O Rio de Janeiro é o estado com mais casos de tarifa zero no país em proporção de municípios. Itaboraí, na região metropolitana, anunciou o fim da cobrança nos ônibus na última quinta-feira (22) e se tornou a 16ª e mais populosa cidade a adotar a política. Confira a lista no final da reportagem.
Antes dela, Japeri, na Baixada Fluminense, também implementou a tarifa zero no início deste mês de meio. Em entrevista ao Brasil de Fato, o pesquisador de mobilidade urbana da Universidade de São Paulo (USP) Daniel Santini explicou o histórico da política no Brasil e atribuiu os avanços, sobretudo na última década, à crise no sistema de transporte.
“As cidades que estão tentando recuperar passageiros [de ônibus] com outras estratégias, não tem conseguido resultados significativos. As únicas cidades que a gente viu reverterem a crise que marcou a última década são as cidades com tarifa zero”, disse.
Para Santini, as últimas experiências no Rio de Janeiro apontam para uma tendência de municípios cada vez maiores ampliarem o passe livre. Já são três cidades com mais de 100 mil habitantes com tarifa zero. Ao todo, quase 1 milhão de pessoas podem usufruir de ônibus municipais gratuitos no estado.
“Isso vai ganhando uma importância também porque começa a ir cercando a capital, expandindo uma área de alcance e beneficiando pessoas que estão vivendo em novos centros urbanos”, refletiu o pesquisador da USP.
Outra cidade da Baixada, Magé, deve ser a próxima a avançar no programa tarifa zero. A prefeitura, administrada pelo PP, ainda não divulgou informações de como a política será subsidiada. O veículo foi batizado de “amarelinho” em referência aos “vermelhinhos” de Maricá que circulam há mais de 10 anos.
Confira a entrevista completa:
Brasil de Fato: Comparado ao cenário do Brasil, qual a situação do Rio de Janeiro em relação ao avanço da tarifa zero?
Daniel Santini: Interessante ver que o Rio de Janeiro vai se firmando num lugar de liderança em termos de políticas de tarifa zero. Se você olhar em termos relativos, ou seja, a proporção de municípios com tarifa zero pelo total de municípios, o Rio de Janeiro é o estado hoje com mais casos. Em termos absolutos, você tem São Paulo e Minas Gerais com uma infinidade de casos, são os estados que lideram.
Mas em termos relativos, interessante ver como essa política tem avançado no Rio. E além dos números, cabe destacar também que o Rio tem referências fundamentais para construção de política de tarifa zero. A principal é Maricá. A cidade adotou a tarifa zero tem mais de 10 anos. E foi gradualmente estruturando o que hoje é a maior rede de tarifa zero do Brasil.
O que chama atenção no modelo de tarifa zero em Maricá? É uma cidade com mais de 200 mil habitantes, a maior do estado que adotou a política.
Você tem cidades mais populosas com tarifa zero no país, mas que ainda não tem a mesma estrutura, o mesmo tamanho de atendimento e capacidade de operação com qualidade que Maricá. É um caso bastante excepcional, Maricá conta com subsídios e royalties de petróleo, mas é um caso bastante interessante para se analisar possibilidades.

Então o fato de Maricá ter uma empresa estatal, na Empresa Pública de Transporte [EPT] o fato de Maricá começar a disponibilizar com o sistema de ônibus gratuito, bicicletas gratuitas, que não é algo que custa tão caro e que tem um potencial de facilitar a integração modal. Tem uma série de questões ali que estão concretizadas e que ajudam a pensar possibilidades.
O fenômeno mais recente é a expansão da política de tarifa zero em cidades de tamanho médio.
Japeri, por exemplo, tem Itaboraí avançando a caminho da tarifa zero universal [entrevista realizada antes do anúncio], mas tem uma disputa judicial entre a prefeitura e as empresas que operam [em 2023 uma decisão liminar chegou a interromper a circulação dos ônibus tarifa zero]. É parecido com o histórico de Maricá.
Agora há possibilidade de Magé adotar. É um cenário bastante interessante para acompanhar e pensar nas possibilidades que se desenham.
A implementação da tarifa zero nas cidades está relacionada a uma posição política necessariamente de esquerda?
Não mais. Hoje a gente tem um quadro um tanto diferente. Primeiro, reconhecer a história e o contexto da evolução da tarifa, porque isso é fundamental para compreender como a pauta hoje é abraçada até mesmo por políticos conservadores.
Num primeiro momento, forças progressistas conseguiram avançar e posicionar a tarifa zero como algo central no debate sobre mobilidade como direito. Por exemplo, 2013 teve uma influência muito importante para a aprovação da emenda constitucional 90, que alterou o artigo 6º da Constituição Federal, colocando o transporte como direito social.
Mesmo as forças mais institucionalizadas que tentaram implementar tarifa zero eram bastante progressistas. O principal exemplo foi o governo da então prefeita Luiza Erundina [PT] na cidade de São Paulo. Mas desse primeiro momento, houve uma mudança de conjuntura fundamental para entender a crise que já estava se desenhando e ganhou força.
As empresas de transporte passam a perder passageiros com muita velocidade. Essa curva se acentua durante a pandemia de covid-19. Isso faz com que mesmo grupos super conservadores e totalmente refratários da tarifa zero, passem a considerar essa política como uma saída possível.

Esse cenário abre espaço para as primeiras experiências e os resultados iniciais da a tarifa zero. É uma política que, via de regra, inverte a tendência de crise e declínio do transporte público. Isso, combinado com o alto índice de aprovação da política, faz com que mesmo políticos ultraconservadores que nunca defenderam políticas sociais, revissem o posicionamento e passassem a defender.
Hoje, a maioria dos casos são de cidades de direita ou mesmo extrema direita. O que é natural, porque a maioria dos municípios no Brasil são governados por essa linha.
Mas isso deixa claro que a tarifa zero não é mais uma política exclusiva de governos progressistas. Com exceção de grupos ultrarradicais, a maioria da sociedade já entendeu e naturalizou a tarifa zero como um caminho necessário.
As últimas experiências no estado do RJ foram as cidades de Mendes e Japeri, qual a sua avaliação?
São cidades de tamanho considerável que apontam aí para uma nova tendência. Num recorte desde 2023, a gente tem uma tendência de municípios cada vez maiores adotarem tarifa zero. O que antes era tido como um fato de que a tarifa zero só dava para cidades de até 50 mil, 60 mil habitantes, está sendo gradualmente quebrado.
Hoje a gente já está vendo municípios cada vez maiores adotando. Nos últimos anos tem um bom conjunto. Hoje já são 15 municípios [no Brasil] com mais de 100 mil habitantes. Japeri, em especial, entra nesse quadro.

No quadro nacional também houve avanços. O que explica a ampliação dessa política?
A gente tem uma tendência das capitais brasileiras começarem a avançar com políticas de tarifa zero maiores. Capitais caminhando gradualmente para tarifa zero parcial, algumas políticas com recorte temporal, espacial, de grupo de usuários.
Além de São Paulo, agora tem Brasília e Cuiabá com tarifa zero aos domingos e feriados. Maceió tem tarifa zero aos domingos, o tema discutido em outras cidades, e uma série de tentativas de avançar gradualmente.
Isso não é só porque nossos governantes se tornaram iluminados e de repente eles são super sensíveis a questões sociais. Isso tem a ver com a falência do sistema de financiamento tradicional.
As cidades que estão tentando recuperar passageiros com outras estratégias, não tem conseguido resultados significativos. As únicas cidades que a gente viu reverterem a crise que marcou a última década são as cidades com tarifa zero.
A gente perdeu de 2013 a 2023 cerca de 30% dos passageiros de ônibus nas 10 maiores cidades do Brasil. É uma situação bastante dramática. Acho que todo mundo deveria se importar porque há um colapso da mobilidade como um todo quando uma proporção maior de pessoas tentam se deslocar em carros e motos e menos em transporte público.
Isso se materializa em congestionamentos, mortes, poluição, no desperdício constante que a gente faz de combustível, tem um custo ambiental, uma dimensão social a se considerar. Quando você condiciona os deslocamentos a ter ou não dinheiro, seja para ter um carro, uma moto ou pagar um Uber, você tem uma dimensão social que precisa ser considerada. E tem uma dimensão humana também crescente de mortes no trânsito.
Qual a importância de cidades da região metropolitana adotarem a tarifa zero?
É interessante notar que tem uma volta de aumento de casos de tarifa zero no Brasil. 2023 foi o ano com mais casos. A gente teve 37 no país. Em 2024, por ser um ano eleitoral, houve uma redução do ritmo de adoção.

Após as eleições, a gente está vendo voltar a crescer. Até agora, em maio, já tem nove casos novos. Se Magé entrar, vai ser mais de uma cidade no Rio de Janeiro. Isso vai ganhando uma importância também porque começa a ir cercando a capital, expandindo uma área de alcance e beneficiando pessoas que estão vivendo em novos centros urbanos.
Essas novas dinâmicas podem ser muito favoráveis para ampliar acesso, ampliar a mobilidade. Talvez seja a hora da gente pensar em políticas intermunicipais, inter metropolitanas, de tarifa zero.
Que dilemas o estado enfrenta na questão da mobilidade?
Fundamental, no caso do Rio de Janeiro, olhar para violência que se mantém nas cobranças, no custo e no preço e na maneira como o sistema de transporte sob trilho está organizada. Então, é fundamental a gente rever algumas coisas que foram naturalizadas.
O preço da passagem dos trens, do Rio de Janeiro, é completamente indecente. E o que a gente viu, na verdade, foram passos na contramão.
Temos visto um encarecimento que não resolve as condições de operação que são desiguais. Se olhar a maneira como o transporte sob trilhos atendem a população nas zonas mais ricas e nas zonas periféricas, são padrões completamente distintos, isso é uma constante no Brasil.
A gente está no momento de olhar a mobilidade como um direito e isso abre espaço para pensar em subsídio integral, novas formas de custeio, na possibilidade de rever a priorização de investimento em obras viárias e redirecionar recursos que seriam usados para construção, expansão e manutenção de túneis, avenidas, pontes, para o transporte público.
Ou a gente vai por esse caminho da mobilidade como direito, ou a gente segue tentando organizar ela como um serviço, uma mercadoria. E aí vamos naturalizar uma segregação espacial nas nossas cidades.
Cidades com tarifa zero no RJ por número de habitantes
1 – Itaboraí – 240.040
2 – Maricá – 211.986
3 – Japeri – 102.149
4 – Guapimirim – 54.300
5 – Casimiro de Abreu – 48.563
6 – Paracambi – 43.656
7 – São Fidélis – 41.197
8 – São João da Barra – 38.708
9 – Tanguá – 32.858
10 – Silva Jardim – 22.026
11 – Conceição de Macabu – 21.769
12 – Cantagalo – 19.996
13 – Mendes – 18.049
14 – Carmo – 17.740
15 – Comendador Levy Gasparian – 9.044
16 – São Sebastião do Alto – 7.999
Fonte: Mapeamento coletivo de cidades com políticas universais de passe livre no Brasil (Daniel Santini). Acesse os dados completos neste link.