As imagens de terror da Favela do Moinho, em São Paulo, ao longo do mês de maio, que mostraram demolições de casas sem acordo com os moradores e principalmente violência policial, chocaram as redes nas últimas semanas. A história do provável fim da última favela do centro da capital paulista é uma faceta do processo de gentrificação em curso na área dos Campos Elíseos, levada a cabo pelo governo estadual, comandado por Tarcísio de Freitas, do Republicanos, e apoiada com entusiasmo pela prefeitura da cidade liderada por Ricardo Nunes (MDB).
Mas o que é afinal a gentrificação? Esse processo pode ser explicado como a expulsão – por diversos meios – da população trabalhadora de uma região, que vai aos poucos sendo tomada por moradores mais ricos. No caso dos Campos Elíseos, que é só um dos exemplos deste processo comum a diversas cidades no Brasil e no mundo, Tarcísio de Freitas quer transferir a sede do governo estadual para a região.
O plano é construir um novo complexo administrativo, que prevê a demolição de um terminal de ônibus e a transformação de uma praça e seu entorno em uma esplanada com novos edifícios para centralizar todas as secretarias, fundações e autarquias estaduais.
Mas para que esse plano dê certo, é preciso tirar tudo da frente. E na frente, há pessoas.
É possível argumentar que a ideia de ocupar Campos Elíseos, e não qualquer outra área com infraestrutura já construída para abrigar as estruturas do governo do estado, tenha surgido justamente para tirar as pessoas da frente. Nesse caso, especialmente as da Cracolândia.
A já histórica cena de uso de drogas sempre foi considerada um problema crônico na cidade de São Paulo. Todos os governadores e prefeitos anteriores falharam em dar uma resposta ao problema, mesmo aqueles que tentaram métodos higienistas, e foram quase todos.
Ao instalar a sede do governo nos Campos Elíseos e acabar com a Cracolândia e a Favela do Moinho, Tarcísio estará colocando em movimento o processo de gentrificação da área.
De modo geral, a retirada dos mais pobres dos bairros, aqueles considerados pela normatividade como indesejáveis, a região em questão fica atrativa para novos moradores com rendimentos mais altos. A brecha é, então, aproveitada pelo grande capital imobiliário. Para que haja novos moradores, é preciso que os imóveis antigos sejam substituídos por novos. Agora vazias, as casas antigas são demolidas para dar lugar a novas torres de apartamentos e a comércios elitizados.
Esse processo acaba por tornar a vida dos moradores de menor poder aquisitivo, que eventualmente possam ter restado, praticamente impossível. Alimentos e outros gêneros de primeira necessidade ficam mais caros. Há pressão do mercado imobiliário sobre a moradia, seja por assédio para que os moradores vendam seu imóvel, seja por aumento no preço dos alugueis, uma vez que os proprietários da região enxergam no processo uma oportunidade para aumentar seus rendimentos. O acesso a serviços públicos pode ser prejudicado (já que os novos moradores têm menos necessidade de atendimento pelo serviço público, e UBSs, escolas e Caps muitas vezes funcionam em imóveis alugados, que também sofrem com pressão imobiliária).
Como mostra o exemplo dos Campos Elíseos, a gentrificação não é um processo linear nem tem um único responsável. Em todos os casos é necessária uma colaboração intrincada entre os setores públicos e privados – lembrando que o setor privado é multifacetado e aparece no processo de diversas maneiras.
Em maior ou menor grau, o setor público sempre tem uma atuação no processo de gentrificação. Em sua ocorrência mais básica, qualquer infraestrutura urbana instalada em um novo local pode gerar algum tipo de gentrificação. Isso acontece sempre que o metrô chega em uma região, por exemplo. O processo pode não ser tão violento como o que acontece no centro de São Paulo atualmente, mas a natureza da mudança é a mesma. A proximidade com um transporte público visto como de alta qualidade faz com que o bairro fique mais interessante para moradores e consequentemente a terra fica mais cara.
Já o setor privado entra para lucrar em dois aspectos. O primeiro, mais óbvio, é a possibilidade de prestar seu serviço em uma nova área, o que significa um novo mercado. Nas grandes cidades, as terras bem localizadas são raras e qualquer oportunidade de construir ou explorar economicamente um local é valiosa. De outra maneira, as empresas privadas capturam para si o aumento do valor da terra que foi proporcionado pelo Estado. Em resumo: o Estado investe, as construtoras e outras empresas lucram.
E o que acontece com as pessoas que não conseguem – ou mesmo são expulsas – de seus antigos territórios? Bom, a resposta, dentro do sistema econômico vigente, é sempre a mesma: gastam recursos com uma mudança indesejada, têm laços comunitários cortados e se reacomodam como podem, às vezes em algum local central que está passando por um declínio, muitas vezes nas periferias e, em alguns casos, acabam na rua. Não existe controle ou acompanhamento em relação aos atingidos pela gentrificação.
O BdF está de olho nos processos urbanos que acontecem no centro de São Paulo. Estivemos lá em uma cobertura intensa do processo de remoção dos moradores da favela do Moinho, dando voz às suas histórias.
A Cracolândia também faz parte da nossa cobertura. Lançamos em maio a série documental Território em Fluxo, que traz um retrato sensível sobre a região. O atual processo de dispersão dos frequentadores do fluxo também está sob nosso olhar.