Na tarde desta segunda-feira (2), 62 organizações – entre movimentos populares, associação de ambulantes e entidades de direitos humanos – e 12 mandatos parlamentares lançaram uma campanha pelo fim da Operação Delegada em São Paulo. O convênio permite que Policiais Militares (PM), com a farda e a arma da instituição, sejam contratados pela prefeitura para atuar no combate ao comércio ambulante enquanto estão de folga do serviço para o governo estadual.
A campanha se articulou a partir da reação ao assassinato do trabalhador ambulante senegalês Ngagne Mbaye no último 11 de abril no bairro do Brás. Ele foi morto a tiros por um policial militar atuando na Operação Delegada. Dezesseis dias depois, outra comerciante da região, Edineide Aparecida Rodrigues, foi executada com um tiro na cabeça quando saía para trabalhar na Feira da Madrugada. Testemunha protegida pela Estado, Edineide depôs meses antes à Polícia Civil sobre um esquema de milícia e extorsões no Brás.
Referida durante o evento como a “institucionalização do bico policial” e a “expansão da lógica militarizada para a repressão ao comércio ambulante”, a Operação Delegada foi criada em 2009, mas está em crescimento sob a gestão de Ricardo Nunes (MDB) na prefeitura e Tarcísio de Freitas (Republicanos) no governo de São Paulo.
De 2022 a 2025, as vagas do convênio ofertadas para policiais militares por dia dobrou, passando de 1.234 para 2.400. Só neste primeiro semestre de 2025, 210.320 vagas foram preenchidas, segundo a prefeitura. Apenas na região central da cidade o efetivo é de 1.500 PMs todos os dias, o que levou a defensora pública Fernanda Balera a definir o Brás como “uma área sitiada”.
De acordo com ambulantes ouvidos pelo Brasil de Fato, a violência praticada por agentes da Operação Delegada se acirra desde 2023. Nos últimos dois anos o Centro Gaspar Garcia de Direitos Humanos, uma das entidades que organiza a campanha, registrou ao menos 23 casos violentos da PM contra ambulantes no Centro da capital paulista.
Wilson Barbosa dos Santos veio de Salvador (BA) para São Paulo (SP) há sete anos e atualmente vende meias no Brás. “De dois anos para cá, a situação ficou muito apertada. Não só apreendem as mercadorias, mas nos agridem. Se eu não fizesse outras atividades para complementar minha renda, eu estaria morando na rua”, relata. “Onde não tem propina, eles agridem”, sintetiza.
Mamadou Ka, ambulante senegalês que ajudou a família de Ngagne a recuperar as mercadorias retidas pelo Estado no dia do assassinato, diz que o sofrimento vivido por imigrantes africanos no Brasil não cabe na sua fala.
“O mundo inteiro considera que o Brasil tem coração de mãe, que abraça todo mundo. Mas quando abre a porta para a gente entrar, pisa na nossa cabeça. A gente é imigrante, preto e está cansado do racismo que a gente sofre aqui através da Operação Delegada”, afirma Mamadou, que vive no Brasil desde 2015.
“A tristeza que a gente está passando é enorme. Ano passado mataram nosso irmão Talla Mbaye. Este ano mataram Ngagne. Ano que vem podem matar Mamadou. Ninguém sabe onde vai parar. Peço, por favor, nos ajudem a acabar com a Operação Delegada”, enfatizou Mamadou. No próximo 11 de julho, quando completam três meses do assassinato de Ngagne, haverá uma manifestação no Centro de São Paulo.
Para a vereadora Luana Alves (Psol), a parceria entre os governos municipal e estadual “foi criada para passar dinheiro do município para a cúpula da Polícia Militar e massacrar trabalhador. Não é possível reformar a Operação Delegada, não tem forma de ela ser justa”.
Autora de uma proposta de Comissão Parlamentar de Inquérito (CPI) sobre a Operação Delegada na Câmara Municipal, Luana Alves defende uma política de regularização do comércio informal. “Todos os ambulantes que eu converso, todos dizem a mesma coisa: ‘Eu queria me regularizar, queria ter oportunidade’. Por que a prefeitura não retoma a regularização? Ou é negligência ou é conveniência. E com a não regularização quem está ganhando são as milícias”, denuncia.
Após o assassinato de Ngagne, a Defensoria Pública do Estado de São Paulo foi ao Brás em 15 de maio e coletou 31 depoimentos de trabalhadores ambulantes. Entre eles, 90% afirmaram já ter sofrido violência de agentes da Operação Delegada. Apenas 20% trabalham formalizados, por meio do Termo de Permissão de Uso (TPU) ou programa Tô Legal. São generalizados os relatos de dificuldades burocráticas com estas vias de regularização. Entre elas, obstáculos de imigrantes com o idioma ou a impossibilidade de determinar um local fixo de trabalho ao preencher o formulário.
PM questiona organizadores do evento
Vendedor de água e membro do Fórum dos Ambulantes de São Paulo, José Pedro Neto denunciou, em sua fala, que antes do ato de lançamento da campanha iniciar na Faculdade de Direito da Universidade de São Paulo (USP) nesta segunda-feira (2), uma policial entrou no auditório fazendo questionamentos aos organizadores.
“Nós temos que colocar a PM no lugar deles. O movimento social não tem que dar explicação à policia sobre quantas pessoas vão estar em um evento. Isso é uma atividade dentro de uma faculdade, como a polícia se atreve a entrar aqui para pegar informação? Imagina o que não fazem contra os trabalhadores nos territórios?”, questionou Pedro Neto, com indignação.
“Liberdade é igual comida, educação, saúde. Se a gente não tem liberdade, para que servem esses ‘governos democráticos’? A luta pelo fim da Operação Delegada pode dar espaço para todos os movimentos que lutam pelo povo oprimido”, afirmou Pedrinho, como é conhecido.
“O que está em curso”, destacou o deputado estadual Eduardo Suplicy (PT), “é a militarização do espaço público, a criminalização do trabalho informal e da pobreza”.
A resposta do Estado
Procurada pelo Brasil de Fato, a prefeitura de Ricardo Nunes disse que “a Operação Delegada presta um serviço de reforço no policiamento da cidade para a segurança de toda a população” e que “a conduta dos policiais militares é reportada diretamente ao Comando da Polícia Militar, ligado à Secretaria de Segurança Pública (SSP-SP)”.
Já a SSP-SP do governo Tarcísio afirmou que “a Polícia Militar não tolera excessos ou desvios de conduta”. De acordo com a secretaria, comandada pelo ex-policial da Rondas Ostensivas Tobias de Aguiar (Rota), Guilherme Derrite, “qualquer denúncia de abuso cometido por seus agentes em operação é rigorosamente investigada pela corregedoria da instituição”.
Em relação à morte de Ngagne Mbaye, o governo estadual informou que “as investigações seguem em andamento sob sigilo por meio de um Inquérito Policial Militar (IPM), além de apuração conduzida pelo Departamento de Homicídios e Proteção à Pessoa (DHPP)”. O policial que efetuou os disparos contra o trabalhador senegalês está afastado das ruas, mas segue na instituição.