“Para os africanos, o rio era uma mulher que engravidava com as grandes chuvas. A verdade era esta: ambas as margens eram habitadas por gente que, todas as noites, rezava aos mesmos deuses. O rio escutava as preces e voltava a ser nuvem.” O trecho é do livro mais recente do escritor moçambicano Mia Couto, que esteve participando do Festival Fronteiras, em Porto Alegre.
Durante a sua passagem pelo estado, o escritor participou também de evento do Fórum Democrático de Desenvolvimento Regional, intitulado Diálogo com Mia Couto: cultura e crise climática, realizado na última quinta-feira (29). O debate faz parte das discussões promovidas pela gestão 2025 da Assembleia Legislativa do Rio Grande do Sul, direcionadas ao Pacto RS 25, o Crescimento Sustentável é Agora.
O encontro que teve como mediadores o presidente da Assembleia Legislativa, Pepe Vargas (PT), e a reitora da Universidade Federal do Rio Grande do Sul (Ufrgs), Márcia Barbosa, contou com a apresentação do gaiteiro popular Lipsen, conhecido como Gaiteiro do Brique da Redenção. Em sua fala, Couto, que também é biólogo, jornalista e atuante na causa ambiental, abordou temas culturais, existenciais e ambientais, propondo um novo tipo de escuta, não apenas da Terra, mas também das pessoas que a habitam.

Para o autor de A Cegueira dos Rios, a separação entre seres humanos e natureza é uma invenção equivocada. “Na maioria das línguas indígenas de Moçambique não existe uma palavra para ‘natureza’, meio ambiente. Isso não é ausência – é outra forma de compreender o mundo. Nós somos a natureza”, afirmou.
Couto também destacou o papel do Brasil na luta ambiental. “Este país sempre me inspirou. Não só pela sua biodiversidade, mas porque tem gente que lutou, e ainda luta, por um Brasil que precisa ser partilhado com o mundo. Falo de Chico Mendes, que deu a vida por essa causa, e de Marina Silva, que representa essa luta muito antes de ocupar qualquer cargo.”
Em mais de uma ocasião, o escritor evocou o elemento água como símbolo de instabilidade e força. Relembrou sua infância na cidade Beira (Moçambique), onde o chão se tornava água nas marés altas. “Minha terra natal era, na verdade, uma água natal. Aprendi desde cedo a viver sobre um chão líquido.” A água, segundo ele, é mais do que um elemento físico, é símbolo, é vida: “Somos feitos de água. Ela é mais do que ela própria. Não podemos falar das coisas da natureza como se fossem coisas. Elas são entidades, são vivas.”

Em um dos momentos da conferência, ele narrou o diálogo com uma senhora moçambicana, que consta no livro recente, a quem perguntou o nome de um rio. Ela respondeu: Matiwa Nyingba, que em sua língua local significa “a água que engravida”. O que para o escritor soava como poesia, para ela era uma expressão comum, era como ela estava designando o rio, como uma mulher que ciclicamente inunda de si própria.
“Sou da área da ecologia vegetal, não é possível eu olhar para uma árvore e não entender que aquilo não é só uma entidade. Ela não existe por si só, ela existe porque há ali uma simbiose de milhões de outros seres. O mar, por exemplo, não é uma entidade isolada. É um espaço de vida múltipla: constrói o céu, o chão, o sol. É um lugar de origem de tudo.”
A palavra como território
“Eu fui feito a partir de histórias. Minha história é de imigrantes”, contou. “Meu pai emigrou por razões políticas, fugiu do regime de Salazar, em Portugal.” Ao falar de sua trajetória, Couto relembrou o exílio da família portuguesa em Moçambique e a ausência de figuras familiares como avós e tios.
“Meus pais faziam algo admirável: contavam histórias desses ausentes como se estivessem presentes. Meus avós habitavam a nossa casa, e nós os escutávamos como se fossem uma presença física. Isso nos deu sentido.”
Para Couto, o problema começa na linguagem. “Chamar a natureza de ‘recurso’ ou ‘patrimônio’ já é um abuso. Já tomamos posse de algo que não nos pertence.” A forma como nomeamos o mundo reflete e alimenta uma visão hierárquica, em que o ser humano se coloca acima de tudo. “A ciência ajudou a criar essa lógica em que os outros sabem menos, valem menos.”

Crise climática como crise simbólica
Segundo o escritor, é essencial compreender que a crise climática é mais do que ecológica, é simbólica. “Se o discurso é apocalíptico, os jovens vão se sentir derrotados. Vão achar que não vale a pena fechar a torneira ou apagar a luz. Mas o grande consumo de água acontece noutros lugares.” Para Couto, é fundamental nomear os verdadeiros responsáveis pela destruição ambiental: grandes indústrias e interesses econômicos, não o cidadão comum.
“O discurso das alterações climáticas serve, muitas vezes, como uma forma de desculpabilizar certa má governação.” Couto afirma que decisões como a remoção de populações inteiras de determinadas regiões precisam ser tomadas com responsabilidade, e não com base em interesses escusos. “É preciso tirar pessoas dos lugares onde estão? Às vezes, sim. Mas isso tem que ser feito com respeito, com tempo, com escuta e construção de confiança.”
No contexto moçambicano, exemplificou, há situações em que é necessário deslocar comunidades. “Infelizmente, na maioria das vezes, isso acontece por negócios, interesses privados. Mas há casos em que, sim, é preciso salvar essas pessoas – porque a situação mudou no mundo.”
O escritor defende que a resposta à crise climática precisa estar centrada nas pessoas, especialmente nas mais vulneráveis. “Temos que escutar o lamento da Terra, sim. Mas, em primeiro lugar, temos que escutar o lamento das pessoas, das pessoas que são violentadas, das pessoas que deixam de ter lugar no mundo.”
Sustentabilidade e simbiose
Couto criticou ainda o esvaziamento da palavra “sustentabilidade”, apropriada por governos e grandes corporações. “Não há governo no mundo que não fale em sustentabilidade, não há força política de esquerda ou de direita que não adote esse discurso. Há uma espécie de apropriação do discurso ambientalista em nome da mesma ganância pelo lucro.”
A simplificação do debate ambiental também foi alvo de crítica. “Tudo virou ‘mudança climática’. Mas a miséria é um problema ambiental. A exclusão social, a perda da biodiversidade, a desertificação – tudo está ligado.”
O escritor também alertou para os riscos da desumanização trazida pela glorificação da tecnologia. “O que me preocupa não é a inteligência artificial como ferramenta, mas o empobrecimento da nossa visão sobre o que significa ser humano. Estamos nos desumanizando.” Segundo enfatizou os seres humanos não podem ser entendidos com uma lógica mecanicista. Tem que ser uma lógica orgânica. “Não somos algoritmos. Estamos glorificando a máquina e empobrecendo a visão que temos de nós mesmos.”
Para ele, o medo coletivo atual é sintoma dessa desconexão. “Todos estamos com medo. Ricos, pobres, países do Norte ou do Sul, partilhamos essa condição. Falta escuta. Até para o diferente. Até para os nossos inimigos políticos.” Conforme observou, as notícias frequentemente reforçam a ideia da catástrofe iminente. “Isso é uma espécie de retroalimentação do medo para nos paralisar. Fabrica-se o medo para desumanizar o debate sobre o clima. É preciso aprender a escutar o diferente e a valorizar as pequenas conquistas. A esperança nasce quando a vida tem sentido.”
A literatura, nesse contexto, também está sendo desafiada. Em meio à concorrência das plataformas de streaming, a leitura precisa resgatar sua origem encantatória. “A literatura nasce do desejo de contar uma história. Não é só uma disciplina acadêmica. Antes dela, há o gesto de partilha, de dar sentido à vida.”

A importância de escutar o outro
Couto reforçou a necessidade de restaurar a simbiose entre seres humanos, entre espécies, entre o visível e o invisível. “Somos só 10% humanos. Os outros 90% são vírus, bactérias, domínios do invisível. Eles não são inquilinos, são parte de nós.” Aceitar essa alteridade dentro de si, segundo ele, ensina a aceitar o mundo de outra maneira. “Ensina que o que é estranho não é uma ameaça.”
Além disso, complementou, a simbiose exige a capacidade de escutar e se colocar no lugar do outro. “O que nos fez evoluir não foi a competição, como sugere Darwin. Foi a simbiose. Foram os acertos, as trocas, as alianças.”
Por fim, ele relembrou a força do cuidado simbólico: a cura que não é física, mas afetiva. “Quando uma criança mostra o machucado e recebe um beijo da mãe, há ali uma cura infinita. Precisamos reinstalar essa confiança de que algo, uma história, uma relação, uma escuta, pode nos salvar.”
Voltando à questão da água pontuou: “Não é o rio que está nos incomodando. Somos nós que incomodamos o rio. Não dialogamos com ele. Em Moçambique, se diz que entre o rio e a chuva há uma relação de mãe e filho. Mas esquecemos disso. Já não sabemos o que é um rio.”
