Ninguém se salva sozinho. Essa talvez seja a principal premissa da série O Eternauta, adaptação recente da Netflix para a famosa HQ argentina publicada pela primeira vez, entre 1957 e 1959, e posteriormente ao longo da Ditadura Civil-Militar, nos anos 1970. Seu autor, Héctor Germán Oesterheld, chegou a compor o movimento de guerrilheiros revolucionários Montoneros e foi detido clandestinamente em 1977, enquanto finalizava uma sequência da obra original, junto com o artista Francisco Solano López.
Oesterheld consta na lista de desaparecidos políticos, assim como suas quatro filhas, duas delas grávidas, uma violência extrema contumaz do regime de exceção daquele país.
‘O Eternauta’ nunca tinha sido adaptado para o audiovisual até agora. Com um orçamento de mais de US$15 milhões, a produção mostra uma Buenos contemporânea inesperadamente fustigada por uma neve mortífera. E como na sua trajetória anterior nos quadrinhos, encontra agora uma Argentina lutando contra a opressão de forças de extrema direita, e o desmonte do estado de bem estar social, pela caneta ultraliberal de Javier Milei.
Alguns cientistas nesta semana adotaram o visual das personagens da série para protestar contra os cortes nos financiamentos de pesquisas e congelamentos de contratações. O orçamento para pesquisa no país, em 2025, será o menor da história, cerca de 0,152% do PIB.
Para a cultura dos argentinos, a máscara e roupa de mergulho são sinônimos de luta pela democracia.
Trama apocalíptica sul americana
Ambientada em Buenos Aires, a trama começa com uma misteriosa nevasca tóxica que mata instantaneamente qualquer um que entre em contato com ela. O protagonista, Juan Salvo (Ricardo Darín), sobrevive ao lado de sua família e um grupo de amigos ao se isolar dentro de casa.
Além da neve tóxica que mata ao toque ou ao ser respirada, todos os aparelhos eletrônicos modernos colapsam. Apenas carros antigos, rádios amadores e tecnologias mais arcaicas funcionam.
Tudo começa numa tradicional noite de truco entre Juan Salvo e os amigos. Depois de constatar a toxicidade da neve e mesmo sem entender muito bem o que se passa, o protagonista sai em busca da esposa e filha, numa Buenos Aires deserta e hostil, com grupos de saqueadores e forças misteriosas à espreita.
Aos poucos, em um contexto de sobrevivência a qualquer custo, as personagens vivem o dilema de se orientar pelo egoísmo ou pela solidariedade.
Não é comum vermos tramas de ficção científica se passando em lugares tão próximos de nós, pelo menos não em produções da grande indústria. A exceção talvez seja os planos de uma São Paulo devastada em Ensaio sobre a Cegueira (2008), de Fernando Meirelles. Nesse sentido, a produção da Netflix expande para o grande público uma obra já entranhada no imaginário latino.
Inspiração de resistência
Rodada durante a pandemia, a série preserva o tom político da obra original, com críticas ao autoritarismo, à repressão, atualizando esses temas para o contexto latino-americano contemporâneo. Visualmente interessante, O Eternauta combina ficção científica, drama humano e alegoria política em uma história de sobrevivência e resistência.
O sucesso da série é uma bela homenagem à memória de Héctor Germán Oesterheld e suas filhas. Sua mensagem continua ressoando e inspirando levantes de esperança mesmo quando tudo parece impossível de ser transformado.
*Marcos Vinícius Almeida é escritor, jornalista e redator. Mestre em Literatura e Crítica Literária pela PUC-SP, colaborou com a Ilustríssima da Folha de S. Paulo e O Globo. É autor do romance Pesadelo Tropical (Aboio, 2023).