Até o fim do mês, a 14ª Bienal do Mercosul oferece, dentro dos Programas Públicos, sessões do Cine Estalo na Cinemateca Capitólio. A curadoria proporciona aos porto-alegrenses grandes oportunidades com esta programação de entrada franca.
O circuito de filmes nacionais proposto conversa com o tema desta edição do evento internacional de artes visuais sediado na capital dos gaúchos: Estalo. “Este título é um convite para habitar o movimento e a transformação de um estado para outro. Um ser vivo age sobre o outro por meio da dança, da matéria sonora, do desenho, da pintura, do vídeo, ou da instalação; queremos reunir artistas e trabalhos interessados em ‘estalos’ relacionados a seres humanos e mais que humanos”, diz o site da Fundação Bienal do Mercosul.

Nesta terça-feira (20), foram exibidos gratuitamente os documentários As Primeiras (RJ, 2024), de Adriana Yañez, e O Bixiga é nosso! (SP, 2023), de Rubens Crispim Jr. Na próxima terça (27), a atração será uma sessão que já foi montada anteriormente na última Mostra de Cinema de Gostoso, com as produções cariocas Se eu tô aqui é por mistério (RJ, 2024), curta de Clari Ribeiro, junto do longa documental Salão de Baile, de Juru e Vitã. Completa o programa da noite o curta Vollúpya (2024), de Éri Sarmet e Jocimar Dias Jr.

Para a próxima quinta-feira (29), no mesmo horário, os títulos documentais selecionados são os paulistanos Veraneio: Uma Antologia Negra (2024), de Nalu Silva, e Terror Mandelão (2024), de Felipe Larozza e GG Albuquerque.
Fica evidente que as escolhas da curadoria perpassam temas importantes e atuais de nossa sociedade, com recortes temáticos e geográficos. Anhangabaú, documentário vencedor do Festival de Gramado em 2023, uma produção de São Paulo com realizadores gaúchos, foi exibida na terça-feira passada (13), no Cine Estalo. O longa também poderia dialogar com O Bixiga é nosso!, mas compôs uma bela sessão com A queda do céu, de Eryk Rocha e Gabriela Carneiro da Cunha, em uma noite para pensar sobre a luta pelos territórios indígenas.
Ouvindo as profecias da natureza

A entrega do Prêmio ABC de Cinematografia só comprovou o privilégio dos presentes para assistir a première de A queda do céu em Porto Alegre, promovida pela 14ª Bienal do Mercosul. Infelizmente, foram poucos os espectadores antenados para essa ocasião especial. No Brasil, a previsão de lançamento é somente para agosto, com distribuição da Gullane.
Há menos de um mês, o título dirigido por Eryk Rocha e Gabriela Carneiro da Cunha tinha saído vencedor do 16ª Festival Internacional de Cinema da Fronteira, em Bagé (RS). E, no sábado passado (17), foi o maior ganhador do Prêmio ABC, com destaque nas categorias de Fotografia, Montagem e Som em documentário.
No evento na Fronteira, o Júri da Crítica já tinha feito uma menção especial ao som da produção, assinado por Marcos Lopes (som direto), Guile Martins (desenho de som) e Toco Cerqueira (mixagem de som).
Marcos Lopes é um profissional referência desta área, formado em Realização Audiovisual pela Unisinos, radicado desde 2008 em Porto Alegre. Ele deu uma entrevista exclusiva para o Brasil de Fato falando sobre a participação no projeto da produtora Aruac Filmes, de São Paulo.
O técnico de som direto nascido em Santa Catarina já havia trabalhado em outro longa da empresa, Luz nos Trópicos, da cineasta Paula Gaitán, mãe de Eryk: “Foi um filme muito importante também e bem intenso, estreou em Berlim em 2020, um pouco antes da pandemia. Ele tem um retrato da questão indígena e das Américas, dos rios e tudo mais. É um filme que traça uma trajetória desde os Estados Unidos até o Brasil”.
Marcos participou de todas as etapas de som da produção anterior (som direto, edição, mixagem), e aí começou a parceria com a Aruac. “O diretor tinha acompanhado o meu trabalho nesse filme da Paula e me convidou para fazer A queda do céu”, relata.
Segundo o profissional, Eryk já tinha uma ideia bem clara do que queria como captação de som, que, de fato, é uma parte fundamental para a narrativa do documentário. “Principalmente nesses lugares que têm ambientes e questões de espaço muito importantes, sempre busco fazer uma captação de som além do básico (que seria captar os diálogos e as coisas que estão em frente à câmera). Eu gosto muito de compor gravações em multicanais, em canais 360 graus e tudo mais, e gravar muito. Muitas vezes sozinho, takes longos de registro, de ambientes e aspectos que tem nesse filme. Tinha muito, obviamente, é uma região muito rica, que tem uma polifonia sonora incrível.”
As filmagens foram feitas em 2021, em Watoriki, uma aldeia indígena Yanomami, em uma parte amazônica de Roraima, perto da Venezuela. “É uma região que fica a 10 dias de barco”, conta Marcos, dizendo que os desafios para gravar foram muitos.
Baseado no livro homônimo escrito pelo xamã e líder Yanomami Davi Kopenawa e pelo antropólogo francês Bruce Albert, o premiado documentário acompanha a comunidade no ritual Reahu, uma festa fúnebre que mobiliza um esforço coletivo para “segurar o céu”. O filme faz uma contundente crítica xamânica sobre aqueles chamados por Davi de povo da mercadoria, assim como sobre o garimpo ilegal e a mistura mortal de epidemias trazidas por forasteiros.
Perguntado sobre o “estalo” que este longa pode somar dentro da proposta da Bienal do Mercosul, o técnico de som direto cita um conceito mencionado no artigo de Bruce Albert intitulado A floresta poliglota: “Acho que é um dos grandes aprendizados profissionais que eu trouxe de lá, foi entender esse significado dessa palavra ‘heã’ e desse conhecimento Yanomami, que é muito bonito. Realmente, toda uma cadeia de símbolos sonoros, de avisos e compreensões da comunicação. Esse entendimento dessas trocas de conversa e de acontecimentos sonoros dentro da natureza, na fauna e flora. Isso é uma linguagem, é uma das formas que os xamãs percebem o mundo”.
Estalos de criação de consciência

Já Anhangabaú, que não fazia a primeira exibição pública na cidade, contou com casa cheia. Uma boa parte da equipe esteve presente na Cinemateca Capitólio para apresentar o filme.
Também inspirador por polifonia, o título dirigido por Lufe Bollini concorria ao mesmo Prêmio ABC 2025 de Melhor Som de longa-metragem documental. A produção da Elixir Entretenimento acompanha três experiências distintas na cidade de São Paulo em confronto com os impactos da transformação urbana: uma comunidade Guarani Mbya que lida com as pressões do crescimento da cidade, a Ocupação Ouvidor 63 no Centro e o Teatro Oficina Uzyna Uzona no Bixiga.
Além do diretor e montador que se mostrou muito feliz e disse que o filme era fruto do tesão pelo cinema, estavam na sessão na Capitólio Rafael Avancini, diretor de fotografia e produtor; Nicolas Collar, câmera e assistente de produção; Gustavo Avancini, assistente de produção, e Paola Alfamor, câmera e foto still.

Rafael Avancini destacou que estava vivendo um sonho em voltar ao seu estado e apresentar um trabalho seu na Cinemateca Capitólio, “o cinema mais charmoso de Porto Alegre”. Nicolas ressaltou a curadoria incrível da Bienal; e Paola, o caráter de registro das suas vivências como artistas.
Sobre o convite para participar do programa público da bienal, Lufe conclui que: “É um estalo de criação de consciência, de comunidades e universos que existem nas cidades, que muitas vezes não são conhecidos da grande população. E também de uma possibilidade não só temática, mas de linguagem, de trazer uma coisa que seja mais acontecimentos e menos falação”.
O cineasta ainda dedicou a projeção a Pepe Mujica, no dia de sua morte, afirmando que foi muito importante para a política latino-americana e que o audiovisual tem esse objetivo de demarcar personalidades, acontecimentos e movimentos que vão contra a hegemonia gentrificadora.
