“Se os desastres são eventos traumáticos vividos pelo coletivo, sua resolução também deve se dar no nível coletivo. Não há como entender a saúde mental da população apenas a partir do atendimento individualizado ou até a medicalização da dor nesses casos”, afirma a doutora em psicologia social e institucional da Universidade Federal do Rio Grande do Sul (Ufrgs) Helen Barbosa dos Santos.
Professora da pós-graduação de psicologia da Universidade Federal de Rio Grande (Furg), Santos conversou com o Brasil de Fato RS sobre a saúde mental dos atingidos e atingidas pelas enchentes que assolaram o Rio Grande do Sul entre os anos de 2023 e 2024.
“Quando chove eu fico como um bicho enjaulado aqui dentro de casa.” “Eu não quero que sintam a minha dor. Eu quero que me ajudem a lidar com ela.” “Não tenho vontade de ajeitar a casa e nem de comprar as coisas. Nesse momento eu não tenho esperança de mais nada.” “Se for ver bem, todos nós estamos com depressão.” Essas foram as afirmações de atingidos e atingidas ouvidos pela reportagem realizada em parceria com o Movimento dos Atingidos por Barragens (MAB), em abril deste ano, pessoas que lutam para superar as sequelas deixadas pela hecatombe.

“É necessário dar voz a essas populações e criar projetos de governo para a fase de reconstrução, e obviamente de prevenção a novos desastres. O envolvimento de coletivos de mobilização social e ações terapêuticas de saúde mental em grupos são estratégias importantes”, destaca a professora que durante o ano passado atuou em um abrigo na zona sul de Porto Alegre.
Brasil de Fato RS : Como eventos climáticos, em especial, casos como as enchentes, afetam a saúde mental? Na perspectiva de cuidado com a pessoa qual seria o tratamento mais adequado?
Helen Barbosa dos Santos: As pessoas, principalmente vítimas primárias, que são pessoas diretamente atingidas devido a perdas materiais, econômicas, sociais, de saúde e até mesmo luto por perda de pessoas próximas vivenciam efeitos psicossociais associados ao trauma. E esses efeitos podem perdurar por muito tempo, principalmente no que se chama de fase de reconstrução, que pode perdurar de seis meses a três anos após a situação de desastre.
A sensação de insegurança em relação ao futuro, injustiça, falta de estabilidade em torno da moradia faz com que sintomas de depressão e ansiedade permaneçam. É necessário o acesso à saúde mental dessa população, de profissionais capacitados pelo Sistema Único de Saúde (SUS), e saúde suplementar acerca da atenção psicossocial de pessoas diretamente atingidas pelos efeitos climáticos. Precisamos sair da lógica voluntarista e assumir a educação permanente a profissionais de saúde, e a inserção desse tema como parte obrigatória nos currículos de graduação.
Além do acesso a serviços e profissionais de saúde mental capacitados pelo SUS, precisamos entender que se os desastres são eventos traumáticos vividos pelo coletivo, sua resolução também deve se dar no nível coletivo. Ou seja, não há como entender a saúde mental da população apenas a partir do atendimento individualizado ou até a medicalização da dor nesses casos.

Sobretudo, devemos entender que propiciar o cuidado em saúde mental nesses casos é promover políticas públicas de proteção em territórios precarizados, o apoio financeiro e social a famílias que até hoje sofrem as perdas inúmeras. E até mesmo insegurança de moradia e alimentação, como é o caso, em Porto Alegre, no bairro Sarandi, ou no município de Eldorado do Sul.
É necessário dar voz a essas populações e criar projetos de governo para a fase de reconstrução, e obviamente de prevenção a novos desastres. O envolvimento de coletivos de mobilização social e ações terapêuticas de saúde mental em grupos são estratégias importantes.
A sensação de insegurança em relação ao futuro, injustiça, falta de estabilidade em torno da moradia faz com que sintomas de depressão e ansiedade permaneçam
Nem todas as pessoas atingidas desenvolverão Transtorno de Estresse Pós-Traumático. Dependerá das circunstâncias vividas e da rede de apoio disponível, bem como se essa pessoa perdeu ou foi afastada de seu acompanhamento de saúde mental. Como sou da área da psicologia social entendo que a dimensão do trauma é algo que irrompe o tempo e a noção de humanidade do próprio sujeito. E acredito que a dimensão do trauma precisa ser aceita, obviamente sem apassivar o sujeito do sofrimento, mas entender o trauma como uma situação coletiva, para além do entendimento nosológico de um diagnóstico para tirar da naturalização um evento extremo que poderia ter sido evitado.
De todo modo, o trauma, entendido para além de um diagnóstico e pensado como uma situação que rompe com qualquer humanidade e segurança de vida, só pode ser digerido e encontrar um lugar de resolução simbólica quando damos às pessoas a segurança de que essa foi uma tragédia isolada no tempo, e não de que a revivência do trauma pode vir a qualquer momento, que a sensação de tragédia é iminente.
De que forma eventos como esses potencializam problemas pré-existentes nas pessoas, como depressão, ansiedade?
Pessoas que possuem demandas de atenção psicossocial possuem a tendência de ter um quadro piorado diante de eventos climáticos. Em alguns casos essas pessoas perdem o acesso a seus tratamentos de saúde, como a medicamentos e psicoterapia, por exemplo. A pessoa vê sua rotina, objetos pessoais completamente prejudicados e isso desestabiliza o sentimento de controle sobre o próprio corpo e futuro.
Nossa equipe conversou com atingidos pela enchente no Vale do Taquari. Em um dos casos a pessoa está frequentando um psiquiatra que receitou vários medicamentos. De acordo com a pessoa, nos momentos de crise ela (paciente) redobra a quantidade dos medicamentos por conta. O que deveria ser feito em casos como esse, quando a medicação parece não surtir efeitos?
Um dos aspectos muito criticados por profissionais, pesquisadores da área de gestão de cuidado em saúde mental em situações de desastres é o quanto ocorre uma tendência à medicalização excessiva em torno das pessoas atingidas por esses eventos. Há uma tendência de que diversas estratégias de cuidado acabam por colocar as pessoas num lugar de muita passividade ao invés de escutá-las. É preciso falar sobre o trauma, não apenas de maneira individualizada, mas coletiva, é preciso compartilhar a dor, senti-la na medida do possível para que essa experiência seja reconhecida e digerida.
Assim, apenas o uso de medicamento não ajuda a elaborar as múltiplas perdas vividas. É necessário um acompanhamento sistemático que envolve o acesso a outras políticas públicas para além da saúde, como assistência social, acesso a moradia, segurança alimentar, etc.
Ainda dentro da questão da saúde mental dos atingidos há aqueles casos de pessoas que tiveram dificuldade de voltar para as suas casas mesmo elas estando de pé….
É uma temática mega importante, porque é o que eu digo na minha entrevista, na fase de reconstrução, que é essa fase, quando a emergência já passou, quando as pessoas começam a se acostumar com a situação, as pessoas de fora, e aí a população fica abandonada, fica à mercê dos bons ventos, ou dos não bons ventos, literalmente. E Porto Alegre está vivendo isso, um descaso muito, muito gigante, em relação às novas chuvas que emergem e já alagam diversas ruas.
Apenas o uso de medicamento não ajuda a elaborar as múltiplas perdas vividas. É necessário um acompanhamento sistemático que envolve o acesso a outras políticas públicas para além da saúde
Percepção de risco é um conceito bem interessante, eu não coloquei na entrevista, e que um aluno meu, que eu estou orientando na graduação da psicologia, vai trabalhar na questão do conceito de percepção de risco, que já vem dos estudos em desastres, junto com essa noção de futuro, dimensão de futuro. Porque é interessante a gente pensar uma certa comunidade vivendo uma determinada realidade, como é que modifica a tua percepção sobre o futuro, do que é risco, do que não é risco, do que é necessário fazer, dos medos, dos anseios.

Qual a importância de um acompanhamento psicológico juntamente com o psiquiátrico? E da sua periodicidade?
Cada pessoa tem seu tempo diante de situações de luto que envolvem não apenas perda de familiares e amigos, mas de recursos materiais, animais de estimação, moradia, etc. Uma outra crítica necessária é entender que figuras políticas, doações, acesso a serviços ocorrem muito diante da fase de crise e emergência, que são os primeiros dias ou mês após uma tragédia. Com o tempo as pessoas e os recursos se retiram do espaço social, deixando as pessoas solitárias e inseguras.
Temos memória curta diante das tragédias, pois são inúmeras e costumam ser espetacularizadas na ampla mídia, no entanto, as pessoas continuam com suas dores e suas demandas sociais. Portanto, os acompanhamentos devem ser sistemáticos e sua durabilidade associada às necessidades de cada sujeito e território. Pensar a saúde mental também nos espaços educacionais como escolas, associações de bairro, equipes de saúde da família é de grande importância.
Que impactos pode haver para a saúde mental quando a pessoa não procura ajuda?
Medicalização excessiva sem acompanhamento pode pior os quadros de sofrimento psicossocial. Digo psicossocial visto que principalmente em situações de traumas coletivos não há como pensar saúde mental de maneira não integral e multifacetada. Há também uma tendência de piora e cronificação dos sintomas. Dificuldade de investimentos em projetos de vida, auto cuidado com a saúde física e em algumas situações de risco ideação suicida, dependência em substancias psicoativas.
Se não tem uma rede do SUS de saúde mental naquele território que possa acolher, ou a pessoa tem uma dificuldade pessoal de buscar ajuda, a tendência é que ela não fique bem mesmo. Então, ela precisa procurar ajuda.
Toda a cidade tem sido prejudicada e mesmo vítimas secundárias, que não foram diretamente atingidas, sofrem os efeitos da segurança em relação ao futuro
A gente tem aí serviços de saúde mental, não digo nem na atenção básica, que realmente dependendo do posto de saúde, da equipe de saúde de atenção básica, de equipe de saúde da família, às vezes é mais difícil ter um atendimento em saúde mental. A maioria das Escolas de Educação Complementar (ECFs) não tem psicólogos, por exemplo. E às vezes não se fazem grupos de apoio.
Porque o ideal seria trabalhar com grupos de apoio nas equipes de saúde da família, em relação a essas questões, seria perfeito. Mas às vezes não tem, então, o ideal seria procurar um centro de atenção psicossocial, nesses casos, que inclusive trabalha com questões mais graves, quando tem tendência ao suicídio, à depressão, realmente muito crônica.
Consideração final:
Podemos pensar muito no papel do poder público. Cuidar da saúde mental da população é cuidar do corpo da cidade. Não há qualidade de vida sem isso. Antigamente acreditávamos que algumas populações eram atingidas e outras não. No entanto toda a cidade tem sido prejudicada e mesmo vítimas secundárias, que não foram diretamente atingidas, sofrem os efeitos da segurança em relação ao futuro.
Quando toda cidade for atingida, sem distinção entre classe social, territórios ditos seguros e inseguros, a relação de empatia e auxílio de doações e voluntários não será possível. Todos estarão lutando pela sua sobrevivência. Não podemos chegar nesse nível. Precisamos cuidar do corpo da cidade, começando pelas populações que ainda sofrem os efeitos das enchentes e pensar num planejamento urbanístico que previna novas tragédias urbanas.
Confira o programa Mudanças Climáticas e Eventos Extremos: Estamos preparados?, que tratou do tema ‘Qual a relação entre desastre e saúde mental?’, exibido em 25 de outubro de 2023:
* Com a colaboração de Victória Holzbach/MAB
