No Brasil, comemoramos entre os dias 1º e 7 de junho, a Semana do Meio Ambiente, mas infelizmente, não há muito o que festejar.
Há poucos dias, o Senado Federal aprovou o projeto de lei (PL) 2159, chamado de PL da Devastação, que flexibiliza as regras para o licenciamento ambiental e, cada vez mais, aumenta a possibilidade de exploração de petróleo e minério na região amazônica.
Recentemente, a ministra do Meio Ambiente, Marina Silva, foi vítima de ataques, e, mesmo diante desse contexto, o país sediará a Conferência das Partes (COP) 30, que acontecerá no Pará, em novembro.
Em Minas Gerais, a desregulamentação ambiental pode intensificar ainda mais a atuação das mineradoras, ameaçando o patrimônio mineral, povos e territórios, e o avanço do agronegócio em áreas ainda preservadas.
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Diante desse contexto, o Brasil de Fato MG entrevistou Carla Wstane, doutora em geografia, diretora técnica do Instituto Guaicuy, que atua diretamente com populações atingidas pelo crime da Vale na bacia do Rio Paraopeba.
“Em Minas Gerais, com um discurso, para fora, de que ‘protege’ e tem uma agenda ‘ambiental’, internamente, tanto os empreendimentos quanto o Estado, seguem cada vez mais ‘passando a boiada’, fazendo vistas grossas”, avalia.
Ela também representa a sociedade civil na Associação Brasileira de Avaliação de Impactos Ambientais, atua no projeto Manuelzão, vinculado à Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG), e é integrante do Subcomitê de Bacia Hidrográfica do Ribeirão Onça, vinculado ao Comitê do Rio das Velhas.
Confira a entrevista completa:
Brasil de Fato MG – Qual é o atual cenário ambiental do Brasil?
Carla Wstane – O cenário ambiental hoje no Brasil está cheio de contradições. Nós entendemos a nossa potencialidade mundial, enquanto um país rico em diversidade socioambiental, fortalecendo esse ponto de vista como anfitriões da COP 30. Simultaneamente, vivemos os efeitos das emergências climáticas na pele, como é o caso das enchentes no Rio Grande do Sul, das quais nós ainda nem nos recuperamos.
Vivenciamos ainda uma tentativa de desmonte do licenciamento ambiental no país, por meio do PL 2159, que estamos chamando de PL da devastação. Além disso tudo, temos o fantasma da exploração de petróleo e de minério no Rio Amazonas, em plena urgência de mudar a nossa matriz energética.
São muitos pontos contraditórios.Empresas que destroem o meio ambiente, acusadas de crimes ambientais, estão patrocinando a cobertura da COP 30, por exemplo.
O cenário que se apresenta é, cada vez mais, de um cerco. A atuação institucional, do governo e das empresas, parece vender uma ideia, mas age de forma contrária ao enfrentamento à emergência climática.
Tudo isso é muito problemático e o cidadão precisa se inteirar sobre o que está acontecendo, porque o que se apresenta são “boiadas passando”.
No Instituto Guaicuy, estamos na rede de parceiros pela integridade da informação sobre a mudança do clima. Nós vemos a dificuldade que tem sido combater essas narrativas, as fake news, e, ao mesmo tempo, defender nossas serras, águas e florestas. Então, vejo muitas contradições e, ao mesmo tempo, muita coisa para ser feita. Há uma grande importância em nos voltarmos para nossas potencialidades, para nosso cuidado, e para a atenção com o meio ambiente.
E em Minas Gerais, como você caracteriza o atual contexto?
Aqui, o cenário é parecido. A atuação das mineradoras, principalmente, mas também de grandes empreendimentos de forma geral, impactam a paisagem e as dinâmicas regionais de uma forma cumulativa. Isso é um grande desafio para a gestão ambiental do século 21 e ainda mais com a proposta de mudar as regras de licenciamento, que já são frágeis, trazendo para o Brasil uma fragilidade maior.
Em Minas, o desafio é especialmente agravado. Nós temos eventos severos que podem chegar aqui, com potencial de colocar tudo em risco, por exemplo, as grandes barragens de rejeito que ainda existem.
As mineradoras continuam atuando em situações que demandam um melhor entendimento das dimensões sobre os impactos ambientais. É muito importante pensar o impacto ambiental em um território, em uma bacia hidrográfica, além da importância de dialogar com as diferentes populações que estão expostas a todos esses danos ambientais.
Por exemplo, o licenciamento para a mina Apolo, da Vale, que propõe pilhas de rejeito de estéril, mini minas, em territórios que sofrem diretamente com a pressão ambiental, pela mineração, em áreas de grande concentração de atividades que, muitas vezes, são licenciadas de forma dispersa, individualmente.
O próprio Estado não quer olhar para esses licenciamentos de uma forma mais complexa e sinérgica, como deveríamos olhar para o quadrilátero aquífero-ferrífero, onde temos muitos empreendimentos desse porte.
Um tema que vem chamando muita atenção nas últimas semanas é o PL da Devastação. Na sua perspectiva, quais são os possíveis impactos ?
Se for aprovado, os impactos podem ser devastadores: mais desmatamento, degradação ambiental, ameaças aos territórios indígenas, quilombolas e à toda a sociedade. Eu acho importante pensarmos sobre licenciamento ambiental e avaliação de impacto ambiental, que atualmente é aplicada nos casos de grandes empreendimentos, porque esses mecanismos têm um papel extremamente relevante na nossa política nacional de meio ambiente e na Constituição Federal.
Cabe ao licenciamento possibilitar que esses novos empreendimentos sejam implantados, mas desde que condições socioambientais também sejam atendidas. Sem um licenciamento adequado, não é possível garantir um ambiente que permita qualidade de vida e de saúde às pessoas e a outros seres vivos.
Nós elencamos, recentemente, por meio da Associação Brasileira de Avaliação de Impacto Ambiental, alguns dos principais problemas com esse PL:
1) A criação da modalidade de licenciamento ambiental especial (LAS) para atividades ou empreendimentos estratégicos, que abre a possibilidade de uma simplificação excessiva;
2) O licenciamento por adesão e compromisso (LAC), uma modalidade de licenciamento auto declaratório e automático, que passa a ser aplicado para atividades ou empreendimentos de pequeno e médio porte, e que ignora a necessidade de se observar a sensibilidade do ambiente onde essas atividades vão ser executadas e o acúmulo desses impactos ao longo do tempo;
3) A dispensa do licenciamento ambiental para uma gama de atividades, em especial do setor agropecuário, que vai sair muito caro para o nosso país;
4) Temos também uma grande preocupação com a renovação automática da licença ambiental para empreendimentos de pequeno ou médio porte, sem a necessidade da análise pelo órgão licenciador;
5) A restrição da consulta prévia e a limitação do acesso a informações ambientais por parte das comunidades afetadas, inviabilizando a participação das pessoas nas análises dos impactos. Algo que nós, da sociedade civil organizada, há anos lutamos para que as comunidades tenham condições de dar a sua opinião sobre esses impactos;
6) E, por fim, outra medida preocupante é o enfraquecimento do papel dos conselhos de meio ambiente, dando excessiva autonomia para as autoridades licenciadoras, que, sabemos, muitas vezes, estão ligadas a essas grandes empresas.
O Brasil precisa de mais proteção ambiental, não de menos. O licenciamento é o instrumento essencial para garantir que o desenvolvimento econômico respeite também os limites do planeta.
Na última semana, a ministra Marina Silva foi desrespeitada no Senado. Historicamente, defensores do meio ambiente enfrentam ameaças e violências no Brasil. Você percebe essa cultura de violência?
Marina Silva é uma das mais respeitadas líderes ambientais do mundo e uma referência para nós na luta pela preservação da Amazônia, mas também da vida e da floresta. Ela é uma inspiração, por ter uma trajetória que é símbolo de resistência, de compromisso com os povos indígenas e, principalmente, com o futuro do planeta, que é algo muito caro para todos.
Ela representa esse olhar para a implantação de grandes empreendimentos que defende vidas e não dinheiro. E é justamente por sua trajetória que Marina Silva é atacada, além de ser mulher e negra.
Isso se repete aqui em Minas Gerais. Lideranças de comunidades e mulheres parlamentares são atacadas por defenderem direitos e se posicionarem. Na minha trajetória, sinto diversos atravessamentos que muitas vezes tentam deslegitimar as minhas falas. Eu já fui atacada no Conselho de Meio Ambiente de Belo Horizonte, já sofri retaliações desse tipo.
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Quando vamos contra grandes empreendimentos ou contra empreendimentos de grande impacto socioambiental, somos taxadas de “louca ambientalista” e isso atinge os territórios. Sabemos que os modelos de lideranças são as mulheres, sempre aquelas que se colocam à frente, que tomam a palavra e que cuidam, ao mesmo tempo. São elas que se expõem e, na maioria das vezes, também é sobre elas que recaem os primeiros danos.
Tem vários estudos que mostram, na perspectiva da questão de gênero, como as mulheres são mais afetadas por impactos ambientais negativos. Além disso, essas populações, em seus territórios, são muitas vezes marginalizadas pelas grandes empresas e pelo próprio Estado, que não dão a essas pessoas o direito de fala e de se colocarem, seja cortando seus microfones, seja dando um tempo mínimo de fala, marginalizando essas pessoas.
Como se dá hoje a atuação da mineração e do agronegócio em Minas Gerais?
Sobre o atingimento nas bacias do Rio Doce e do Rio Paraopeba, com o rompimento das barragens da Vale, acho importante refletir que, nessa luta, tentamos pensar em alguma garantia de direito às pessoas atingidas, mas vivemos um enfrentamento onde não existe uma paridade de armas.
Nós estamos lidando, nos dois casos, com uma das maiores empresas do mundo, que sabia do risco de rompimento de suas barragens. E que, no caso de Brumadinho, não foi a primeira que se rompeu. Infelizmente, também pode não ser a última que se rompa.
Mesmo em um contexto onde se mata 272 pessoas e também um rio inteiro, seis anos depois no caso do Paraopeba e quase 10 anos depois do caso do Rio Doce, muitas pessoas e comunidades ainda lutam pelo direito de serem reconhecidas como pessoas atingidas.
E é nesse contexto das políticas de reparação que discutimos os acordos, que vêm sendo realizados, entre as empresas, o Estado de Minas Gerais e as instituições de justiça. Tanto o acordo, quanto a repactuação dos acordos que não deram certo anteriormente foram definidos sem a participação das pessoas, com um teto de gasto, com atraso na implementação e com pessoas e movimentos sendo marginalizados.
A empresa segue tendo recorde de lucros e o governo Zema (Novo) sendo reeleito com o recurso da reparação. Isso tudo é bem triste, porque as pessoas atingidas enfrentaram e seguem enfrentando a dor da perda de entes queridos, os problemas de saúde física e mental, os prejuízos econômicos, a própria desestruturação dos núcleos familiares, queda de cadeias produtivas, a perda do rio, etc.
Então, vimos uma grande falta de reconhecimento, muita impunidade, uma morosidade no processo e uma participação insuficiente das pessoas atingidas nas decisões referentes à reparação.
A questão da implementação dos grandes empreendimentos, seja agronegócio, seja mineração, em Minas Gerais, é cada vez mais distante da participação das pessoas, da escuta das pessoas que residem naqueles territórios.
Esses grandes empreendimentos impactam sobremaneira a vida dessas pessoas, por meio do que chamamos de crimes-desastres, mas também com a própria implementação de projetos de grandes impactos, como o agronegócio. Sabemos como isso impacta, afasta as pessoas do próprio envolvimento com seus territórios.
Quais são os principais conflitos em nosso território e como você avalia a atuação do poder público?
Podemos falar do Gandarela, do projeto Apolo, que é um projeto para implantar uma grande mineração em uma das áreas mais importantes da Região Metropolitana de Belo Horizonte (RMBH), ali no quadrilátero aquífero-ferrífero, que, na verdade, faz parte da Cordilheira do Espinhaço.
Essa mineração imensa ameaça o Parque Nacional do Gandarela, trazendo grandes questões referentes à água limpa, à biodiversidade e à qualidade de vida das pessoas em seus territórios.
O projeto tem estudos engessados que apresentam análises parciais, onde não são considerados serviços ecossistêmicos e se compromete a nossa reserva hídrica, do Cerrado e da Mata Atlântica, mas também a nossa história, como foi o caso do soterramento da Paleotoca, que foi encontrada ali na região do Gandarela.
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Vemos a necessidade de um licenciamento ambiental, um olhar para toda implementação desse tipo de empreendimento, onde existe a obrigação de uma complexidade maior e um aprofundamento dos estudos. Isso é uma completa retirada de direitos, é uma violação, tanto do meio ambiente, quanto das pessoas.
Somos surpreendidos o tempo inteiro com o tipo de processo de licenciamento que busca jogar tudo por terra. Com um discurso, para fora, de que “protege” e tem uma agenda “ambiental”, internamente, tanto os empreendimentos quanto o Estado, seguem cada vez mais “passando a boiada”, fazendo vistas grossas.
Como se estrutura hoje o debate sobre a reparação ambiental e humana, ao longo das bacias do Rio Paraopeba e do Rio Doce?
Trabalhamos com esse processo olhando para a coletividade. Primeiro, achamos muito importante, para uma reparação efetiva, ter primeiramente a participação das pessoas discutindo o futuro de suas próprias vidas e do seu território.
E não é isso o que acontece nos acordos feitos em Minas Gerais, principalmente o voltado para o Paraopeba. O recurso para as pessoas é limitado. Dentro do acordo, há o programa de transferência de renda, que deveria ser uma medida de mitigação até que a reparação de fato viesse. Ele vai acabar e a reparação não veio ainda.
Tem-se discutido muito os projetos das pessoas e das comunidades, mas dentro da burocracia do Estado há uma morosidade. Esse recurso da mitigação vai terminar agora e não sabemos, de fato, quando os projetos das comunidades vão começar. Temos outras questões que sequer são discutidas, como a própria reparação socioambiental.
Na verdade, as pessoas querem o rio de volta, querem poder nadar, pescar, brincar, como uma atividade econômica, mas principalmente como uma atividade de lazer e de saúde. E a questão socioambiental não é discutida.
No Guaicuy, lançamos recentemente algumas informações sobre como está a reparação socioambiental. Tudo está atrasado, dentro da proposta que foi feita no acordo. Temos a reparação emergencial, que é o fornecimento de água, de silagem e de água bruta para as comunidades atingidas e, hoje em dia, nas regiões do Baixo Paraopeba e Três Marias, não temos nem essas medidas emergenciais sendo levadas para a população.
Infelizmente, se crimes como esses continuarem acontecendo, a experiência que nós temos hoje é de reparações intermináveis, extremamente burocráticas, que muitas vezes não chegam de fato às populações ribeirinhas, quilombolas e indígenas que sofrem diretamente os impactos negativos.
No que consiste o projeto Apolo e por que ele pode ser prejudicial?
Nesse caso, a mineradora vem com o discurso de que é uma “mineração limpa”, por não ter barragens de rejeitos. Mas ela propõe pilhas de estéril e de minério, que são imensas, com cerca de sete a 10 andares. Isso não é discutido de forma adequada, dentro do processo de licenciamento.
Ela também está se instalando em uma área de amortecimento, que faz divisa com o Parque Nacional da Serra do Gandarela, onde vem se promovendo diversas pequenas minas, o que temos chamado de mini-minas, que afetam diretamente as populações locais.
Com a retirada de minério nessa região que fornece água de qualidade para o abastecimento da RMBH, corre-se o risco de diminuir o abastecimento hídrico. Isso, em época de emergências climáticas, pode não ser nada interessante para a população.
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Há ali uma grande concentração de minério, mas também de água de qualidade. Então, existe sim um conflito sobre como vai se instalar, ainda que os estudos apresentados sejam bem questionáveis e não considerem que a região onde está sendo instalado é inclusive região de amortecimento do parque.
Nós tivemos agora um avanço com a decisão de que o Instituto Chico Mendes de Conservação da Biodiversidade (ICMBio) faria os estudos dessa área, o que entendemos como um avanço porque conseguimos barrar os estudos que são feitos apenas pela mineradora.
Mas isso está em constante debate, ainda não sabemos direito como as coisas vão acontecer, devido ao poderio da mineradora. As comunidades, o projeto Manuelzão, o Instituto Guaicuy, o Cordilheira e várias organizações socioambientais vêm discutindo e debatendo de forma muito concisa a implementação da mineração do projeto Apolo.