O Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra, MST, trabalha há 20 anos em conjunto com o governo da Venezuela em diferentes projetos. Além de ajudar na produção de sementes e contribuir com o desenvolvimento de uma técnica agroflorestal, o Movimento também tem o objetivo de formar política e teoricamente militantes venezuelanos. Por isso, o MST, em parceria com a Comuna El Panal, começou na última semana as jornadas comunais pela reforma agrária.
O formato será um ciclo de debates com seminários durante 6 meses. A ideia é ter, mensalmente, fóruns, painéis e exercícios com os jovens que estão nos bairros para discutir a reforma agrária na Venezuela.
O evento de inauguração foi realizado na Pluriversidade Pátria Grande na comuna El Panal. O espaço no bairro 23 de Janeiro atua há 3 anos na formação de jovens e tem como objetivo ampliar o acesso à educação com um viés popular. Neste contexto, professores da Pluriversidade se somaram a jornada que tem como proposta debater a produção e o uso da terra mesmo em uma comuna urbana.
Caracas tem 165 comunas. Diferentemente das organizações comunais que estão no interior do país, o uso da terra nos espaços da capital se dá de maneira diferente, com uma produção agrícola reduzida em comparação com as comunas rurais.
Cira Pascual é a pesquisadora e professora da Pluriversidade Pátria Grande e participou da jornada. Ela afirma que é preciso discutir o uso da terra em diferentes contextos, ainda mais em uma disputa política com grandes proprietários de terra.
“Essa é uma comuna urbana, mas também temos que pensar na terra porque a disputa por ela em contexto revolucionário é ainda uma questão em que temos que avançar. Temos a lei de terras, grandes avanços com os comitês de terra urbanos enquanto a propriedade da terra urbana. Mas temos que entender de uma perspectiva de classes a luta pela terra”, afirmou ao Brasil de Fato.
A proposta da jornada é dar contexto histórico do uso das terras na Venezuela e aprofundar o debate teórico sobre a produção do povo e a posse de terras. De acordo com os professores, é preciso refletir sobre a função das propriedades privadas no país para “seguir lutando pela terra”. Para os comuneros de El Panal, todo esse debate precisa ter viés socialista.
Um dos instrumentos do debate é a Lei de Terras e Desenvolvimento Agrário. Aprovada em 2001 durante o governo Chávez, a regulamentação define nova orientação para o uso das terras na Venezuela. Mesmo sem propor ampla reforma agrária, a norma se tornou o primeiro passo para discutir um novo modelo de propriedade das terras no país.
A lei estabelece as bases para desenvolvimento “rural integral e sustentável” com distribuição justa da riqueza e planejamento estratégico, democrático e participativo, eliminando o latifúndio e a terceirização. Outro ponto importante da norma é garantir a biodiversidade e a segurança alimentar, eliminando latifúndios improdutivos.
Na legislação aprovada em 2001, foi criado também o Instituto Nacional de Terras (INTi), para regulamentação, gestão e redistribuição de terras agrícolas, com poder de desapropriar terras privadas se forem consideradas ociosas ou não cultivadas, mediante indenização.
Também definiu que terras em poder do Estado, ou desapropriadas, podem ser entregues a agricultores, cooperativas ou comunidades para usufruto, ou propriedade coletiva. Foram definidos também limites para o tamanho das propriedades privadas, com as que o excederem podendo ser desapropriadas. Foi ainda criado o Cadastro Nacional de Terras, para identificar terras produtivas, ociosas ou de propriedade estatal.
A lei de 2001 também promoveu a Agricultura Sustentável, incentivou pequenos e médios produtores e proibia a posse de terras por estrangeiros.
A historiadora e pesquisadora Dulce Marrufo concorda que a lei deixa o caminho aberto, mas discutir a reforma agrária também ajuda a aprimorar e efetivar esses conceitos levantados na própria lei.
“Discutir e estudar para poder construir o que tem sido o processo de reforma agrária na Venezuela é chave, especialmente em um contexto de bloqueio econômico. A discussão em torno da reforma agrária obriga a pensar também como nos reordenamos, como podemos redistribuir e produzir do ponto de vista da produção alimentar, mas também como preservamos a natureza. Como ter uma justiça equitativa ao resolvermos problemas de moradia de uma população que requer cada vez os direitos que estão na nossa Constituição de 1999”, afirmou ao Brasil de Fato.
A parceria com o MST é fundamental nessa questão. O Movimento discute há 40 anos a reforma agrária no Brasil e se tornou referência teórica para a discussão em todo o mundo. Enquanto em território brasileiro o MST busca a reforma agrária e o assentamento das famílias sem terra, na Venezuela o Movimento contribui com formação política e técnica e busca desenvolver a agroecologia nos espaços produtivos.
Os militantes têm o desafio de desenvolver essas técnicas em espaços urbanos no país, algo que já é feito em diversos bairros no Brasil. Camilo Tamayo é integrante do grupo Alexi Vive, coletivo que está na comuna El Panal. Ele afirma que o Movimento tem tido uma participação importante também na organização produtiva de comunas urbanas.
“Nós temos duas teses. Primeiro a industrialização dos bairros. Falamos de criar indústrias capazes de processar as matérias primas que vêm da periferia da cidade, ainda mais quando temos experiências urbanas próprias. Tentamos transformar matéria prima, tentamos avançar para termos a primeira cidade comunal da Venezuela, que tenha os meios de produção primário até o processamento e a distribuição”, disse ao Brasil de Fato.
A reforma agrária na Venezuela tem obstáculos como grandes proprietários de terras no país que não aproveitam de maneira integral os espaços produtivos. A sociedade está ainda estruturada em torno da produção petroleira, que dita o uso da terra como base da produção capitalista.
Cira Pascual reforça que essa é uma lacuna que ainda precisa ser debatida pelos militantes para aperfeiçoar a lei buscando uma reforma agrária no país.
“Ainda temos questões pendentes. Há terras que estão nas mãos de grandes proprietários. É uma sociedade que foi atravessada pelo rentismo petroleiro, que gerou uma saída do campo para a cidade porque supostamente aqui teriam melhores condições. No contexto venezuelano, há muita terra que não produtiva. Não apostamos que a burguesia produza, mas que o povo organizado, com horizonte socialista, tenha a terra”, afirmou.