não se limita à destinação correta de resíduos. É um espaço de formação, acolhimento e geração de renda. “A nossa usina é chamada de centro de referência, não só por ser muito bem organizada, com trabalhador preparado e estabilidade trabalhista, mas por todo esse ecossistema da assistência social, da educação social, do amparo às crianças e adolescentes, filhos dos recicladores, familiares dos recicladores.”


O impacto do CEA é visível na comunidade: são vidas transformadas por meio do trabalho coletivo, da educação ambiental e do fortalecimento de vínculos. O projeto abraça a complexidade das questões sociais e atua com os pés fincados no território, onde a reciclagem se conecta à cidadania.
Para Henrique, o CEA da Bom Jesus é uma espécie de escola viva, onde saberes acadêmicos e populares se entrelaçam. É também uma prova de que é possível pensar e praticar sustentabilidade a partir das margens, com protagonismo periférico e soluções coletivas. Ele lembra com carinho o primeiro livro que leu, encontrado no meio do material reciclado: uma edição popular de A República, de Platão. “Comecei a ler aquilo com 13, 14 anos, e pensava: ‘Será que a minha avó conhece Platão? Porque ela faz exatamente o que esse cara fala, só que ela não estudou nada disso. Eu me fazia essas perguntas.”
Ao longo dos anos, o CEA expandiu sua estrutura e hoje abriga um estúdio de TV, de onde são transmitidos programas educativos e culturais exibidos em um telão instalado bem em frente ao centro, democratizando o acesso à informação. O espaço conta ainda com uma creche comunitária para filhos e filhas de recicladores, uma biblioteca, cozinha e horta coletiva que oferecem alimentos frescos e educação ambiental na prática.
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