O Brasil de Fato publica hoje mais um artigo de uma série sobre desinformação, fenômeno que desafia a integridade do debate público e afeta a democracia, a ciência e os direitos humanos. A publicação é fruto de uma parceria com o Instituto Brasileiro de Informação em Ciência e Tecnologia (Ibict), o International Center for Information Ethics (ICIE) e a Rede Nacional de Combate à Desinformação (RNCD).
Em junho de 2024, o então presidente da Câmara dos Deputados, Arthur Lira (PP), enterrou o PL 2630/2020, conhecido como “Lei das Fake News”, sob a justifica de que o projeto de lei estava “contaminado” pela narrativa de que criaria a censura na legislação brasileira. Em outras outras palavras, manchado pela desinformação difundida a respeito dele pela extrema direita, pela bancada evangélica e por lobistas das big techs. Em seu lugar, Lira instituiu um grupo de trabalho para tratar da regulação das plataformas, medida comumente usada quando não se deseja solucionar um problema. Quase um ano depois disso, de fato, o número de reuniões realizadas pelo grupo foi zero, bem como o número de convidados ouvidos, ou de requerimentos protocolados.
Em lugar da discussão de alto nível prometida por Lira, houve uma proposta alternativa, apresentada pelos deputados federais Silas Câmara (Republicanos), então líder da frente parlamentar evangélica, e Dani Cunha (União), filha do ex-presidente da Câmara cassado e condenado por corrupção Eduardo Cunha.
O texto dessa proposta, que se tornou o PL 4691/2024 tem 11 páginas e 22 artigos, contra 48 páginas e 60 artigos do antigo PL 2630, e com apenas 5% de coincidência entre ambos. Portanto, boa parte da deliberação pública acumulada para a redação do relatório do deputado Orlando Silva no qual se embasou o primeiro projeto, foi descartada pelos proponentes do PL 4691.
Do texto anterior, a nova proposta manteve basicamente os artigos 7º e 8º, que obrigam as plataformas a “identificar, analisar e avaliar diligentemente os riscos sistêmicos”, visando a “mitigação razoável, proporcional e eficaz” dos mesmos. Na prática, para cumprir este objetivo, os serviços baseados em algoritmos deverão:
1 – Adaptar a concepção, características ou funcionamento dos serviços, incluindo os sistemas e interfaces;
2 – Adaptar os termos de uso e os critérios e métodos de aplicação;
3 – Adaptar os processos de moderação de postagens, incluindo a rapidez e a qualidade do processamento de notificações e quando necessário aplicar remoção do material postado;
4 – Testar e adaptar os sistemas algorítmicos, incluindo os sistemas de priorização e recomendação, de publicidade e propaganda online;
5 – Reforçar processos internos, recursos, testes, documentação ou supervisão de qualquer uma das suas atividades;
6 – Adaptar a interface para prover mais informação aos usuários;
7 – Tomar medidas específicas para proteger os direitos de crianças e adolescentes.
As provisões acima estavam presentes no PL 2630. Mas no projeto original, elas vinham acompanhadas de obrigações – dentro do conceito chamado “dever de cuidado” – que previam a moderação por iniciativa da própria plataforma publicadora em caso de conteúdos que recaíssem nas seguintes infrações:
- crimes contra o Estado Democrático de Direito;
- atos de terrorismo e preparatórios de terrorismo;
- crime de induzimento, instigação ou auxílio a suicídio ou a automutilação;
- crimes contra crianças e adolescentes e de incitação à prática de crimes contra crianças e adolescentes ou apologia de fato criminoso ou autor de crimes contra crianças e adolescentes;
- crime de racismo;
- violência contra a mulher;
- infração sanitária, por deixar de executar, dificultar ou opor-se à execução de medidas sanitárias quando sob situação de Emergência em Saúde Pública de Importância Nacional.
Legislação sem dentes
A eliminação do dever de cuidado torna o PL 4691 uma legislação sem dentes, desprovida de mecanismos afiados para debelar a difusão de desinformação e outras atividades antissociais na internet. As obrigações de moderação previstas pela nova proposta, como aparece em seu décimo artigo, basicamente refletem práticas já adotadas pelas plataformas há anos, por serem fundamentais para a manutenção de seus negócios.
Por outro lado, também está ausente do PL 4691 o capítulo III do PL 2630, que obrigava as plataformas a notificarem usuários cujas publicações fossem restringidas ou eliminadas, bem como adotar um “devido processo” na moderação, prevendo inclusive protocolos para recursos contra as decisões.
É irônico o abandono dessas provisões, pois, atualmente, a censura temida pelos “paladinos” da liberdade de expressão irrestrita já existe, mas está nas mãos apenas das próprias empresas. Muitos casos de supressão de publicações por equívocos ou sem qualquer explicação em redes como Instagram ou YouTube se acumularam ao longo dos anos, então o PL 2630 ampliaria as salvaguardas aos direitos dos usuários.
A nova proposta também carece de outros avanços previstos no PL 2630, como a transparência nos algoritmos de recomendação, a concessão de acesso a dados para pesquisadores, a realização de auditorias externas, o reconhecimento dos perfis de servidores do alto escalão como informação pública e a criação do crime eleitoral de desinformação, entre outros.
Ao mesmo tempo, resgata dispositivos de identificação de indivíduos que órgãos de segurança e lobistas do setor bancário vêm tentando instituir há duas décadas, quando o ex-senador Eduardo Azeredo apresentava projetos para cadastro de usuários da internet. Também institui uma contribuição de 5% do faturamento das plataformas para o Fundo de Universalização dos Serviços de Telecomunicações (FUST), o que à primeira vista pode parecer positivo, mas no fim das contas favorece as próprias empresas, ao ampliar a população usuária de seus serviços.
Além disso, enquanto o PL 2630 apontava o Comitê Gestor da Internet (CGI.br) como órgão regulador, o PL 4691 indica a Anatel e a Autoridade Nacional de Proteção de Dados (ANPD). Ora, em abril de 2025 o presidente da Anatel colocou a agência reguladora à disposição para atuar na regulação das plataformas, durante uma audiência pública do Conselho de Comunicação Social do Congresso na qual defendeu a aprovação do PL 4691. Ainda em abril, tramitações do PL 4557/2024, no qual o mesmo Silas Câmara propõe submeter o CGI.br à Anatel, motivaram o Comitê a emitir nota pública refutando a proposta.
A mudança seria trágica, pois, enquanto o CGI.br tem um histórico de abordagem crítica e defesa dos direitos dos cidadãos nas redes digitais, a Anatel, como as demais agências, é reconhecida pela negligência no desempenho de suas funções de fiscalização e episódios de captura regulatória.
Observando as peças no tabuleiro – lobby das big techs entre parlamentares da extrema direita e bancada da bíblia para enterrar o PL 2630; apresentação do PL 4691 por deputados federais alinhados a Bolsonaro e aos evangélicos; tentativa de submeter o CGI.br à Anatel; e autodeclaração da Anatel como reguladora ideal da internet no Brasil – pode-se perceber que, no momento, o interesse público se encontra em xeque no debate sobre a responsabilização das plataformas digitais.
Se o cenário atual evoluirá para um xeque-mate por parte de parlamentares comprometidos por lobistas e interessados na desordem informacional, ou não, apenas a sociedade civil pode responder.
* Marcelo Träsel é jornalista graduado pela Universidade Federal do Rio Grande do Sul (Ufrgs), mestre em Comunicação e Informação pela mesma universidade e doutor em Comunicação pela Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul (PUCRS). Entre 2007 e 2016, foi docente da Faculdade de Comunicação (Famecos) da PUCRS. Atua desde 2016 como professor no curso de Jornalismo e desde 2018 no Programa de Pós-Graduação em Comunicação da Ufrgs, onde coordena o grupo de pesquisa Jornalismo Digital (JorDi/CNPq). É afiliado da Rede de Pesquisa em Tecnologias e Jornalismo Digital (JorTec), vinculada à Associação Brasileira de Pesquisadores em Jornalismo (SBPJor). Presidiu a Associação Brasileira de Jornalismo Investigativo (Abraji) no biênio 2020-21.
**Este é um artigo de opinião e não necessariamente representa a linha editorial do Brasil do Fato.