Quando, em abril de 1996, o Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra (MST) realizou a maior ocupação da história do país, o fotógrafo Sebastião Salgado foi um dos primeiros a atravessar as cercas da fazenda Giacometi, em Rio Bonito do Iguaçu, no Paraná.
Naquela manhã de 17 de abril, já do lado de dentro da propriedade, Sebastião registrou o momento seguinte ao rompimento da corrente que mantinha fechada a porteira do latifúndio.
A imagem em preto e branco mostra um homem com a foice levantada. Atrás dele, uma multidão. Eram cerca de 15 mil pessoas que andaram, noite adentro, por mais de 20 quilômetros. Sebastião esteve ao lado delas.
“Era uma semana de muita chuva, de muito frio”, lembra Roberto Baggio, membro da direção nacional do MST, que acompanhou o fotógrafo durante os três dias de trabalho no Paraná.
Antes da ocupação, realizada nas primeiras horas da manhã, Sebastião passou dois dias visitando os acampamentos PR 158 e Chopinzinho, acompanhando a organização das mais de duas mil famílias que participaram da ocupação da terra improdutiva. “E ele passa com a gente nesses três dias, nesses dois acampamentos. Tinha reuniões, encontros, conversas, então ele vai fotografando todo esse trabalho”, lembra Baggio.

As imagens dos trabalhadores rurais estão no livro Terra, publicado em 1997 pela Companhia das Letras. A obra reúne registros feitos entre 1980 e 1996, período em que Sebastião se dedicou a registrar o cotidiano dos sem-terra e de outras pessoas, “de algum modo, desterradas”, conforme definição da sinopse publicada pela editora.
São moradores de rua, garimpeiros, presos, “gente vagando entre o sonho e o desespero”, como escreve José Saramago no prefácio da obra publicada em 1997. “E daí essas fotos se espalharam para o mundo todo”, ressalta Baggio, reconhecendo a projeção que o fotógrafo deu ao MST e a outros temas socioambientais ao longo da carreira.
Um fotógrafo socioambiental
“Na verdade, o Sebastião era muito mais do sócio do que do ambiental”, afirma o fotógrafo João Farkas. A mudança de perspectiva veio, segundo Farkas, como consequência dos anos observando a realidade de um mundo tão desigual.
“Segundo ele mesmo, ele chegou num nível de exaustão, até de depressão, chegou a ficar doente frente ao tamanho dos problemas que ele estava fotografando… E, diz ele, no depoimento público, que o que o retirou dessa desse estado negativo foi o trabalho do Gênesis”, conta Farkas.
Em Gênesis, publicado em 2013, as lentes, antes focadas nas feições, mãos e instrumentos de trabalho, passam a capturar paisagens e pessoas “inalteradas no ataque devastador da sociedade moderna e do desenvolvimento”, conforme o texto da sinopse, publicada no site do Instituto Terra, fundado por Sebastião e pela sua companheira, Lélia Wanick.
O primeiro lugar visitado foi Galápagos, no oceano Pacífico. Dali, o fotógrafo seguiu em viagem para outros cenários de difícil acesso. “Saiu dando uma volta no mundo, em lugares inóspitos, pouco frequentados pelo homem”, conta o professor e pesquisador Dante Gastaldoni. Foram oito anos de expedição, dentro e fora do Brasil.
Em 2021, a obra Amazônia apresenta as paisagens e povos da maior floresta tropical do mundo. “Ele botou a fotografia nessa causa”, afirma Gastaldoni, sobre a denúncia socioambiental presente no trabalho de Sebastião. “Primeiro, quando abraçou Gênesis, depois quando abraçou os povos indígenas não contactados da Amazônia. Ele saiu dos animais e voltou para o humano em condições de natureza (…) E aí, para falar dessas populações, ele obrigatoriamente tem que falar das queimadas, do contato com os garimpeiros, das doenças”, diz.
Na dissertação de mestrado, em 2006, Gastaldoni se debruçou sobre a obra do fotógrafo e defendeu, pela Universidade Federal Fluminense (UFF), a dissertação O suor é salgado: o projeto político-pedagógico de Sebastião Salgado.
“Quando a fotografia ganha um viés político, um viés ambientalista, ela é mais do que uma força, ela é necessária, porque ela é a comprovação daquilo que você está denunciando”, ressalta o pesquisador.
O massacre de Eldorado do Carajás
Naquela manhã de 17 de abril de 1996, a golpes de foice, os sem-terra romperam a corrente que fechava a porteira e adentraram no latifúndio de mais de 100 mil hectares no Paraná. Hoje, a área abriga um complexo de assentamentos onde os agricultores produzem hortaliças, legumes, leite e outros alimentos que abastecem os municípios da região, como Rio Bonito do Iguaçu, Quedas do Iguaçu e Laranjeiras do Sul.
“Foi justamente através da ferramenta de trabalho, a máquina fotográfica, expressa na lente, que ele faz esse belo trabalho de denúncia. O que é o latifúndio brasileiro, o que é a questão agrária brasileira, o que é a grilagem, o que são as milícias, a concentração da terra, esse bloqueio histórico da reforma agrária”, avalia Baggio.
Poucas horas depois da conquista no Paraná, em outro canto do país, 21 camponeses seriam assassinados por policiais militares, em Eldorado do Carajás, no Pará. Sebastião viajou até lá e, de dentro da boleia de um caminhão, registrou os caixões enfileirados onde estavam os corpos dos camponeses. As imagens do velório, dos caixões e das lágrimas, também compõem a obra Terra.

“Ele teve a oportunidade, digamos assim, em uma semana, de conviver, sentir, fotografar, ver, toda essa maldade, toda essa violência do modelo agrário brasileiro desde 1500. E, por outro lado, todo o trabalho dele evidenciou a necessidade da reforma agrária, de repartir a terra, de produzir comida”, avalia Baggio.
Sebastião Salgado morreu aos 81 anos nesta sexta-feira (24), em Paris, na França, onde vivia. “Eu acho que nenhum outro trabalho fotográfico atingiu a repercussão que o trabalho dele atingiu. E, portanto, o trabalho dele é extremamente importante”, conclui Farkas.