O prefeito de Portel (PA), Paulo Ferreira (MDB) e o secretário do Meio Ambiente, Igor Diniz Nascimento, são acusados por agricultores e extrativistas de interferir na organização de assentamentos rurais do município, com o objetivo de enfraquecer essas comunidades e facilitar a venda de lotes.
A denúncia, apresentada em abril deste ano por quatro associações de extrativistas e agricultores e pelo Sindicato dos Trabalhadores Rurais de Portel, está registrada em ação civil pública que tramita na Vara Agrária de Castanhal.
As acusações são de desmonte de direitos coletivos, promoção de grilagem e impulsionamento do desmatamento em áreas preservadas e em lotes destinados à reforma agrária.
Para isso, os acusados incentivam moradores de assentamentos a solicitarem o Cadastro Ambiental Rural (CAR) individual, o que facilita a venda das terras. E fazem isso abertamente, como é possível constatar em conteúdos que circulam em redes sociais.
Em um vídeo, o secretário discursa contra o Cadastro Ambiental Rural de Povos e Comunidades Tradicionais (CAR/PCT), ou CAR coletivo, aplicado em áreas de assentamento, citando vantagens do documento individual.
“Dificilmente, você aí que faz parte de um CAR coletivo, você vai ter financiamento junto ao banco (…) Quando existe essa questão da modalidade de CAR coletivo, bancos não têm interesse em fazer financiamento de crédito para pessoas que moram em assentamentos”, afirma Diniz, ignorando as funções distintas desses cadastros. O documento individual não pode ser aplicado em territórios de uso comunitário, como são os assentamentos.
Em outro conteúdo, o prefeito afirma que “não aceitaremos mais a questão de criação de glebas e mais glebas no território de Portel”.
Além do incentivo à busca pelo documento individual, a prefeitura passou a emitir declarações de posse dentro de assentamentos estaduais, onde vivem ribeirinhos assentados pelo Governo do Estado do Pará, conforme denuncia a ação.
“Essas declarações individuais de posse, emitidas pelo Prefeito em áreas de assentamentos coletivos, violam a natureza jurídica desses territórios e a legislação agrária e ambiental aplicável”, informa o texto.
“Eles andaram nas comunidades, falando que era para pedir o cancelamento dos assentamentos, porque tinha que se beneficiar individual”, conta Luzia*, agricultora e moradora do Projeto Estadual de Assentamento Agroextrativista (Peaex) Acangatá, onde vivem cerca de 400 famílias. Ela conta que, além de compartilhar vídeos nas redes sociais, o prefeito e o secretário fizeram visitas às comunidades para falar sobre as modalidades de cadastro e incentivar o abandono da posse coletiva da terra.
Pressionados, alguns moradores da área se uniram para buscar suporte legal e deram início à ação que tramita na justiça. “Desde o início da nossa organização, o prefeito de Portel foi contra a organização social, principalmente a criação dos assentamentos”, diz a agricultora.

Eleito pela primeira vez como prefeito em 2012, Ferreira está em seu terceiro mandato. Em 2016, ele tentou reeleição, mas foi vencido por Manoel Maranhense (PSC). Em 2020, Ferreira voltou ao Executivo e permanece no cargo até agora. Seu período de gestão coincide com a elevação das taxas de desmatamento no município.
Diniz assumiu a pasta do Meio Ambiente em janeiro de 2024 e passou auxiliar o prefeito no trabalho de convencimento dos moradores das comunidades rurais. “O CAR individual é infinitamente superior ao CAR coletivo. Fica a dica aí para vocês, tá, meus irmãos ribeirinhos. Leve essa mensagem para outras pessoas que têm dúvidas e tire esse esclarecimento”, afirma o secretário no vídeo que circula pelas redes sociais.
Ameaça às práticas coletivas
O CAR coletivo tem como principal objetivo proteger os territórios tradicionais, habitados por extrativistas, ribeirinhos e outras comunidades cujos modos de vida se alinham à preservação ambiental.
Esse documento evita que frações dessas terras “sejam absorvidas por uma lógica individual e produtivista, incompatível com os modos de vida dessas comunidades”, explica Fernanda Ferreira, geógrafa, doutora em ciências sociais e especialista em análise ambiental e gestão do território.
No assentamento Deus é Fiel, os moradores vivem de extrativismo e agricultura. O trabalho garante a coleta de açaí, castanha e cultivo de mandioca para produção de farinha e outros derivados. Há também plantação de frutas e hortaliças. A área coletiva foi conquistada após décadas de espera e persistência.
“O território mesmo, mapeado, é demarcado pela comunidade desde os anos 90. Mas ele se tornou reconhecido, titularizado com a carta de concessão de direito real de uso somente em 2023”, conta Suzana*, moradora do Deus é Fiel.
O assédio do poder público municipal chegou até lá, fazendo com que algumas famílias aderissem ao CAR individual. Ao tomar essa decisão, elas foram excluídas da Relação de Beneficiários (RB) do Instituto Nacional de Colonização e Reforma Agrária (Incra) e barradas de benefícios, como o acesso a crédito pelo Programa Nacional de Fortalecimento da Agricultura Familiar, cujo valor chega a R$ 52 mil. Essa modalidade de crédito é destinada a moradores de áreas com CAR coletivo.
“Eles não podem acessar porque não constam nem no CAR coletivo e nem na Relação de Beneficiários”, informa Suzana.
O CAR individual é um documento autodeclaratório, ou seja, o alegado proprietário da área pode fazer o registro nos sistemas estaduais de cadastramento. No entanto, após o registro, o cadastro passa por um processo de validação do órgão ambiental, como a Secretaria de Meio Ambiente, Clima e Sustentabilidade (Semas), no Pará. Quando é feito sobre área pública, o documento individual é suspenso e cancelado.
O processo de cancelamento, no entanto, pode levar tempo, porque requer denúncia e procedimentos administrativos, como explica o advogado Guilherme Sobral, que representa os agricultores na ação civil pública. “E o cancelamento, até acontecer, muita coisa já aconteceu no território, como por exemplo, venda de terra, grilagem, transformação da floresta em agropecuária”.
Avanço do desmatamento
Os modos de vida e as práticas de agricultura nos assentamentos garantem a preservação ambiental nessas áreas. Dados do Relatório Anual de Desmatamento (RAD), da plataforma MapBiomas, indicam que 9% do total da área desmatada no Brasil em 2024 fica em assentamentos. Já os imóveis rurais privados, como fazendas, representam 64% do desmatamento de 2024.
Localizado no arquipélago do Marajó, Portel tem um território maior que o estado do Sergipe e uma vasta extensão de floresta preservada – que, no entanto, vem diminuindo. A perda da vegetação nativa, substituída por pastos, se acentuou nos últimos anos.
Em 2013, o município tinha uma área de pastagem de 80,5 mil hectares. Em 2020, a área era de 178 mil e, em 2023, quase 259 mil hectares.
O rápido avanço da devastação levou o governo federal a incluir Portel na lista de municípios prioritários em ações de controle de desmatamento. Atualmente, 80 municípios estão na lista de atenção, porque representam 78% de todo o desmatamento registrado no bioma.
A relação de municípios prioritários faz parte do Plano de Ação para Prevenção e Controle do Desmatamento na Amazônia Legal (PPCDAm), e estabelece orientações e ações para a preservação da floresta. Municípios com bons resultados na contenção da devastação são retirados da lista. Portel continua lá, desde 2017.
Em 2024, o Brasil registrou queda no desmatamento em todos os biomas. Alguns municípios, no entanto, seguiram na contramão da preservação. Portel é um deles, ficando em 9ª posição entre os 50 que mais desmatam a Amazônia, de acordo com levantamento do MapBiomas. De 2023 para 2024, a devastação por lá teve aumento de 42%.
Na ação, o advogado Guilherme Sobral indica a relação direta entre o incentivo da busca pelo CAR individual e o aumento do desmatamento.
“O Secretário, ao desmerecer o CAR coletivo (CAR-PCT) e recomendar o CAR individual para facilitar a venda de gado e da própria terra coletiva, tem como consequência o incentivo às atividades da pecuária extensiva e da venda de terra pública, que são vetores conhecidos de desmatamento na Amazônia”, informa.
Município teve denúncias por projetos de créditos de carbono
O município de Portel tem um histórico de interesses políticos e empresariais sobrepostos aos direitos das comunidades tradicionais. Em 2022, a gestão municipal publicou uma lei autorizando o funcionamento de projetos de créditos de carbono em glebas e assentamentos estaduais, pertencentes ao governo do Pará e em posse de comunidades tradicionais.
Em 2023, a Defensoria Pública do Estado do Pará ajuizou cinco ações contra a prefeitura e empresas nacionais e estrangeiras responsáveis por esses projetos.
Além do uso de terras públicas para a obtenção de lucro com a venda de créditos de carbono, as empresas eram pouco transparentes com as comunidades envolvidas. As denúncias indicam que o CAR era usado como documento de propriedade das terras na elaboração dos contratos com as empresas.
Uma das ações é referente ao projeto Rio Anapu-Pacajá REDD, sobreposto aos assentamentos Deus é Fiel, Joana Peres II – Dorothy Stang, Joana Peres II – Rio Pacajá, Rio Piarim e Jacaré Puru. “O projeto é ilegal e se pautou em contrato de compra e venda de terras públicas, em registros imobiliários inválidos sobrepostos aos assentamentos e Cadastros Ambientais Rurais ilegais”, informa o texto da ação. As investigações resultaram na suspensão dos projetos.
Em 2024, o secretário Igor Diniz voltou a incentivar as negociações com empresas de créditos de carbono, em outro vídeo onde fala em favor do CAR individual.
“Se a pessoa quiser preservar para crédito de carbono, se ela quiser criar gado (…) Agora se for coletivo, o dinheiro cai na conta da associação e é o presidente que vai gerir isso aí, ou seja, você está dando a sua vida financeira para uma única pessoa”, diz, em tentativa de deslegitimar o trabalho das associações rurais.
“É um grande interesse pelas terras, pela negociação, pela comercialização de terras. (…) É uma forma de fragilizar as organizações e tornar vulneráveis as famílias que moram lá, para facilitar a venda”, avalia Suzana.
O Brasil de Fato tentou contato com o prefeito e com o secretário do Meio Ambiente, mas não teve retorno até a publicação deste texto. O espaço segue aberto.
*Os nomes foram alterados para garantir a segurança das entrevistadas.