“Quantos mais vão precisar morrer para que essa guerra acabe?” – Marielle Franco
Em abril de 2025, o Supremo Tribunal Federal (STF) concluiu o julgamento da ADPF 635, conhecida como ADPF das Favelas, ação que deveria, em tese, conter a letalidade policial no Rio de Janeiro. Em vez de reafirmar o direito à vida, a decisão reforçou a militarização. Pouco após a data que marca os quatro anos do assassinato de Kathlen Romeu, jovem negra grávida morta em operação ilegal no Complexo do Lins, a pergunta se impõe: o que essa decisão tem a ver com sua morte e com o direito de mulheres negras ao bem viver?
Em 8 de junho de 2021, Kathlen e seu bebê foram mortos pela PM durante a operação “Tróia”, sem protocolos legais. O caso ganhou repercussão nacional, mas não foi isolado. Um mês antes, no Jacarezinho, uma operação resultou na segunda maior chacina da história do estado. Ambos os episódios ocorreram sob a vigência da ADPF, revelando a permanência da violência policial.
Proposta durante a pandemia, a ADPF buscava restringir operações a casos excepcionais. Porém, a subjetividade do termo deu ampla autonomia às polícias. Ignorando cinco anos de mobilização por um plano de redução da letalidade, o STF reforçou as práticas denunciadas: repressão e militarização.
Entre os pedidos negados, estavam a proibição de helicópteros como plataformas de tiro e a criação de perímetros de proteção em torno de escolas e hospitais. O governo do Rio anunciou a compra de um helicóptero de guerra com capacidade para disparar 6 mil tiros por minuto, a ser operado pelo Batalhão de Operações Especiais (Bope) ainda em 2025.
O STF também flexibilizou a exigência de ambulâncias nas operações. No entanto, nenhuma das 37 incursões de 2024 na Maré teve suporte médico, segundo o projeto “De Olho na Maré”. Já o relatório “Educação Sob Cerco”, do UNICEF e parceiros, aponta que cerca de 800 mil estudantes frequentam escolas em áreas sob domínio armado. A recusa em criar zonas de proteção ignora essa realidade.
A Corte ainda acrescentou, fora do escopo original, a possibilidade de ocupação territorial, reforçando a retórica de guerra que vê favelas como espaços a serem retomados. Políticas como as Unidades de Polícia Pacificadora (UPPs) e o “Cidade Integrada” mostram como essa lógica aprofunda violações de direitos.
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A morte de Kathlen e de seu bebê escancara a dimensão interseccional que precisa existir nas políticas de segurança pública. Sua história mostra como decisões como a da ADPF impactam diretamente a vida de mulheres negras faveladas.
Quando uma mulher negra é morta ou perde seus filhos para o Estado, não se perde apenas uma vida: é uma ruptura geracional. A morte atravessa o corpo, a memória e os vínculos comunitários. Em uma sociedade moldada pelo racismo, essas mortes não são exceções, mas parte de um projeto contínuo de extermínio.
A trajetória de Kathlen, como tantas outras, evidencia a falha do Estado em garantir o direito à vida de mulheres negras. Quatro anos depois, sua ausência ainda exige que se rompa com a lógica de morte que estrutura a segurança pública.
Como garantir uma política que permita às mulheres negras reivindicar a vida em vida? Como forçamos a passagem entre sobreviver e, de fato, existir? Justiça por Kathlen Romeu, seu bebê, e todas as mulheres negras que tiveram suas vidas interrompidas por um Estado que ainda insiste em negar o nosso direito de viver.
*Marcela Toledo é cientista social, especialista em segurança pública e analista de pesquisa do Instituto Decodifica.
**Roberta Assis é bacharel em Direito, especialista em segurança pública e analista de Advocacy do Instituto Decodifica.
***Este é um artigo de opinião e não necessariamente representa a linha editorial do Brasil do Fato.